Eu não sei se é entusiasmo por viverem um momento de aceitação, mas eu tenho percebido um padrão na Turma do Alfabeto (tm Dave Chapelle). Toda hora adoram celebrar sua existência, o que é ótimo, mas param nisso. Quando alguém se declara trans é ovacionado, mas se de um lado temos a visibilidade, todo o resto da pessoa é apagado.
Hoje se celebra a Nicole Maines e a Jamie Clayton por serem atrizes trans, mas quando você quer existir em pé de igualdade na sociedade, tem que remover rótulos, não agregar. Será que essas atrizes não preferem ser vistas como grandes atrizes ponto, ao invés do subconjunto grandes atrizes trans?
Isso lembra muito o excelente primeiro arco do Miles Morales, o Homem-Aranha de ascendência negra e hispânica. Em uma parte da história uma vlogueira SJW lacradora celebra o Homem Aranha ser uma “pessoa de cor”, enquanto isso Miles fica melindrado. Ele não quer ser o “Homem-Aranha Negro”, ele quer ser o Homem-Aranha.
EU prefiro encarar as pessoas trans com base em seus méritos, conquistas e idéias, mas eu sou minoria. O povo gosta de festa, e Pabblo Vitar, que nem trans é será muito mais celebrado e conhecido do que uma mulher como Sophie Wilson, mas eu vou tentar mudar isso e mostrar como ela é importantíssima e mudou o mundo muito mais do que qualquer ex-participante do Ru Paul Drag Race.
Sophie, nascida Roger Wilson em 1957 deu a sorte de ter pais professores, o que a levou a se interessar por ciência e tecnologia desde cedo.
NOTA: estou escrevendo no feminino não pra agradar à lacração, mas porque já entreguei que Sophie é trans, então não rola surpresa no final do texto, e segundo porque Sophie é absolutamente discreta sobre sua transição, não há matérias, fotos em paradas desfilando bandeiras, nada. Todas as suas entrevistas são sobre suas contribuições técnicas, então se pra ela é irrelevante tocar nesse ponto, eu respeito.
Entre se formar no Segundo Grau e ingressar na Faculdade, Sophie arrumou um emprego na ICI Fibre Research, que pesquisava fibras têxteis, não ópticas. Uma das primeiras tarefas de Sophie foi construir um detector de dobras, usando sensores para identificar se algum fio havia arrebentado e se embolado.
Ela se debruçou na bancada, começou a rascunhar, puxar peças das gavetas, e construiu um detector funcional, apenas para ganhar um esporro do representando do Sindicato. Ela JAMAIS poderia ter terminado o trabalho em apenas meio-dia, era pra demorar mais.
Sophie começou a projetar equipamentos mais sofisticados, e a brincar com a grande novidade de 1976, o processador 6502, usado no Apple II, entre outros muitos computadores.
Já em Cambridge ela foi reprovada em matemática e acabou fazendo computação pra não perder o ano. Nessa mesma época Sophie já era figura conhecida na Cambridge Microprocessor Society, um daqueles clubinhos que estudantes adoram criar.
Ela acabou chamando a atenção de Hermann Hauser, um empreendedor austríaco, mas não no mau sentido se empreendedor austríaco.
Her Hauser tinha dois problemas: Odiava secretárias e adorava perder compromissos. Ele chamou Sophie para descrever um equipamento que poderia ser basicamente uma agenda eletrônica como conhecemos hoje. Sophie respondeu que era tranquilo fazer algo do gênero, e começou a trabalhar, mas meio sem perceber ela acabou expandindo o design de módulos de um conceito de computador pessoal que ela estava matutando já a algum tempo.
Quando eles se reuniram de novo, três semanas depois, Sophie estava com uma pasta repleta de esquemas, circuitos e projetos. Hauser viu que eram bem mais complexos que sua agendinha. Perguntou se ela seria capaz de construir aquilo. “fácil”.
Sophie acabou contratada por Hermann Hauser e seus projetos viraram o Acorn System 1, primeiro computador da nova empresa. Depois disso a Acorn produziu máquinas mais e mais poderosas, incluindo o BBC Micro, um computador voltado para estudantes e iniciantes que vendeu mais de 1,5 milhões de unidades.
Com o tempo a Acorn precisou desenvolver placas de expansão para permitir que os Acorns rodassem um segundo processador, mas as alternativas disponíveis não atendiam. A tarefa caiu nas mãos de Sophie Wilson e Steve Furber.
Depois de descobrir que a MOS, fabricante do 6502 não tinha uma equipe imensa, eles decidiram que seriam capazes de projetar um microprocessador por conta própria, uma tarefa que não é NADA trivial.
Para facilitar, escolheram a arquitetura RISC, que eu descrevo em detalhes neste excelente artigo aqui.
Sophie como boa inglesa de qualquer gênero, fez boa parte do trabalho no pub, os designs iniciais foram desenhados em um guardanapo, e ela projetou sozinha todo o conjunto de instruções do novo processador, e conhecia todas de cabeça, também.
O tal processador foi batizado de Acorn Risc Machine, mais conhecido como ARM, e eu sei que você já ouviu esse nome.
Além da linguagem com a qual o ARM se comunicava com o mundo, Sophie projetou o BASIC do BBC Micro, compiladores, monitores assembler, ferramentas de debugging e desenvolvimento e tudo mais que a Acorn precisava para escrever os programas que rodariam em seus computadores.
Ela trabalhava no que a gente chama direto no metal, não havia nenhuma camada de abstração entre o processador e o software escrito por Sophie. É um nível de conhecimento que não se vê mais, ninguém sai da faculdade com mais que uma leve noção teórica dessas coisas.
Com o tempo o ARM se desdobrou em uma empresa própria, se tornando a arquitetura preferida para sistemas embarcados, computação móvel, telefonia, etc. Até 2020 foram produzidos 160 BILHÕES de chips ARM no mundo. 90% dos celulares usam ARM.
O trabalho de Sophie Wilson toca literalmente a maior parte da humanidade, seja no celular, no tablet, no chip que controla o elevador ou no caixa eletrônico no interior da Nigéria.
Ela conseguiu isso tudo mesmo enfrentando uma sociedade que era tudo menos favorável à causa LGBT. Sophie nasceu em 1957, no Reino Unido homossexualidade só se tornou legal em 1967, imagina a transexualidade, que era bem menos tolerada ou compreendida.
Felizmente Sophie soube se impor e a qualidade inegável de seu trabalho silenciou todos os comentários maldosos, olhares de lado e conversas de bebedouro, e em 1994 Sophie passou por uma cirurgia, completando sua transição.
Ao contrário de outro gênio da computação britânica não-ortodoxo, Alan Turing, a história de Sophie teve final feliz. Ela é considerada uma das maiores cientistas da computação da História, tem um doutorado honorário por Cambridge, se tornou membro da Royal Society e em 2019 ganhou da Rainha o título de Commander of the Order of the British Empire, uma das maiores condecorações do país.
Em um mundo fundamentalmente injusto temos um raro caso aonde uma pessoa teve seus méritos e conquistas devidamente reconhecidos, e é uma rara unanimidade. A importância de Sophie Wilson para o mundo moderno é inegável, e ela é um exemplo para todos os meninos e meninas que estão se descobrindo trans mas têm medo que isso possa afetar suas carreiras.
Sophie está viva e bem, com 63 anos, foi eleita uma das 15 mulheres mais importantes na História da Tecnologia, dá consultorias e palestras. E se quiser um final mais feliz ainda mande este texto praquele seu amigo que morre de nojo “dessa gente” e sugira que ele pisoteie o celular e jogue o iPad pela janela…
Fontes:
- SOPHIE WILSON – Computer History Museum
- Sophie Wilson — Architect of the Modern World
- From a small Acorn to 37 billion chips: ARM’s ascent to tech superpower
- Sophie Wilson – LGBT Wikia
- Trans femmes in tech: Part I
- Sophie Wilson, Acorn and the development of ARM
- An unsung heroine of the 21st century