Apesar da gente não aprender muito no colégio, a Guerra Civil Americana foi sinistra, uma guerra de verdade e a mais sangrenta em que o país já se meteu. Só para fins de comparação, na Batalha de Shiloh, que nem foi uma das maiores, Os Ianques tinham 63 mil soldados, contra 40000 dos confederados. No final o total de baixas dos dois lados chegou a 23000, com 3400 mortos. No desembarque da Normandia no Dia D os aliados tiveram 10 mil baixas com 4400 mortos. De um total de 156 mil soldados.
Muitos desses soldados em Shiloh morreram depois da batalha, em 6 e 7 de Abril de 1862. A região era um enorme pântano, os dias estavam frios e chovia muito. Por dias milhares de homens ficaram jogados ao relento, cobertos de lama e esperando a ajuda que parecia não vir nunca.
Com o tempo os médicos começaram a chegar, tratando da melhor forma os sobreviventes, mas não estavam sozinhos. Eles repararam que em vários soldados suas feridas expostas brilhavam durante a noite, com uma reconfortante luz azulada. Os que viam o fenômeno diziam que era o Brilho dos Anjos, como se alguma força, algum ser de luz estivesse protegendo os soldados; seus anjos da guarda aplicando seus poderes curativos.
E o melhor, os Anjos eram reais! Os médicos cientistas ateus céticos notaram que entre os soldados tratados, os que tinham sido tocados (no bom sentido) pelos anjos apresentavam uma taxa de mortalidade muito menor. OH GLÓRIA! OSANA NAS ALTURAS.
OK, agora a Ciência.
O caso do Brilho Angelical foi muito mal-documentado, um fenômeno isolado que não se repetiu. Caiu quase no esquecimento até que em 2001 um garoto de 17 anos chamado Bill Martin precisava de um tema para uma pesquisa de colégio. Quando ouviu a história, na hora ele associou com o trabalho da mãe, Phyllis Martin, microbióloga do Departamento de Agricultura.
Ela estava estudando um curioso cidadão, este aqui:
É um nematóide, nome genérico pra um monte de vermes aparentados, tipo as Kardashians. A espécie em especial era dos minúsculos, Heterorhabditis megidis, especializados em invadir o corpo de insetos, viver nos vasos sanguíneos, crescer e matar o hospedeiro. Só que o nematóide não faz isso sozinho. Não senhor, ele assim como seu cunhado é um parasita e sempre arruma alguém pra fazer o trabalho pesado. Esse alguém é a bactéria Photorhabdus luminescens. Ela habita o sistema digestivo do nematóide, que por sua vez habita o corpo do infeliz inseto parasitado.
A P. luminescens é fotoluminescente, então quando está feliz e alimentada ela brilha no escuro, o que faz com que o nematóide brilhe e o inseto idem:
A bactéria ao contrário do verme não é uma parasita, os dois vivem uma relação de simbiose. Quando está acomodado no corpo do inseto, o verme vomita as bactérias no organismo parasitado. Elas imediatamente começam a secretar enzimas digestivas, destruindo as células do inseto e transformando-as em uma sopa de nutrientes que é consumida pela bactéria E pelo nematóide, que então começa a se reproduzir. Quando o alimento começa a ficar escasso, as bactérias se mudam de volta para o sistema digestivo do verme original e dos filhotinhos que nessa fase, bem…
Onde entram os anjinhos vermiformes nisso? Foi a pergunta que o filho da Dra Martin se fez. Ele e um colega começaram a pesquisar a hipótese do brilho nas feridas ser causado pelos nematóides bioluminescentes. O solo da região da batalha de Shiloh era perfeito pra isso, lotado dos bichos, mas havia um problema:
A temperatura normal de um ser humano é quente demais pros bichos sobreviverem. Só que… os registros da batalha listam temperaturas bem baixas. Os soldados estavam sofrendo de hipotermia, principalmente suas extremidades estavam na temperatura ideal pro verme e pra bactéria.
A outra pergunta foi respondida também com a pesquisa da Dra Martin: A bactéria além de enzimas digestivas secretava 3,5-Dihydroxy-4-isopropyl-trans-stilbene, uma substância com propriedades… bactericidas.
A FDP da Photorhabdus luminescens, em um lindo exemplo de adaptação evolucionária produzia basicamente veneno para matar a competição. Qualquer bactéria que não fosse da família iria morrer, liberando os recursos para as Bactérias do Bem (e pro verme, que fatalmente mataria o hospedeiro).
Claro que no caso dos humanos só voltando a temperatura corporal pro normal já seria fatal pros bichinhos, mas nesse meio-tempo os soldados contaminados pelos nematóides ganharam um tratamento com antibióticos, 66 anos antes de Sir Alexander Fleming isolar a penicilina.
De uma tediosa intervenção divina o caso se tornou uma história de Ciência, Evolução, Curiosidade e filhos bem criados. Se não fosse a curiosidade do jovem Bill Martin, talvez a correlação entre o Brilho Angelical e a bactéria nunca teria sido feita. Mais uma peça do quebra-cabeças da Natureza foi encaixada, e mais uma lacuna foi preenchida. Quem precisa de anjo da guarda quando se tem uma bactéria prestativa?
PS: Bill Martin e seu colega Jon Curtis com sua pesquisa levaram o Primeiro Lugar na Feira Internacional de Ciência e Engenharia da Intel em 2001.
Para Saber Mais:
2 – Photorhabdus luminescens: The Angel’s Glow – The Naked Scientists
3 – The Aftermath of Battle: The Burial of the Civil War Dead, Meg Groeling
4 – Angel’s Glow at The Battle of Shiloh – American Civil War Story