Yakov Grichener era um soldado romeno, convocado para servir no Exército Soviético em Leningrado. Com o cerco nazista, a cidade estava passando extrema fome. Era preciso ir longe atrás de comida, e Yakov se viu em Murmansk, a 1000Km de distância, comandando um barco com 18 soldados, com a missão de transportar para terra as eventuais provisões que chegariam por mar.
Ele conta que o mar estava agitado e achou que o navio americano não conseguiria atracar. Nem tentaram,, lançaram âncora ali mesmo.
“Os americanos foram muito espertos, apenas abriram portas de ferro na lateral do navio, e nós navegamos para dentro.”
Seus olhos se arregalaram quando viu sacas e sacas de farinha “com a água americana e a inscrição Made In the USA”
Ele e os soldados aguardaram as ordens sobre o quê descarregar, quando um marinheiro se aproximou com uma grande lata de presuntada e abriu a tampa com uma faca.
“O aroma saiu e nossas bocas começaram a salivar”
O marinheiro cortou a presuntada em vários pedaços e disse “OK camaradas, help yourselves”
Yakov conta que ficou confuso, ele havia estudado inglês na Romênia,
“então eu sabia o que help significava, mas help você mesmo? e não sabia que naquele contexto significava “sirvam-se”.
Eles perguntaram ao marinheiro se ele precisava de ajuda, e como poderiam ajudar. O marinheiro riu, comeu um pedaço da presuntada, e gesticulou para os russos.
“Nós não precisávamos de mais explicações. Atacamos.”
O marinheiro riu de novo, e conseguiu outra lata, devidamente devorada.
“Muitos dos soldados russos começaram a chorar. Havia dois anos que nós não víamos carne.”
(conheça a história completa de Yakov Grichener aqui)
A presuntada, mais conhecida como Spam foi essencial. Nikita Khrushchev escreveu em sua biografia que “Se não fosse o Spam [americano] não teriam conseguido alimentar as tropas e vencer a guerra”.
O navio onde Yakov fez sua primeira refeição decente em dois anos foi parte de um dos 78 comboios do Ártico, onde entre 1941 e 1945 1400 navios americanos ingleses e canadenses enfrentaram um dos piores climas do planeta, tentando aliviar a situação calamitosa da União Soviética. 85 navios mercantes e 16 vasos de guerra fizeram o sacrifício final.
Esses comboios não são muito comentados, EUA e Inglaterra não gostam de lembrar que precisaram da ajuda dos russos, e os russos adoram fomentar a fantasia de que ganharam sozinhos a Grande Guerra Patriótica, mas Murmansk se lembra, e um monumento existe para que ninguém se esqueça.
Embora importantes, os comboios do ártico foram apenas parte do sistema Lend-Lease, onde principalmente os EUA (mas também Inglaterra e Canadá) forneciam suprimentos e equipamentos a países aliados, um modelo que pode ser basicamente descrito como “depois a gente acerta”.
Uma guerra é vencida em várias frentes, a maioria delas, doméstica. A população precisa ser favorável, coisa que não aconteceu por exemplo no Vietnã. As campanhas de arrecadação de alumínio, com as mulheres levando panelas que seriam transformadas em aviões eram essencialmente instrumentos para melhorar a moral, a quantidade de alumínio necessária para fazer aviões era imensamente maior do que todas as panelas do país. As doações nem arranharam as necessidades.
Outro fator é a economia. Países se endividam a curto prazo em troca de um estímulo na produção industrial. Regra de Aquisição Ferengi #34: Guerra é Bom Pros Negócios. Pergunte ao Brasil, que vendeu armamentos para os dois lados, na guerra Irã-Iraque. Só que poucas coisas são piores para o PIB de um país do que bombas.
Os EUA estavam na invejável posição de participar de uma guerra onde o inimigo não tinha como atingir diretamente sua infraestrutura. e isso fez toda a diferença. Enquanto os outros envolvidos produziam muito mas toda hora o crescimento era interrompido com uma fábrica bombardeada.
A guerra inclusive chegou na hora certa, a economia americana estava começando a ratear depois de ter se recuperado do baque da crise de 1929.
Em 1939 o PIB dos aliados, excluindo os EUA ficava na casa dos 829 bilhões de dólares (em valores de 1990). O do Eixo era de 685 bilhões. Graças aos avanços, destruição de infraestrutura e conquista de dois territórios à sua escolha mais a Oceania, em 1942 o PIB do Eixo havia crescido para 786 milhões e o dos aliados caído para 776. (fonte)
Só que em 11 de Dezembro de 1941 os EUA entraram na Guerra, com um PIB de 1235 bilhões de dólares.
Essa capacidade de produzir muito sem a preocupação de bombardeiros inimigos dizimando suas cidades permitiu aos EUA arcar com perdas horrendas como os comboios do Atlântico, dizimados pela matilhas de U-Boats.
Um excelente exemplo dessa capacidade industrial foram os cargueiros chamados de Liberty Ships, construídos para manter o fluxo de suprimentos para os aliados e tropas americanas na Europa. Seguiam um modelo padronizado, com 14 mil toneladas e 134 metros de comprimento.
Entre 1941 e 1945 foram construídos 2710 navios. Isso dá 542 navios por ano. Os 18 estaleiros contratados produziam uma média de 1.5 navios por dia. Se você tem a mais leve e remota noção do trabalho envolvido na construção de um navio sabe o quão insano esse número é.
Os russos não foram os únicos a usufruir do sistema Lend-Lease. Na verdade nem foram os maiores. Stalin recebeu US$150 bilhões em valores atuais. O total em bens enviados aos ingleses chegou a US$418 bilhões. Até o Brasil entrou nessa, e muito bem.
O Lend-Lease foi fundamental para financiar nossa industrialização, nós fomos 5º país que mais recebeu recursos, o equivalente a US$5 bilhões hoje em dia. Até o Paraguay recebeu US$27 milhões.
As propagandas (e críticas) vendem o Lend-Lease como um sistema onde você empurra seus produtos para o outro país e pronto, mas isso é injusto. E sequer era somente material bélico. Pouco menos da metade do material fornecido aos russos eram diretamente relacionados com combate. O Lend-Lease foi essencial para manter o país como um todo rodando.
Durante a Guerra, além de caças Air Cobra e tanques, os russos receberam 6000Kg de… papel carbono. E 10 banheiras.
Claro, também receberam 1168 locomotivas.
1168 locomotivas, mais de 900 vagões de carga. As estradas de ferro russas foram basicamente construídas com o Lend-Lease.
A lista é imensa, incluindo 1237 toneladas de sabão em pó, 1Kg de Urânio metálico, 1Kg de Água Pesada, 166 mil toneladas de alumínio em lingotes, 255 máquinas de escrever e 155 dúzias de fitas sobressalentes. Ah, e 2 milhões de charutos, e 2 pianos novos.
Neste link aqui você encontra a lista completa. Note que são os produtos enviados para os russos, a Inglaterra recebeu três vezes isso.
Todos esses recursos, mas a inegável coragem dos russos, enfrentando nazistas de um lado e um líder louco megalomaníaco que adorava matar generais do outro, foram fundamentais para a Vitória. Sem os soldados bem armados os russos não teriam vencido no fronte ocidental, e só com os recursos os americanos ficariam sentados em suas fábricas esperando Hitler desenvolver o míssil V3 ou os bombardeiros de longo alcance. Talvez até sua bomba atômica.
Coragem sozinha não vence guerras, é preciso coragem e recursos. Para nossa sorte os Aliados tinham os dois.
Originalmente os produtos enviados no Lend-Lease seriam doações, mas o Congresso não aprovou, então eles foram vendidos com 90% de desconto. Com o fim da Guerra os EUA mandaram os boletos, a Inglaterra só terminou de pagar a última parcela no dia 29 de Dezembro de 2006. Já os russos nem isso.
Os EUA pediram US$1,3 bilhões pra acertar as contas. Moscou fez uma contra-oferta de US$170 milhões. Washington colocou os russos no SPC e no SERASA, ficaram de bate-boca e só e acertaram em 1972, quando um pagamento de US$722 milhões, na forma de suprimentos de grãos (de comida, não de dinheiro) encerrou a disputa. No final todo mundo saiu no lucro, o Lend-Lease representou 17% de todo o dinheiro que os EUA gastaram na guerra, e evitou que a gente tivesse que aprender alemão, que é danado de difícil.
Em conclusão: O ocidente malvado capitalista não foi salvo de Hitler pelos corajosos soldados russos. Os EUA colocaram além de 12 milhões de soldados, uma quantia imensa de dinheiro e recursos em prol dos aliados. Sem a participação dos EUA os aliados teriam perdido. SÓ os EUA contra o eixo, os EUA teriam perdido.
Para desespero da turma que polariza tudo, a Segunda Guerra Mundial é um inegável exemplo de cooperação, respeito a diferenças e gente díspar se unindo em prol de um Bem Maior.
Claro, dito isso tudo, continuo encafifado com uma parte do Lend-Lease que ninguém ainda explicou:
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Quem diabos foi o sujeito que encomendou um cachimbo e uma espingarda?