Um libelo desesperado em defesa do saudosismo

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Existe toda uma classe de pessoas que vive no passado. São versões reais do Vovô Simpson, sempre criticando o presente e temendo o futuro, sempre dizendo o quanto o passado que muitos sequer viveram era bem melhor.

Eu gostaria de ser como eles, gostaria mesmo. Queria poder dizer que meu CP-200 com 16KB de memória era melhor do que meu Mac ou meu PC, ambos com 4GB.

Queria ter a cara de pau desse pessoal, a visão seletiva de mundo que considera aquelas máquinas feitas de barro fofo e pedra lascada melhores pois “não travavam”- o que é mentira, aliás.

Queria ser saudosista e dizer que monstros com zíper eram melhores que os monstros atuais, ou que as cenas de combate da série clássica eram melhores que a magnífica batalha final contra o Dominion em Star Trek: Deep Space Nine, com milhares de naves na tela, em um conflito épico.

Queria ser do grupo que defende cegamente a série original de Galactica (que amo profundamente) nem que para isso tenham que elogiar um garoto chato e um cachorro-robô, e fingir que o Comandante Adama de Edward James Olmos não é um líder que qualquer um seguiria até o Inferno.

Queria poder dizer que comprar revistas de péssima qualidade no jornaleiro conivente e sintonizar o TV Link do vizinho era uma forma mais conveniente de acessar pornografia do que a Internet, mas não consigo, até porque digitar com uma só mão é complicado.

Queria poder dizer que o mundo era mais pacífico, mas crescer à beira de uma Guerra Total Termonuclear me faz ver conflitos no Oriente Médio como no máximo briguinhas.

Queria poder dizer que a música de antigamente era melhor, mas boa parte da música boa de minha juventude já era velha. Ela se manteve, o que surgiu de bom continua e o descartável foi esquecido. Como sempre aconteceu.

Queria poder dizer que ouvir música era melhor, mas meus LPs vivam arranhando, minhas fitas K7 só me permitiam ouvir música na sequência e compartilhar música significava emprestar um LP, que geralmente não voltava.

Queria poder dizer que meu videocassete era superior ao DVD (sim, ouvi esse argumento) pois gravava, mas meu LP também não permitia gravação e nem por isso eu comprava meus álbuns em fita K7.
A primeira vez que liguei um DVD e comparei a imagem com uma fita de vídeo passei por uma experiência religiosa. Uma imagem FullHD dá a mesma sensação. Queria poder dizer que isso não importa.

Queria poder dizer que a fotografia digital banalizou a arte, mas eu lembro como era caro comprar filme, tirar fotos de momentos únicos sem saber se saiu ou não, esperar dias pela revelação e só então descobrir se a única lembrança do momento existiria apenas em nossas memórias.

Queria dizer que a Internet afasta as pessoas, as isola e as torna superficiais. Gostaria mesmo de repetir esse discurso fácil, mas minhas maiores amizades e meus maiores amores chegaram até mim por um fio na parede. Só quem fala essas coisas da Internet é gente que não entende que há gente de verdade do outro lado daquele fio.

Queria dizer que era melhor pesquisar em enciclopédias “de verdade”, e que hoje as crianças fazem copy/paste, mas tenho a DECÊNCIA de lembrar que naquele tempo o principal objetivo era encontrar uma imagem recortável para ilustrar o trabalho, e o copy/paste era feito manualmente, copiávamos de forma autômata o conteúdo. NUNCA aprendi nada em trabalhos de colégio, que aliás nunca foram sequer discutidos em sala de aula.

Uma vez eu tirei 7, SETE em um trabalho para Teoria da Percepção, na UFF. Meu trabalho? Uma foto da Luciana Vendramini em um cenário futurista, com esferas de computação gráfica ao fundo. Impresso em uma matricial Elgin Lady Nojenta, de um amigo.

ISSO é o passado onde se aprendia com os trabalhos escolares?

Eu queria também ser daqueles que odeiam o passado, mas adoro o meu. Aprendi muito com ele, aprendi que nossas maiores tragédias um dia se tornam História, que NADA é insuperável. É tudo uma questão de perspectiva. Um braço perdido 20 anos atrás ainda incomodará, mas você não passa 20 anos gritando de dor. Achar sua paz e viver com um braço só não diminui a dor da perda, não é essa a intenção. O tempo me ensinou que aceitar e viver com o que passou não é trivializar. É apenas a alternativa a enfiar uma bala no coco, atitude em geral nada recomendável.

Eu queria muito ser um repórter das antigas. Sério, queria mesmo. Clarke Kent pode inspirar mais que o Super Homem, se você gosta mais de escrever do que tentar ser mais forte que uma locomotiva. Queria, mas não posso. Hoje não existe mais “parem as máquinas”, hoje não existe mais a separação Imprensa / Mortais.

Hoje eu não sou o Último Filho de Krypton (ou ao menos digo que não sou) mas minha voz tem alcance muito maior. Não dependo de Perry White ou Lex Luthor para determinar o que falo ou deixo de falar. Sou meu próprio Roberto Marinho, meu próprio Chatô, embora o Guilherme Fontes não tenha pedido dinheiro em meu nome (acho).

Eu queria ter a certeza dos adolescentes e dos trolls da Internet, de que se algo dá errado na vida é culpa de todos menos de mim mesmo. Queria poder justificar com os pais, os professores e orientadoras. Queria poder dizer “fulano me persegue”, e fazer disso justificativa suficiente para não atingir meus objetivos.

Eu gostaria de querer isso tudo, mas sendo sincero eu só quero uma coisa, que inviabiliza todos esses quereres:

Quero ver o que vem adiante e o quê o Destino me reserva, e se não gostar, mudar, afinal de contas, “Destino Não Existe”, me ensinou Sarah Connor, no Exterminador do Futuro, no distante passado de 1991.



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