A heroína polonesa e o nazista mais distraído do mundo

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Eduard Rugemer era um major do Exército Alemão que em um raro momento de humanidade se comoveu ao ver uma jovem polonesa desmaiar de exaustão a seus pés, após horas de trabalhos forçados em uma fábrica de munições.

A jovem de 19 anos era Irene Gut Opdyke, e sua vida e a do major iriam se entrelaçar completamente nos próximos anos, mas não se anime, isso é tudo menos uma história de amor.

Irene era de família católica, então ao menos teoricamente imune às atrocidades nazistas. Ou ao menos não era prioridade. Mesmo assim ela ficou horrorizada ao testemunhar como os soldados tratavam os judeus. Marcado para sempre em sua mente ficou o momento em que ela viu soldados lançarem um bebê para o alto, atirando em seguida, como um treino de tiro ao alvo.

Mesmo assim foi um alemão, o Major Rugemer, que conseguiu uma transferência, mandando Irene para Ternopil, hoje Ucrânia (por enquanto) mas na época Polônia. Lá ela foi alocada para fazer serviços de lavanderia e trabalhando numa cantina.

Irene continuou a conviver com a comunidade judaica de escrav-digo, prisioneiros com empregos, e aproveitava sua condição de cidadão não-judia mais ou menos livre para contrabandear comida e remédios para o gueto, e ajudar judeus em fuga.

Eventualmente, o Major decidiu se mudar para uma vila na periferia da cidade, e ofereceu a Irene uma vaga como governanta. Ela aceitou, pois ganharia mais liberdade para suas ações humanitárias subversivas.

Com o tempo ela foi ficando mais saidinha e ousada, passou a abrigar fugitivos judeus no porão da casa do Major Rugemer. Ao todo foram 12 refugiados, que se escondiam durante a noite, e de dia quando o Major saía para trabalhar, os judeus ajudavam Irene nas tarefas domésticas. Tipo ratinhos da Disney, mas acho que essa não é uma imagem muito politicamente correta, melhor apagar.

Com a casa um brinco, comida quentinha e nada a reclamar, a vida do Major era boa, comandando a oficina de reparo de veículos militares da cidade. Irene também se acomodou, e passou por alguns perrengues, como quando um oficial da Gestapo apareceu sem avisar, com a casa cheia de judeus, e ela molhou o cabelo, se enrolou numa toalha e explicou que estava no banho, por isso demorou a atender a porta.

A casa caiu um dia em que ela presenciou uma execução, voltou tão abalada que esqueceu de trancar a porta. A porta trancada era o truque principal para evitar que o Major chegasse sem avisar.

Nesse dia o Major chegou sem avisar, e provavelmente proferiu as palavras de Jack Nicholson no delicioso Melhor Impossível:

“Tem judeus na minha mesa!”

Sim, e a Cuddy e o Taub, de House.

Irene ficou desesperada, correu até o Major, se ajoelhou, beijou as mãos dele e pediu perdão. Sem dizer uma palavra ele girou nas botas, e foi pra rua. Ela não sabia o que fazer. Ele iria chamar a Gestapo? Voltaria com soldados e mataria todo mundo?

Tarde da noite o Major voltou, cheirando a álcool, agarrou Irene e deu as condições para não delatar a governanta e entregar os judeus à Gestapo: Irene teria que se tornar sua amante.

Irene, então com 20 anos teria que voluntariamente se entregar aos desejos sexuais do alemão de 60 anos de idade. Engolindo em seco, ela aceitou. Mais tarde ela se recordaria que ser obrigada a fazer sexo com o Major era “pior que estupro”, e Irene tinha como comparar, com 17 anos ela foi estuprada repetidamente por um grupo de soldados russos, durante a invasão da Polônia.

Irene Gut Opdyke

Irene manteve segredo das condições de seu acordo com o Major, ela sabia que os judeus “dela” não aceitariam, e prefeririam se entregar, mas ela manteve a coragem. O Major, por sua vez, cumpriu sua parte, mantendo os judeus seguros mesmo quando apareciam tropas da SS na região.

Em 1944 a situação começou a mudar, as tropas russas estavam avançando e o Major logo seria obrigado a fugir também. Irene o convenceu a permitir que os judeus saíssem para construir um esconderijo na floresta, e aos poucos eles foram mudando para o novo abrigo.

Com o fim da Guerra, Irene voltou para a Polônia, apenas para descobrir que seus pais haviam sido presos pelos soviéticos, sua família inteira caíra em desgraça, ela era vista como uma guerrilheira, não-confiável, provavelmente espiã.

Ela acabou fugindo para a Alemanha Ocidental, e depois migrou para os Estados Unidos, onde nunca mais falou sobre a Guerra, até que um dia ela ouviu a mãe falar ao telefone com um estudante universitário negacionista do Holocausto, que havia ligado procurando relatos para corroborar sua abjeta teoria.

Irene, contando mais uma vez suas terríveis experiências.

Irene percebeu que ela deveria tornar sua história pública, corroborada por vários judeus sobreviventes, incluindo Roman Haller, que havia nascido durante a estadia no porão do Major.

Em 1982 Irene Gut Opdyke recebeu do Estado de Israel o título de Justa Entre As Nações, honraria dada a gentios que por seus esforços ajudaram a preservar a vida de judeus durante o Holocausto.

Em 1995, durante uma visita aos Estados Unidos Irene se encontrou com o Papa João Paulo II, na sinagoga Shir Ha-Ma’alot, quando recebeu uma Bênção Papal, por seus feitos heróicos protegendo os refugiados durante a Guerra. Segundo ela, foi o maior presente que poderia receber.

Irene Gut Opdyke morreu em 2003, aos 81 anos. Sua história preservada em seu livro In My Hands: Memories of a Holocaust Rescuer, incontáveis descendentes vivos de seus tão bem-guardados judeus, a prova de que ela fez a coisa certa.

Irene, em tempos melhores.

Quanto ao Major Rugemer, ele voltou para casa em Nuremberg, apenas para ser execrado por sua esposa e filhos. Os boatos eram que ele havia abrigado judeus. Sem ter aonde ficar, sem dinheiro ou amigos, o velho nazista ficou ao relento, até que sua situação chegou aos ouvidos dos pais de Roman Haller, que haviam vivido escondidos no porão do Major.

Em uma irônica reviravolta, os judeus que viviam sob os pés do alemão agora ofereciam a ele abrigo e comida. O Major aceitou, e viveu com a família Haller até 1955, quando veio a morrer.

Só que… um momento. O Major, adúltero, abusador, como essa família pode ser tão altruísta? Que judeu abrigaria um nazista assim? Tem angu nesse caroço, certo?

Certíssimo.

Moralmente o Major Edward Ruegemer não era grande coisa, ele sem sombra de dúvida usou e abusou de Irene, mas os 12 moradores do porão não eram os únicos judeus com que ele convivia.

Na oficina que comandava, era usada mão-de-obra forçada, como em quase toda operação nazista, mas o Major tratava os “seus” judeus “com grande bondade e tentou aliviar sua situação onde quer que pudesse.”

Eles recebiam boa alimentação, incluindo para as famílias, e tinham turnos normais, sem serem obrigados a trabalhar até cair. Outros judeus do gueto invejavam os trabalhadores do Major, que brigava feio por eles.

De vez em quando apareciam oficiais da SS querendo recolher judeus aleatoriamente para execuções. O Major botava os nazistas para correr. Quando o Comando decidiu acabar com o Gueto e criou campos de concentração, o Major conseguiu que seus trabalhadores recebessem acomodações e alimentação especiais.

Quando o Campo estava prestes a ser fechado, o Major avisou seus trabalhadores, chegando a esconder entre 10 e 12 deles em seu carro, levando-os até a floresta, para que fugissem.

É possível entender a raiva do Major quando descobriu os judeus de Irene. Ele já fazia tudo que podia, já era mal-visto entre os outros nazistas. Se o Comando descobrisse judeus em sua casa, ele seria fuzilado sem muita cerimônia, e uma guria de 19 anos não era exatamente uma estrategista.

Por isso mesmo o simples fato de não ter botado todo mundo na rua mostra o comprometimento do Major. Ele trabalhou ativamente para que os judeus permanecessem em segurança. Em uma ocasião dois soldados viram alguns dos refugiados na casa de Ruegemer. O Major conseguiu que fossem transferidos para a Frente Russa.

Franciska Willner, uma das judias refugiadas na casa do Major, escreveu:

“O senhor Rügemer não apenas salvou nossas vidas, mas durante todo esse período terrível provou ser a única pessoa humana entre os animais. Isso é especialmente admirável, pois ele estava totalmente ciente do perigo que estava correndo.”

Irene Opdyke e Roman Haller

Vários dos judeus que conviveram com o Major com o fim da guerra correram para registrar depoimentos por escrito, contando tudo que ele havia feito por eles, mesmo sob grande risco. Quando conseguiram seu endereço, começaram a se corresponder com ele. Franciska Willner o tinha como um pai.

Durante sua estada com os Haller, o Major se tornou o avô que Roman nunca conheceu. Em 2009, durante uma entrevista Roman Haller falou, sobre o Major:

“Eu o amava, nós costumávamos andar pelas ruas, ele segurando minha mão”.

O Major Ruegemer, Ida Haller e seu filho, Roman Haller.

Uma campanha foi crescendo, para que o Major Edward Ruegemer fosse reconhecido, não como um nazista, mas como um ser humano, e em 2014, décadas depois, isso aconteceu. Em uma cerimônia em Allersberg, Alemanha, Erich Rugemer, filho do Major recebia do Estado de Israel a condecoração, tornando seu pai um Justo Entre As Nações. Junto dele, Roman Haller, vendo finalmente seu avô-postiço ser reconhecido.

Erich Ruegemer, segundo da esquerda, recebe o título outorgado a seu pai. Roman Haller, primeiro da direita, demonstra estar bem feliz com a homenagem.

Em resumo, crianças: Pessoas são coisas complexas.

Fontes:



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