Precisamos falar sobre a escravidão que ninguém fala

Precisamos falar sobre a escravidão que ninguém fala

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“Inspecionando novas chegadas”, Giulio Rosati (circa 1855-1917)

Imagine a situação: você está tranqüilo na sua aldeia, pitando um cigarrinho na praia, quando  vê barcos chegando. Uma gente esquisita, mal-encarada e que não parece com você ou seus amigos desce dos navios e começa a pilhar sua aldeia.

Sem aviso, matam indiscriminadamente os homens que encontram, até dizimar pelo menos metade deles. Mulheres e crianças são poupadas, cercadas com os homens sobreviventes, enquanto os invasores, por pura crueldade, tacam fogo na aldeia.

Os prisioneiros são acorrentados e jogados nos porões de navios. Eles sequer entendem o idioma de seus captores. Levados para entrepostos, homens e mulheres são despidos e examinados por comerciantes, que negociam valores com os captores.

Cidadãos livres alguns dias antes, aquelas pessoas agora eram escravas. Os homens mais fortes e saudáveis iriam trabalhar como remadores ou mineiros, em geral até a morte. Mulheres (e na época a faixa etária pra definir isso era beeem elástica) se fossem feias iam para trabalhos domésticos. As mais bonitas eram vendidas como escravas sexuais, para servir aos desejos lascivos de seus mestres entediados.

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Sim, é consenso que há bom componente de fetiche nessas pinturas. Artistas…

Muito raramente um escravo conseguia uma vaga administrativa, e com sorte até alguma liberdade e benefícios, mas a certeza era que nunca mais veriam suas terras de origem.

O relato acima bate direitinho com o que a gente aprende na escola sobre a África, mas ele ocorreu em outro continente. Mais precisamente, foi o dia 20 de Junho de 1651, em Baltimore, um vilarejo na pontinha da Irlanda.

Por gerações a região permaneceu desabitada, depois do chamado “Saque de Baltimore”, comandado por um tal de Murad Reis, um holandês convertido ao Islã. O saque foi uma das muitas invasões piratas bárbaras na Europa.

Com o declínio do Império Romano, a Europa ficou meio perdida, e o avanço do islã foi geral, incluindo a invasão da Península Ibéria em 711. Por volta de 719 á estava tudo dominado, com quase toda a região na mão dos muçulmanos, que oprimiram por Séculos os habitantes, forçando seus hábitos de alfabetização, higiene, ciência, agricultura e arquitetura.

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Península Ibérica em 719.

Os muçulmanos só seriam definitivamente expulsos da Península Ibérica em 1614, mas esse nem era o maior problema. Com o controle otomano da costa mediterrânea da África, surgiu a oportunidade para o florescimento de piratas e corsários, que atacavam alvos de oportunidade como navios de carga atravessando o Mediterrâneo.

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Galeras piratas no Mediterrâneo

Do século XIV em diante, os piratas começaram a se aventurar mais, protegidos pelo poder do Império Otomano, que havia equipado muitos com cartas de corso. Nessa época eles usavam galeras com mais de 100 remadores escravos, que conseguiam alcançar os navios europeus, e pilhar uma vila ou outra.

Aos poucos, europeus caídos em desgraça, ou criminosos mesmo começaram a se juntar aos piratas. A maioria aceitava Alá como seu salvador, renunciava ao cristianismo e eram recebidos de braços abertos.

Principalmente por terem conhecimento de construção e operação de navios europeus.

Com essa nova tecnologia, os piratas começaram a se engraçar em expedições mais e mais distantes. Havia toda uma metodologia, e eles aprenderam a aumentar seus lucros filtrando entre seus prisioneiros aqueles que seriam VIPs.

Se o sujeito fosse “alguém”, ou tivesse bons contatos, um pedido de resgate era enviado. Se fosse pago, o cidadão ganhava sua liberdade. Miguel de Cervantes, autor de Don Quixote, ficou prisioneiro de 1575 a 1580.

Em Amadeus temos a escandalosa ópera “Die Entführung aus dem Serail”, passada em um harém na Turquia. A ópera, lançada em 1782, conta a história de duas donzelas seqüestradas por piratas e vendidas como escravas, tendo que resistir aos abusos sexuais do Paxá. Você sabe, diversão para toda a família.

Com os novos navios, e a Península Ibérica sob controle, os piratas se aventuraram para o norte. Baltimore não foi a única vila atacada. Há registros de ataques e capturas de escravos no mediterrâneo oriental, incluindo Grécia, na Itália, Irlanda, Inglaterra, países baixos e até na Islândia.

Os piratas se tornaram tão caras-de-pau que entre1625 e  1635 mantiveram uma base de  operações em Lundy, uma ilhota a 16Km de distância das Ilhas Britânicas, que não podiam fazer nada.

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Olha a audácia!

Só em 1625, na região de Poole, 27 navios e 200 pessoas foram capturas por piratas turcos, em apenas dez dias.

Em uma época sem satélites, GPS, celular ou mesmo gente mais alta pra forçar o olhar no horizonte, era muito difícil identificar os piratas, que fugiam assim que viam um navio de guerra.

Em 1625 a estimativa é que havia 60 caravelas piratas na costa de Devon e da Cornualha, com ataques quase diários.

Partindo do princípio que os povos pagãos eram inferiores e pecadores, os piratas muçulmanos podiam fazer a colheita sem preocupação, capturando seus escravos e levando-os para o principal entreposto de compra e venda, em Argel, capital do que hoje é a Argélia.

Depois de um ataque em 1645 que resultou em 240 homens, mulheres e crianças tomados como escravos, o parlamento britânico mandou Edmund Cason para negociar o resgate. Ele libertou 250 pessoas, mas ficou sem dinheiro pro resto dos escravos. Um homem adulto custava £30, o equivalente a US$6,823.77 em valores de 2022. Mulheres eram bem mais caras.

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Resgates de nobres podiam custar mais de £300. Entre idas e vindas uma libertação podia demorar 5 anos, nunca menos de 2 anos e meio. Eles provavelmente usavam os Correios e o resgate ficava perdido em Curitiba.

Cason permaneceu 8 anos em Argel, negociando a libertação de outros 400 escravos.

Para os capturados, havia uma opção de liberdade: Se converter ao islamismo, mas isso significava que nunca mais poderiam voltar para seus países.

Durante isso tudo, os Europeus perceberam que os árabes estavam ganhando um bom dinheiro com o tráfico de escravos na África, onde não precisavam de complicados e incômodos ataques-surpresa.

Era muito mais simples negociar com governos locais, que já tinham a escravidão institucionalizada, e comprar seus lotes de escravos, devidamente embarcados para o Oriente Médio. Nesse caso o principal entreposto era em Zanzibar, na costa da Tanzânia. Por lá o tráfico só parou por volta de 1880.

No total os árabes movimentaram entre 11 e 17 milhões de escravos, a imensa maioria africanos, uma atividade que começou em 3000 AC quando egípcios invadiram o que hoje é o Sudão atrás de mão de obra barata, se é que você me entende.

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Eu sei.

O tráfico de escravos do Atlântico, que durou 400 anos, movimentou 12.8 milhões de africanos.

A ficha demorou MUITO pra cair na Europa, foram precisos 250 anos de ataques de piratas, gente seqüestrada e escravizada, pros ingleses perceberem que não é legal escravizar os outros.

Em 1807 o Rei Jorge III assinou uma Lei proibindo o comércio de escravos no Império Britânico, mas não a escravidão em si. Principalmente nas colônias, tudo continuou como estava, com comércio ativo principalmente no Caribe. A Marinha Real então começou a intervir, abordando navios negreiros e libertando os escravos a bordo.

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Em 1833 saiu uma nova Lei, abolindo a escravidão, mas criando uma classe transicional onde escravos agora eram “aprendizes”. Sim, não bastava a escravidão, o sujeito ainda era rebaixado a estagiário. Essa fase durou até 1840, mas havia um asterisco.

A abolição não valia pra territórios controlados pela Companha das Índias Orientais (lembra disso?), como Sri-Lanka e Santa Helena. Esses escravos só foram libertados em 1843.

Depois disso o Reino Unido se tornou ativo participante na luta contra escravidão, comprando briga com muita gente, incluindo o Reino de Dahomey, que apesar daquele filme mais fantasioso que Pantera Negra, era essencialmente uma nação que vivia de vender escravos, e não queria o fim da instituição.

Enquanto isso na Europa, os piratas continuavam sua caça a escravos. Entre os Séculos XVI e XIX 1.25 milhões de europeus foram escravizados e vendidos em mercados em Tunis, Alger e Trípoli, a imensa maioria nunca mais voltando pra casa.

Mais ao leste, os piratas também atacavam no Mar Negro, entre 1450 e 1716 quase 2 milhões de russos, ucranianos e poloneses foram escravizados. Foi daí que veio a etimologia de  “escravo”, nessa época eslavo era praticamente sinônimo, mas não entenda isso como argumento para dizer que os escravos originais eram europeus. Toda língua no mundo tem seu próprio termo para escravo.

A instituição é universal, e a única forma de acabar com escravidão é na base da porrada.

Em 1665 os ingleses atacaram Tunis e Alger e queimaram uma frota pirata, libertando diversos escravos. Eles atacaram uma frota pirata em 1671, e outra em 1676, mas ainda era muito esporádico.

Só no começo do Século XIX europeus e americanos perceberam que já tinham poder suficiente para dar uma coça nos piratas, então começaram a montar expedições militares para caçar os navios e atacar os entrepostos.

Ingleses e holandeses atacaram Alger em 1816, libertando mais de 1200 escravos. Depois disso aconteceram vários outros ataques, exterminando a frota bárbara. Em 1830 a França invadir Algiers, depois Tunis em 1881, em 1911 Trípoli caiu diante das forças italianas (não ria).

Hoje em dia, apesar de formalmente ilegal, a escravidão ainda persiste em diversas formas na África subsaariana, com uma estimativa de 660 mil pessoas escravizadas. Não há nenhum interesse real em acabar com essa prática, e o Ocidente claramente não aprendeu porra nenhuma com 250 anos de ataques de piratas, pois estamos fechando os olhos pra escravização sistemática da minoria Uyghur, na China, usada como mão de obra escrava e mantidas em campos de prisioneiros.

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Trabalhadores caminham pela cerca do perímetro do que é oficialmente conhecido como “centro de educação profissionalizante em Dabancheng“, Região Autônoma Uigur de Xinjiang, no noroeste da China, em 4 de setembro de 2018.

Tudo acontecer na China, e os Uyghurs sendo muçulmanos como agravante, o máximo que vamos fazer é abrir reclamação se um iPhone feito por eles vier arranhado. Afinal, quem aprende com História é aluno CDF.

Fontes:

  1. Lundy Island, England & Wales and Ottoman and Barbary Corsairs: A Temporary Base for a Couple of Weeks Each Year circa 1625 to 1635 CE
  2. Barbary Pirates and English Slaves
  3. America and West Indies: August 1625
  4. When Britons were slaves in Africa
  5. Remembering the Barbary Slaves: White Slaves and North African Pirates
  6. The Abolition of Slavery In Britain
  7. East Africa’s forgotten slave trade
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