É outubro de 1940, tem um mês que os nazistas estão bombardeando a Inglaterra, diariamente, sem parar. Na escuridão você escuta explosões ao longe, as sirenes de alerta antiaéreo gritando alto na madrugada. Por trás das janelas pregadas e cortinas de blecaute, você vê o brilho do fogo na rua.
Sem tempo para correr para o abrigo Anderson no quintal, você se encolhe em casa.
Na distância você escuta os aviões. Com o tempo passou a diferenciar cada um. Uma hora um Spitfire, outra um Hurricane. Durante a noite, os Mosquitos e Bristol Beaufighters reinavam, combatendo os bombardeiros noturnos como o Junkers Ju 88, que agora parecia cada vez mais perto e –
Do nada tudo à sua volta explode. Você acorda no meio da fumaça, tubulações de gás alimentam o fogo que queima o que restou de sua casa. Preso por escombros, você grita por socorro, sabendo que os serviços de polícia e bombeiros estão sobrecarregados. A fumaça aumenta, os escombros do andar superior começam a ranger e o calor das chamas aumenta lentamente.
Subitamente um vozerio chama sua atenção. Você vê em meio à fumaça, um grupo correndo e apontando. Baldes de areia são jogados abafando as chamas, pés de cabra e machados libertam suas pernas e você é puxado para a segurança relativa da rua, apenas para reparar que seus salvadores são… crianças.
Crianças que a rigor nem deveriam estar ali.
No verão de 1939 o Reino Unido havia planejado a Operação Flautista de Hamelin, no qual 3 milhões de pessoas, a maioria crianças, seriam evacuadas de Londres e de outros grandes centros, em caso de guerra iminente.
Em 1º de setembro de 1939 foi iniciada a evacuação, com milhões de crianças sendo levadas para o interior da Inglaterra, e até para abrigos no exterior. Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e África do Sul receberam sua parcela de refugiados.
No caso da Inglaterra, muitos iam para casa de parentes no Interior, deixando seus pais para trás, mas morar longe de casa era uma experiência ruim para crianças pequenas, e entediante para adolescentes.
Muitos acabaram voltando para Londres, para suas casas, abrigos ou casas de parentes, e mais uma vez, ficaram entediados. Inclusive um tal de Patsy Duggan, que com 17 anos trabalhava nas docas e cuidava da família. Filho de um lixeiro, Patsy não tinha muitas esperanças de mobilidade social, nem dinheiro para o pouco lazer ainda disponível. Nem se alistar ele podia. Tinha um olho de vidro.
Aos poucos ele foi formando um grupo -não, uma gangue- de jovens igualmente entediados, era um bando de candidatos a delinqüentes, rebeldes e sem nenhum respeito por autoridade. Eles se batizaram de Garotos Sem Futuro -The Dead End Kids-, copiando o nome de um popular grupo de atores mirins americanos que sempre faziam papéis de jovens rebeldes.
Uma das poucas fontes de excitação do grupo eram os ataques nazistas. Por mais horrível que seja, sejamos honestos, guerra é um negócio excitante, quando as coisas que fazem cabum estão longe da gente.
É inegável a emoção, como quando esse Luke Skywalker ucraniano derrubou um míssil de cruzeiro com um MANPAD:
Patsy acabou tendo uma idéia: Que tal, ao invés de só ficar assistindo a agitação da Blitz, participarem? Normalmente eles eram expulsos pela polícia ou por bombeiros, mesmo os voluntários, mas se eles participassem ativamente dos resgates, seriam vistos como iguais.
Eles arrumaram carroças, carrinhos, baldes de areia, ferramentas, pés-de-cabra. COMO eles conseguiram tudo isso? Melhor não perguntar.
Sem adultos para atrapalhar, as crianças, algumas com apenas dez anos, e até mesmo a irmã de 13 anos de Patsy, Maureen, percorriam as ruas atrás de prédios atingidos pelas bombas, e enfrentavam o fogo com bravura. Uma testemunha descreveu:
“Eles subiram as escadas correndo, parecia prestes a comer fogo!” A mesma testemunha então os descreveu como “emergindo do prédio, alguns deles com suas roupas esfarrapadas fumegando”.
Um relato fala de uma aposentada que foi carregada da casa em chamas até um abrigo, ainda em sua cadeira de balanço.
Certa ocasião os Garotos Sem Futuro salvaram 30 cavalos de um estábulo em chamas.
Seu feito mais famoso foi quando, durante uma Blitz, um abrigo foi atingido, deixando dezenas de feridos. Os Garotos Sem Futuro resgataram os 230 ocupantes, levando-os, com as bombas ainda caindo, para um abrigo mais seguro.
Nem tudo eram flores, claro. Vários dos Garotos Sem Futuro morreram, inclusive dois que tentavam apagar uma bomba incendiária, apenas para serem atingidos por três bombas nazistas certeiras.
As aventuras dos Garotos Sem Futuro começaram a aparecer na imprensa, e o Governo resolveu aproveitar como propaganda para elevar a moral. Juntaram os garotos em uma cerimônia em Downing Street, mas no meio da provavelmente chatíssima série de discursos, um dos garotos soltou um pum.
Um dos políticos presentes reclamou. O garoto respondeu na lata:
“Por que você simplesmente não fecha os ouvidos, mister?”
A cerimônia acabou ali mesmo, perceberam que havia sido uma péssima idéia, e cada um foi pro seu lado. Os políticos, para lidar com grupos mais diplomáticos, e os Garotos Sem Futuro voltaram para sua rotina diária de patrulhar Londres salvando vidas, sem se preocupar com imprensa ou governo nas suas costas.
Para surpresa dos especialistas, ao contrário da maioria das crianças da época, os Garotos Sem Futuro não carregavam traumas, mesmo vendo tragédia e morte de perto. O fato de decidirem serem agentes ativos, ao invés de vítimas passivas, a decisão de buscarem um propósito em meio a tudo que acontecia, foi fundamental.
A maioria sobreviveu à guerra, e o mais novo do clã Duggan, Terry, morreu em 2017.
Fontes:
- Operation Pied Piper: The Evacuation of English Children During World War II
- Madge Darby, Historian of Wapping
- Children And The Importance Of Meeting Challenges, Overcoming Obstacles And Handling Risk In Play
- The ‘Dead End Kids’ of the London Blitz