A inconveniente história de como Abraham Lincoln ajudou a criar o país mais racista do mundo

Compartilhe este artigo!

Em 1927 Thomas J. Faulkner recebeu apenas 9000 votos na Eleição Presidencial na Libéria. Perdeu de lavada para seu oponente, Charles D. B. King que ganhava nas urnas seu terceiro mandato, com incríveis 243 mil votos. O único problema é que a Libéria só tinha 15000 eleitores cadastrados.

Essa eleição entrou para o Guinness como a mais fraudulenta da História, e a Libéria se consolidou como um shithole de proporções cósmicas, humilhando qualquer Brasil coronelista.

Isso tudo começou bem antes, com uma proposta que no papel seria a Nova Wakanda, um paraíso africano para escravos libertos.

A idéia surgiu na Sociedade para Colonização das Pessoas de Cor Livres da América, um grupo fundado em 1816 com o nobre propósito de dar uma vida melhor para negros libertos, em teoria. Na prática o grupo era formado por escravagistas do Sul E anti-escravagistas do Norte, o que por si só é suspeito, e a imensa maioria dos negros não via o grupo com bons olhos.

O método que a tal Sociedade usava era ajudar os negros livres a emigrar para colônias na África e mais tarde no Caribe, onde viveriam em lugares onde todo mundo era negro. A idéia de convivência e miscigenação não era bem-vinda entre os membros da American Colonization Society, como era mais conhecido o grupo.

Na prática, assim como aquela pecinha na ponta dos cadarços, a ACS tinha um propósito sinistro. O pessoal do Sul não gostava da idéia de negros libertos e suas idéias abolicionistas, então ao patrocinar a Sociedade, se livravam do problema de ter ex-escravos entre eles, dando idéias incômodas aos que ainda eram escravos. Já os membros do Norte, principalmente Quakers e evangélicos eram contra a Abolição e posterior integração de negros libertos, então melhor mandar todo mundo pra casa.

Aqui começa o primeiro problema: Da mesma forma que os floquinhos lacradores de hoje em dia, “África” era um conceito monolítico, não havia a percepção de milhares de culturas, nações, tribos. Os negros que se interessavam eram enviados para onde fosse a Colônia da Vez. Em 1820 o primeiro navio partiu para a África Ocidental, levando 88 passageiros negros. Por volta de 1867 esse número já havia passado de 13000, a maioria mandada para a Libéria.

Um dos incentivadores da ACS era… Abraham Lincoln.

Lincoln é uma figura complicada. Não por seus atos, mas por ser idealizado e venerado como uma figura sagrada ou odiada, dependendo de que lado você esteja.

A Guerra Civil

Nos EUA rola um certo revisionismo histórico onde o motivo principal da Guerra Civil se torna complexo e a escravidão é apenas uma das desavenças que resultaram no conflito, mas os documentos da época já deixam claro que foi pro causa dos escravos mesmo, o Sul teria seu modo de vida destruído com a abolição, já o Norte não sofreria quase nada, e os assentamentos do Oeste eram pobres demais pra ter escravos então tanto faz.

A realidade é que o Norte podia se dar ao luxo de desenvolver a mentalidade de que escravidão era moralmente errada, mas isso não quer dizer que eles eram bonzinhos iluminados lacradores sem preconceitos.

É algo alienígena para os millenials militantes de hoje em dia, que exigem absoluta pureza moral de todo mundo, mas no mundo real você pode ser contra escravidão E ainda assim ser racista. Sim, pessoas e opiniões vêm em todo tipo de graduação, interseccionalidade é um conceito lindo (e insano) da militância mas não é obrigação, uma feminista não precisa ser vegana, um militante do movimento negro não tem que ser automaticamente defensor da causa palestina.

Já na época a postura do Lincoln era meio cínica para alguns.

Abraham Lincoln, o Presidente que libertou os escravos NÃO era um abolicionista. Acima de tudo Lincoln era um constitucionalista, ele era contra a escravidão mas como a Constituição previa a existência de escravos, ele não se manifestava oficialmente pela Abolição. Mesmo quando a 13a Emenda foi aprovada, emancipando os escravos, Lincoln continuava com sua posição, que era pró-abolição, mas não pró-igualdade:

Em um debate em Charleston, 1858, Lincoln declarou:

“Eu digo então, não sou, nem nunca fui a favor de promover a igualdade social e política entre as raças branca e negra”

Ele era a favor de que negros e brancos fossem iguais no sentido de viver, progredir e usufruir dos frutos de seu trabalho, mas fora isso ele era contra negros terem direito a voto, servir como jurados, ocupar cargos políticos ou casar com brancos.

Em uma carta para Horace Greeley, em 1862 Lincoln escreveu:

“Se há aqueles que não querem salvar a União, a não ser que se mantenha a escravidão, eu não concordo com eles. Se há aqueles que não querem salvar a União, a não ser que se destrua a escravidão, enão concordo com eles. Meu objetivo pétreo nessa luta é salvar a União, e não manter ou destruir a escravidão.”

“Se eu puder salvar a união sem libertar qualquer escravo, eu o faria, e se eu puder salvá-la libertando todos os escravos, eu o faria; e se eu pudesse salvá-a libertando alguns e deixando outros como estão, eu também o faria. O que eu faço pela escravidão e a raça de cor, eu faço porque acredito que isso ajuda a salvar a União.”

 Em outro discurso Lincoln falou:

“Se todos os poderes terrenos me fossem dados, meu primeiro impulso seria libertar todos os escravos e mandá-los para a Libéria -para sua própria terra natal. Mas uma rápida reflexão me convence que por mais que tenhamos esperança, a longo prazo a execução súbita dessa idéia é impossível”

A idéia de “voltar para casa” soa romântica e bem-intencionada, mas a imensa maioria dos ex-escravos não eram africanos. Os Estados Unidos proibiram o comércio de escravos com navios americanos em 1794 e qualquer tipo de importação em 1807. A maioria das famílias de escravos já estava no país fazia tempo, eles eram nascidos e crescidos nos Estados Unidos, não tinham nenhuma ligação real com a África, não falavam os idiomas, não compartilhavam da cultura nem da religião.

A Libéria, com 4.8 milhões de habitantes, fica entre a Serra-Leoa e a Costa do Marfim. Não que isso importe.

O choque cultural resultou em muitos conflitos com os nativos, enquanto os colonizadores negros agiam da exata mesma forma que todos os outros colonizadores do mundo.

Situada na chamada Costa da Pimenta, a Libéria começou a ser colonizada ainda no Século XV, por portugueses, ingleses e holandeses, mas só se consolidou como pais e obteve independência em 1847. Seu primeiro presidente foi este sujeito aqui:

Joseph Jenkins Roberts era um mulato nascido livre nos EUA, filho ilegítimo de um fazendeiro e uma ex-escrava, que se casou com um negro bem rico, James Roberts, que cedeu seu sobrenome a Joseph e os irmãos.

Tocando os negócios da família, Joseph foi ficando indignado com as limitações dos negros livres nos EUA. Ele não podia votar, estudar, portar armas ou mesmo se congregar religiosamente sem autorização dos brancos, e com isso acabou achando boa a idéia da Libéria, e emigrou com a família, com objetivo adicional de evangelizar a população nativa.

Uma de suas primeiras missões na Libéria foi organizar milícias para cobrar impostos de tribos no interior do país. Mais tarde ele virou governador geral, e em 1847 foi eleito Presidente, o primeiro de quatro mandatos.

A maior parte do país ignorou as idéias abolicionistas, e continuou por um bom tempo traficando escravos. Em verdade HOJE a Libéria tem 33 mil pessoas, 7.4 a cada mil habitantes vivendo em situação análoga à escravidão.

Pior ainda: Os colonos levaram consigo tudo que pior poderiam ter aprendido nos Estados Unidos. Esta é uma família dos chamados americo-liberians:

Fica evidente que os americo-liberians, como gostam de ser chamados se diferenciam claramente dos nativos. Eles eram uma elite que detinha o poder e o dinheiro. Se consideravam moralmente superiores afinal de contas eram cristãos, e faziam o máximo esforço para manter a população nativa em seu devido lugar.

Até 1904 os nativos sequer tinham direito a voto. Também não podiam sequer se dirigir a americo-liberians sem permissão, e era proibido relações sexuais e casamento entre os dois grupos.

Até a bandeira dos caras é kibada dos EUA.

No começo da colonização os americo-liberians tentaram proibir a escravidão, fonte de renda da maior parte das tribos locais, que foram separadas em reservas, e controladas com mão de ferro. Tribos rebeldes, o chefe era sumariamente executado, e em alguns casos a tribo inteira, mulheres e crianças eram exterminadas, as casas incendiadas para servir de exemplo.

Ironicamente com o crescimento das plantações comandadas pelos negros colonos mais prósperos, mão de obra barata se tornou essencial e a melhor mão de obra era… escravos.

Isso começou na metade do Século XIX, e só com pressão da Liga das Nações na década de 1920 a escravidão foi tornada (tecnicamente) ilegal, mas é praticada até hoje.

Palácio Maçônico, em Monrovia, capital da Libéria. Arquitetura mais africana impossível.

Como a Constituição da Libéria proibia escravidão, os colonos chamavam seus escravos de “servos”, como escreveu o abolicionista William Nesbit:

“Cada colono mantém escravos nativos (o como eles chamam, servos) à sua volta, variando em número de um a quinze, de acordo com as circunstâncias de seu mestre”

A dependência de dinheiro externo, a corrupção endêmica e a má-gestão contribuíram para a Libéria se tornar um shithole mesmo na África, enquanto vários países avançaram e prosperaram, ultrapassando os padrões da Europa do Século XIX e se tornando lugares decentes, a Libéria hoje tem a 147ª renda per capita do mundo, US$728,00. 147 de um total de 186.

A Libéria só foi sair da mão dos Americo-Liberians em 1980, quando uma revolta popular por causa do aumento do preço do arroz levou à deposição do então Presidente William R. Tolbert, Jr, que foi executado pessoalmente pelo líder dos golpistas. Logo em seguida os ministros do Gabinete foram pra vala, e uma revoada de americo-liberians decidiu por bem fugir do país.

Monrovia, capital da Libéria. Note a ausência de prédios.

Samuel Kanyon Doe, o novo Presidente e chefe dos golpistas era nativo da minoria Krahn, e agora a Libéria estava na mão de seu povo, e tudo ficaria bem, certo?

Errado. Entre 1981 e 1985 foram sete tentativas de golpe, entre 1989 e 1996 rolou uma Guerra Civil, entre 1997 e 2003 outra Guerra Civil, e depois uma ditadurazinha de Charles Taylor. Fora isso a Libéria veio sofrendo embargos, pressões e em 2014… EBOLA!

Hasa diga eebowai…

Os americo-liberians foram os únicos responsáveis pelos massacres do golpe de 1980, por mais de 150 anos pisotearam os nativos, transformando-os em cidadãos de terceira classe. Esse ressentimento todo um dia iria estourar, mas o pior: Ninguém aprendeu nada.

Rebeldes posam com o corpo do Presidente deposto Samuel Doe.

A Constituição da Libéria é baseada na dos Estados Unidos, com os mesmos ideais de Liberdade e Felicidade para todos, mas assim como a Constituição Americana Original, nem todo mundo conta como todos, tanto que a Constituição de 1986 mantém o mesmo Artigo 27b da Constituição de 1847:

“Em ordem de preservar, promover e manter uma cultura liberiana positiva, seus valores e caráter, somente pessoas que são negras ou descendentes de negros estão qualificadas por nascimento ou naturalização a ser cidadãos da Libéria”

Isso mesmo. A Libéria conseguiu o feito de ser racista contra si mesma, contra a própria população negra que não era composta do tipo certo de negros, e depois de tudo agora é racista como todo mundo que não é negro, com uma cláusula horrenda, atrelando cidadania a etnia, algo que nem o pessoal da Ku Klux Klan prega mais hoje em dia.

A Libéria é um país fracassado. Não tanto quanto o Haiti, mas não caia na armadilha fácil de dizer que a Libéria fracassou por causa dos colonos negros. O problema foi cultural, só que a cultura que eles levaram foi a do colonialismo, do entitlement, a cultura de que são superiores apenas por terem o mesmo amigo imaginário. Se há uma lição a ser aprendida, é que independente da cor da pele, as pessoas podem ser extremamente escrotas, se tiverem oportunidade.

Fontes:


Compartilhe este artigo!