A noção que a gente tem de escravidão no Brasil vem basicamente de desfiles de escola de samba e novelas da Globo, com aquela clássica imagem de negros descamisados presos com grilhões e vivendo em senzalas acorrentados, mas a realidade, como sempre, é bem mais complexa.
Nos EUA a gente imagina a mesma coisa, com um pouco mais de roupa e o Django eventualmente libertando todo mundo, e um viajante do tempo millenial se surpreenderia com escravos andando normalmente nas ruas, vivendo suas vidas e inclusive morando em suas próprias casas.
O que não quer dizer que fosse uma vida fácil. O sujeito ainda era propriedade de alguém, e se fugisse a punição seria severa. Pra piorar, o dono do escravo costumava colocar o cara pra trabalhar e exigia uma gorda fração do salário dele. Mais ou menos como um trabalhador terceirizado de hoje em dia.
Ou seja: O escravo tinha que trabalhar feito um escravo pra pagar aluguel, comida, roupas E o percentual do patrão.
Não que algum fosse bonzinho mas alguns donos de escravos eram especialmente filhos da puta, como o dono de Henry Brown.
Filho de escravos, segundo a Lei do Ventre Preso Henry Brown nasceu em escravidão em 1816, em uma fazenda no Condado de Louisa, Virgínia. Talvez por usar o método Paulo Freire, seu patrão nunca espancou ou deixou seus escravos passarem fome, mas -de novo- não deixou de ser um FDP.
Henry trabalhava em uma tabacaria, mas o patrão ficava com parte do salário. Um dia ele pediu permissão para casar-se, recebeu e se embolou com uma moça chamada Nancy, com a qual teve três filhos. O patrão então começou a chantagear Henry, dizendo que se ele não pagasse determinada quantia todo mês, iria vender Nacy e os pirralhos para outra fazenda.
Ou melhor, para ser honesto nem foi o patrão, foi a mulher dele quem organizou a chantagem. Ele foi só pau-mandado.
Vendo sua esposa de 12 anos grávida (nota: Não cancelem Henry, a esposa não tinha 12 anos, eles eram casados há 12 anos) (nota da nota: Há ou à? Tanto faz, você entendeu) ser levada embora para sempre fez algo estalar na mente de Henry Brown.
Ele decidiu que não iria mais ser escravo de ninguém, e começou a pensar em formas de escapar para os Estados do Norte, aonde escravidão era ilegal.
Era o chamado Antebellum, o período pré-Guerra Civil, então não havia ainda confusão de fronteiras, as forças da Lei estavam de olho, era muito complicado para um escravo escapar sem ser visto.
Henry então teve uma idéia: Usar o Sistema contra o Sistema. Primeiro ele contactou por carta um grupo abolicionista na Pennsylvania. (sim, escravos podiam trocar correspondência com quem quisessem)
Com ajuda de James C.A. Smith, um negro livre local e Samuel Smith, um sapateiro branco e personagem de filme que conhece todo mundo e arruma qualquer esquema, Henry empregou o equivalente hoje a US$2643 para viabilizar seu plano.
Eles conseguiram um marceneiro para projetar e construir uma caixa com buracos para respiração e estrutura para suportar o peso de um homem adulto. No dia da fuga Henry Brown se queimou propositalmente com ácido sulfúrico, para pedir o dia de folga. (fábricas de tabaco em 1849 ainda não tinham banco de horas)
Ele entrou na caixa, levando apenas água e bolachas. Ela foi fechada com pregos e correias, e despachada pela Adams Express Company para o endereço de Passmore Williamson, um abolicionista na Filadélfia.
Saindo de Richmond, Virgínia, são 398Km até a Filadélfia, mas como as autoestradas de 1849 eram tão inexistentes quanto os aeroportos, a viagem levou 27 horas, um tempo ainda melhor do que a maioria das minhas encomendas que fazem o trecho Rio-São Paulo.
A caixa tinha vários avisos de “este lado para cima” e “cuidado, frágil”, mas claro que ela foi tratada com o mesmo cuidado e atenção que sua bagagem em uma United da vida (sorry, Lito).
Henry viajou, às vezes de cabeça pra baixo de carroça, trem, vapor, carroça, trem, barca, trem e carroça, até chegar ao destino e sair triunfante da caixa, na frente de um grupo de abolicionistas. Eu gostaria sinceramente que ele tivesse dito “Tadá….” mas suas primeiras palavras foram “como estão, cavalheiros?” seguidas de um salmo da bíblia, que quase com certeza infelizmente não era Ezequiel 25:17.
Ele se tornou palestrante, se apresentando em eventos de grupos anti-escravidão, contando sua história e divertindo platéias com sua mirabolante fuga, que fez todo mundo do Sul de idiota.
Aos poucos Henry foi incorporando novos feitos às suas histórias, mas em 1850 ele fez seu melhor truque, desapareceu. Foi o ano em que os Estados do Norte, tentando evitar uma Guerra Civil aceitaram a criação do Fugitive Slave Act, uma legislação que é considerada uma das causadoras da Guerra Civil. Ops.
Segundo a Lei escravos fugitivos poderiam ser capturados mesmo nos Estados aonde escravidão era ilegal, e as autoridades locais deveriam colaborar na busca e apreensão dos fujões.
Sem pensar duas vezes, Henry “Box” Brown, como era conhecido agora se mandou pra Europa, aonde se apresentava reencenando sua história para uma sociedade encantada com a inventividade, chocada com a escravidão e que não aprenderia NADA, repetindo nos próximos anos os mesmos erros e barbarizando nas colônias da África, né, Leopoldo?
Como ao contrário da militância de 2020 Henry não acreditava que miscigenação era genocídio, ele acabou se enrabichando por Jane Floyd, uma moça branca, filha de um metalúrgico, e em 1855 eles se casaram.
Henry continuou com seus shows, escreveu sua autobiografia e começou a incorporar mágica e hipnotismo em seu ato. Ela gostava de usar roupas espalhafatosas e se vender como Príncipe Africano, enquanto hipnotizava a platéia e fazia voluntários latirem ou cacarejarem.
Com o fim da Guerra Civil ele e a nova família se mudaram para o Canadá, aonde Henry Brown viveu feliz e em paz, fazendo seus shows e palestras, até morrer aos 81 anos em 1897.
Reza a lenda que três escravos brasileiros tentaram escapar da mesma forma que Henry Brown. Dois ainda estão em Curitiba, o terceiro ainda não saiu de Cajamar.