Todo escritor que (não) se preza já fez a clássica crônica da falta de assunto. Desta vez é diferente, é falta de luz mesmo.
Explico: Algum curto na fiação da casa jogou a energia para níveis mínimos. Qualquer carga na rede derruba tudo. No melhor estilo Apollo XIII, estou gerenciando dispositivos. PC e TV nem pensar,Macbook liga mas o roteador WIFI cai. Consegui colocar o iPad, roteador e ventilador funcionando, mas com a luz apagada.
Enquanto espero o eletricista, lembro que comentei em um site de microblog que como é chato ficar saltando entre browser e editor de texto no iPad, iria escrever um monte de posts sobre boatos da Apple. Então, de curiosidade, comecei a passear no Flipboard e percebi que minha idéia não era nada original.
Chutaria que pelo menos 30% da mídia de tecnologia se resume a boatos. Curiosamente há preservação da informação, contrariando o conceito de meme de Richard Dawkins. Acho que a preguiça dos estagiários é maior do que a necessidade de complementar a notícia. Vemos os mesmos boatos, repetidos ad nauseum, traduzidos, repetidos e devidamente ignorados.
O truque é parar de se preocupar e aprender a filtrar. Com uma visão mais ampla a gente consegue ver a origem dos boatos, e até nos divertimos com eles. Exemplo: A Samsung vem anunciando faz algum tempo que está pesquisando telas curvas. Ninguém deu bola. Como requentar essa informação? Simples, adicione Apple.
Há várias formas de falar muito e não dizer nada. Vamos conhecer algumas dessas técnicas:
Vários sites “reportam” que a Apple está preparando um iPhone curvo.
O iWatch é outro bom exemplo; um gadget imaginário que criou toda uma categoria de produtos reais (e inúteis).
A cereja do bolo, entretanto, é a Apple TV, a televisão da Apple, que segundo boateiros seria lançada uns dois anos atrás. Não importa que o mercado de TVs tenha lucro mínimo, custos altos, os preços sejam canibalescos. Cismaram que a Apple quer entrar nessa área, e a cada evento da empresa, anunciam que “agora vai”.
Como isso se tornou cansativo, agora há sites anunciando… adiamento da Apple TV para 2016. Sério.
No dia do lançamento de um iPad ou um iPhone vários sites costumam dedicar matérias… ao próximo iPad ou iPhone. Especulando loucamente baseados em nada, claro.
Outra técnica boa é pegar uma patente qualquer e imaginar um produto inteiro em cima dela. Em seguida diga que será o novo iPhone, que “fontes internas”garantiram que chega no mercado em 5 meses.
Gosto da safadeza de trocar smartphone por iPhone, MP3 Player por iPod e tablet por iPad, se a notícia for minimamente negativa. isso ficou especialmente legal em uma velha chamada ˜iPod está deixando adolescentes surdos”, que tratava do risco de… ouvir música alta.
Notícias de segurança sempre rendem. Pegue um experimento controlado, feito por pura curiosidade técnica, absurdamente improvável de ser utilizado no mundo real. Transforme em ameaça e seu trabalho está feito. Todos vão clicar para saber como ˜Hackers utilizam telescópio Hubble para roubar senhas de transeuntes incautos”.
A área de ciências é uma categoria à parte. Qualquer pesquisa básica é transformada em “pode levar à cura de…”. Estudos psicosociais com 3 indivíduos são extrapolados para o comportamento de multidões, e está provado definitivamente que celular dá câncer. Ou não, depende. Semana ímpar, dá, semana ímpar, não dá.
Hardware não-Apple. Como transformar em algo sexy? Você pode estudar os pontos positivos do produto, mostrar em situação de uso, avaliar o fabricante, ou pode apenas dizer que é um XXX-killer, trocando XXX pelo produto da Apple que remotamente remeta a uma categoria semelhante ao produto lançado.
Agora anda fraco, mas no tempo em que o Linux ia salvar o mundo das cáries, era notícia garantida pegar qualquer grupo de 2 ou 3 desocupados que criava um projeto no SourceForge com propósitos modestos, como matar o Photoshop ou o Autocad era tratado como “a” ameaça.
Quantas vezes o OpenOffice iria matar o MS Office? E o GIMP? Um sujeito que obviamente não usa cad me falou que ninguém mais usa Autocad, pois há o FreeCad. E, note, esses são os projetos sérios, com méritos próprios. A mídia preferia os que se propunham a substituir o Windows ou o MacOS. Propostas modestas, eu sei, mas “Microsoft com os dias contados” é uma manchete suculenta.
Games? A antiga bobagem “videogame estraga televisão” foi sobrepujada pela bobagem maior ainda “videogame estraga adolescentes”. Não importa quantas vezes a gente explique que o perfil de gamer é um sujeito com 30 anos na cara, e que tirando um ou outro retardado qualquer gamer sabe a diferença entre jogo e realidade. QUALQUER massacre, tiroteio, briga de trânsito ou aluno que entra em recuperação gera manchetes envolvendo videogames.
Pensando bem fui muito restrito e sem-imaginação, ao limitar à Apple minhas pretensões de falar sobre o nada e ainda assim cumprir pauta. É possível fazer isso cobrindo qualquer tema. É possível, é fácil, é cômodo e tentador. Todo mundo de vez em quando vai por esse caminho. Por isso mesmo não saí apontando dedos, o telhado aqui também é de vidro. Gorila Glass mas é.
Que essa reflexão sirva para todo mundo que se dispõe a produzir conteúdo online E para todo mundo que consome esse conteúdo. Discernimento é essencial, para ler e escrever.