Samizdat: Censura com sabor soviético

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Imagine a cena: Você está feliz e tranquilo, na redação de seu jornal local. A porta é aberta com violência. Um grupo de agentes da KGB ameaçam todo mundo enquanto confiscam suas máquinas de escrever. Não por algo que você publicou ou escreveu, mas pelo que PODERÁ escrever no futuro.

Esse cenário orwelliano não é hipotético. Ocorreram incontáveis vezes na União Soviética, que vivia sob censura estatal explícita.

Censura, claro, é algo que teoricamente só ocorre após o fato, é preciso que algo exista para ser avaliado e censurado, mas os soviéticos foram além. A grande preocupação era o surgimento de material subversivo produzido pela intelectualidade do país, pois intelectuais não são comunistas por natureza, eles são do contra, então após a lua de mel da Revolução ter passado, e a realidade do Comunismo se assentado no dia-a-dia das pessoas, seria esperado que intelectuais começassem a questionar o Sistema.

O Sistema, que não é bobo nem nada, criou o conceito de censura pré-prévia. As máquinas de escrever confiscadas eram examinadas e periciadas. Amostras da tipografia eram recolhidas e associadas às máquinas, que eram registradas na KGB.

Máquina de escrever soviética

Explico: Assim como impressões digitais, as letras das máquinas de escrever são únicas. Cada conjunto traz imperfeições e marcas próprias, então é razoavelmente simples traçar um texto datilografado até sua máquina de origem, se ela estiver registrada.

Isso restringiu em parte que a área mais industrial produzisse material “subversivo”, mas apostar contra a criatividade de toda uma classe de pessoas criativas e determinadas nunca daria muito certo.

Como basicamente todo intelectual, estudante e assemelhados tinha uma máquina de escrever em casa, era virtualmente impossível à KGB controlar e monitorar todo mundo, então ao invés de depender de gráficas para produzir os jornais, revistas e manifestos, o povo tomou para si a responsabilidade.

Surgiu o conceito de Samizdat, palavra russa que significa “autopublicação”, mas não no sentido dos narcisistas que pagam para gráficas disfarçadas de editorar para imprimir exemplares de seus livros de poemas.

Do mesmo jeito que estudantes faziam com seus inofensivos fanzines, o povo insatisfeito começou a escrever e diagramar seus artigos, poemas, notícias, em casa. Quem tinha acesso a mimeógrafos reproduzia o material dessa forma, mas o mais comum era o uso de papel carbono.

NOTA PROS 9VIN:

Antes da invenção da fotocopiadora, a única forma de reproduzir um documento era redatilografar tudo. Um dia, criaram algo chamado papel-carbono. Você colocava a folha de carbono entre duas folhas em branco, quando datilografava o texto, a pressão da barra tipográfica atingindo o papel era suficiente para fazer com que o papel-carbono da folha de baixo também marcasse a folha em branco, resultando em duas páginas com o mesmo texto.

Em alguns casos máquinas profissionais, elétricas, conseguiam utilizar três folhas de papel-carbono, produzindo quatro cópias de uma vez.

As cópias eram encadernadas e distribuídas para pessoas de confiança, em uma rede oculta que chegou a 200 mil leitores, no auge da censura na União Soviética.

Fora material original, havia uma boa quantidade de literatura censurada publicada na forma de Samizdat, de romances decadentes ocidentais a obras como Doutor Jivago, de Boris Pasternak, ou O Arquipélago, de Aleksandr Solzhenitsyn, censurado pelos dirigentes do Paraíso Socialista não queriam que o povo soubesse o que acontecia nos Gulags.

Em 1965 as autoridades soviéticas começaram a fechar o cerco contra os Samizdats, batidas e investigações eram constantes, encontros de artistas e escritores eram debandados à força. Yuli Daniel e Andrei Sinyavsky, dois autores de Samizdats foram presos e condenados por atividades anti-soviéticas, Yuli pegou 5 anos de trabalhos forçados, Andrei, pegou 7.

Ironicamente o julgamento foi coberto pelo Samizdat O Livro Branco, escrito e publicado por Yuri Galanskov e Alexander Ginzburg. Mais tarde eles também foram presos e condenados a penas semelhantes.

O avanço tecnológico provocou o surgimento do magnitizdat, um tipo de publicação de material subversivo usando… fitas magnéticas. Primeiro em gravadores de rolo, depois em fitas K7, a tecnologia se mostrou excelente para copiar e compartilhar músicas ocidentais decadentes censuradas, como Jazz e Rock & Roll.

Também eram comuns magnitizdats com poemas, discursos, palestras e entrevistas com dissidentes banidos na União Soviética.

A KGB não corria tanto atrás dos magnitizdats, talvez por não estar habituada a lidar com tecnologia moderna, e os Samizdat cada vez mais se disseminavam, com a popularização das fotocopiadoras, que mesmo controladas, ainda eram usadas indevidamente.

O irônico é que o magnitizdat acabou tendo mais efeito, seu alvo não era a intelectualidade, mas o jovem comum, que não entendia o motivo de ter algo simples como música sob censura, e só aumentou a insatisfação com o governo soviético.

Os Magnitizdat acabam se tornando veículo de divulgação do cenário underground (mesmo) do Rock soviético, bandas gravavam músicas que eram distribuídas ilegalmente, para alegria dos jovens que agora podiam apreciar rock russo raiz.

Antigo gravador soviético

Em 1986, em um gesto que deixaria o senador McCarthy em pânico, Joanna Stingray contrabandeou um álbum com música de quatro bandas de rock soviéticas, trazendo-o para os Estados Unidos e publicando Red Wave, o primeiro LP com rock soviético.

Sem muito ter o que fazer, os soviéticos liberaram as bandas e elas lançaram álbuns de sucesso em 1987 e 1988.

Hoje parece até fora de propósito imprimir quase página a página uma revista ou fanzine, e distribuir pessoalmente, mas muito da luta interna soviética por democracia, liberdade e Direitos Humanos foi mantido vivo graças aos Samizdat.

Mesmo em tempos de Internet, a figura do Samizdat permanece. Por muito tempo, em Cuba, antes da recente flexibilização, jornais, revistas, livros, filmes, séries e documentários eram contrabandeados para o país na forma de pendrives, e até hoje, a Coreia do Norte, balões levando cartões de memória com material “subversivo” são enviados por militantes da Pior Coréia.

A diferença é na terra de Kim Jong-un, a simples posse de um cartão desses é punida com pena de morte.


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