O dia em que uma esposa furiosa quase mudou o destino da Segunda Guerra Mundial

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Araceli Gonzales de Pujol era uma moça de família rica espanhola, nascida em 1919 e acostumada com uma vida tranquila. Talvez por isso ela gritasse tanto com Tom Harris, o oficial inglês que pacientemente escutava suas reclamações.

Ela queria voltar para casa, na Espanha. Não gostava de Londres, não gostava dos vizinhos, não gostava da comida, não gostava de quase não ver o marido. Araceli não se importava com a Segunda Guerra Mundial, e usou sua participação nela como argumento de negociação. Disse que se não pudesse viajar, iria até a Embaixada da Espanha e denunciaria a existência de uma rede de espiões nazistas no país.

Há dois pontos curiosos aqui: Primeiro, o oficial sabia da existência da Rede de Espionagem, e era imperativo que a Espanha, tecnicamente neutra, mas discretamente ajudando Hitler não fosse informada de que os ingleses sabiam de tudo.

Segundo, a tal rede havia sido criada por Araceli e, principalmente, por seu marido, Juan Pujol García, um sujeito que presenciou a Guerra Civil Espanhola e a ascensão de Franco, acompanhou o surgimento e o crescimento do nazismo e odiava profundamente nazistas, comunistas e fascistas. Os de verdade, não aquele sujeito que discorda de você no Facebook.

Pujol se ofereceu para trabalhar para os aliados. Ele e a esposa escreveram cartas, fizeram visitas aos consulados ingleses e americanos, mas foram rejeitados. Faz sentido, espionagem é coisa séria, com uma guerra prestes a estourar, dois jovens idealistas mas inexperientes só dariam trabalho.

Só que Pujol era mais que um jovem idealista, ela um sujeito altamente inteligente, e não se deu por vencido. Se os Aliados não o queriam, talvez os Alemães tivessem interesse.

Pujol criou uma identidade falsa, fingiu ser um diplomata espanhol em Lisboa, com livre trânsito entre Portugal e Londres. Arrumou passaporte falso, documentos e começou a vender a imagem de que era um nazi-fascista fanático. Quando ele procurou o contato da Inteligência Alemã em Madrid, sua fama o precedia, e o chucrute não teve dúvidas.

Contratou Pujol na hora, ensinou como utilizar cifras, tinta invisível, métodos de aliciar e gerenciar contatos, e como fazer um Strudel batido, não misturado. OK, essa última parte eu inventei.

Ele também recebeu 600 Libras para despesas, o que em 1940 era dinheiro pra caramba. A ordem era seguir para Londres e montar uma rede de agentes. Pujol, entretanto, tinha outras idéias.

Se mudou de mala e cuia para Lisboa. Lá ele comprou guias de viagem, mapas de Londres, jornais ingleses e começou a montar uma rede de agentes. Totalmente fictícia.

Seus relatórios eram baseados em informações totalmente públicas, ele compilava o que achava na Biblioteca Pública de Lisboa, inventava o resto e repassava para seu contato alemão em Lisboa. A justificativa para a informação ser passada em Portugal era para evitar suspeitas, e ele estava usando os serviços de um piloto da KLM simpático à causa que, por dinheiro, fazia o serviço de courier. O piloto, claro, também era fictício.

ARABEL, como era seu codinome para os alemães, era um excelente agente. No auge sua rede de espionagem chegou a ter 27 personagens fictícios, com codinomes, biografias, relatórios de despesas e estilos de escrita. No total os alemães pagaram mais de US$340 mil (em dinheiro dos Anos 40) para manter a rede no ar.

Os ingleses por sua vez ficaram desesperados. Alan Turing e o resto dos analistas em Bletchley Park estavam decodificando mensagens de uma rede de espiões em solo inglês, e ninguém conseguia identificar seus membros. Muito tempo e dinheiro foi gasto nessa caçada.

Mais tempo e dinheiro ainda gastaram os alemães. ARABEL mandou uma esquadra inteira atrás de um comboio inexistente, e a estratégia alemã era baseada em informações muitas vezes inventadas.

Em 1942 ele tentou de novo falar com os Aliados. Contactou os americanos, e como tinha toneladas de informações, o tratamento foi outro. Repassado para o MI5, Pujol foi convidado a ir (pela primeira vez em sua vida) para Londres. Depois de dois anos finalmente ARABEL colocaria os pés no país onde convencera Berlim que residia desde 1940.

Com apoio oficial GARBO (seu codinome inglês) se tornou agente-duplo, enviando de vez em quando alguma informação suculenta, mas na maioria das vezes só despistando. Não que os alemães percebessem, estavam tão satisfeitos e tão sobrecarregados de informação da rede de GARBO que nem tentaram montar novas redes de espionagem em Londres.

Sim, é pitoresco que as imagens mais divulgadas de GARBO e Araceli sejam da ficha de identificação de ambos no Consulado Brasileiro em Lisboa. Nós, mais uma vez sendo parte acidental da História.

 

Um dos grandes feitos foi quando o “piloto” ficou lento demais, pois dependia da escala de horários da KLM entre Londres e Lisboa. GARBO passou a enviar mensagens por carta, o que também era lento. GARBO então sugeriu um rádio.

Os alemães toparam, enviaram o equipamento E o mais poderoso sistema de cifras manuais. GARBO enviava as mensagens criptografadas por rádio, elas eram recebidas em Madri, recodificadas em uma máquina Enigma e transmitidas para Berlim.

A turma do Alan Turing recebia então a Pedra da Roseta da criptografia, a mensagem original E a mensagem criptografada. Isso ajudou enormemente no trabalho de quebra do algoritmo da máquina Enigma.

Algumas vezes GARBO enviava informações precisas, mas para não prejudicar os aliados, faziam umas marmotagens. Quando os aliados invadiram a África do Norte, GARBO enviou uma mensagem por carta avisando do comboio de tropas que havia partido. Só que o carimbo foi adulterado para uma data anterior, e a carta chegou tarde demais. Mesmo assim Berlin deu parabéns, disseram que o relatório estava “magnífico”.

Ah sim, o operador de rádio também era fictício e GARBO fez com que os alemães pagassem o salário dele também.

Certa vez uma frota de navios de guerra saiu de Liverpool e os alemães não foram avisados. O agente de GARBO em Liverpool era como todos fictício, e ele não sabia do comboio. Para os alemães não desconfiarem ele disse que o agente havia ficado doente. Alguns dias depois um obituário em um jornal local anunciou a morte do tal agente. Os alemães ficaram tão convencidos que por sugestão de GARBO, passaram a pagar uma pensão pra igualmente fictícia viúva.

O momento de glória para GARBO foi durante a Operação Fortitude, quando os Aliados montaram os preparativos para uma invasão falsa em Pas-de-Calais, com o objetivo de convencer Hitler de que seria lá o ataque inicial do Dia D.

O General Patton comandou todo um exército falso, com tanques de borracha, aviões de madeira e operadores de rádio transmitindo o equivalente ao tráfego diário de várias divisões, enquanto as forças aliadas reais se concentravam em outro ponto. GARBO confirmava as informações dos aviões de reconhecimento.

As mensagens de GARBO chegaram a ser entregues diretamente a Hitler, e mesmo quando as tropas começaram a desembarcar na Normandia, GARBO avisava que o exército (fictício) de Patton não havia se deslocado, e que a Normandia podia ser só uma manobra de despistamento. Por causa disso várias divisões alemãs permaneceram em Calais.

Quando Araceli bateu boca com Tom Harris, foi pra casa chutando cachorro na rua e abriu todos os bicos de gás, Harris diz que com 90% de certeza só queria chamar atenção. Ele chegou a mandar a esposa para acalmar Araceli, que queria botar a boca no trombone às portas do Dia D.

Garbo então sumiu por vários dias. Ele havia se tornado um risco de segurança, estava incomunicável em uma prisão militar. Após muito insistir, Araceli foi vendada, colocada em um carro que rodou por algumas horas, até que chegou em uma base do exército e, na prisão, encontrou o marido.

Foi explicado que ele seria libertado SE não representasse risco, e no momento ela era o risco. Araceli entendeu o recado, baixou a crista, parou de fazer ameaças e até o fim da guerra não falou mais em voltar pra Espanha nem denunciar a Rede GARBO.

O que ela não sabia é que a prisão do marido havia sido idéia dele mesmo. Ele sabia que Araceli não poderia ser convencida de outro modo. Certamente enganar a esposa foi mais complicado e perigoso do que enganar todo o Terceiro Reich.

Se ela tivesse revelado o que sabia Hitler estaria preparado para a Invasão da Normandia, e o destino da Guerra poderia ser outro.

Pujol eventualmente se separou de Araceli, casou de novo, forjou a própria morte por malária em Angola, 1949 e se mudou para a Venezuela, levando uma vida tranquila e anônima. Ele só foi redescoberto em 1984, quando um político e jornalista inglês realizou uma imensa investigação para detalhar a história de GARBO. Levado de volta para a Inglaterra ele visitou o Palácio de Buckingham, reencontrou vários amigos, foi honrado, celebrado e voltou para casa.

Juan Pujol García morreu em Caracas, em 1988 aos 76 anos. Sua contribuição pra o esforço de guerra foi reconhecida, ele foi agraciado Cavaleiro, recebendo a Ordem do Império Britânico. Mas essa não foi sua única honraria. Em 1944 ele já havia recebido a Cruz de Ferro, Primeira Classe, por seus esforços para o esforço de guerra da Alemanha…



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