Assim como a Rita Cadillac, mulheres negras também são boas para o moral

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Imagine a situação: Você está a milhares de quilômetros de casa, cercado de gente que você nunca viu querendo te matar. O calor é insuportável, a comida, horrível ou sem gosto. Seu sargento grita o tempo todo, a opinião pública acha que você está fazendo um péssimo trabalho, você dorme e acorda sob fogo de morteiros.

Sua única forma de alívio é saber que em casa seus parentes te amam e pensam em você. Em um momento de saudades, vai até uma tenda e chama seus pais via Skype, ou puxa o celular e troca mensagens direto com eles.

Agora imagine 60 anos atrás, quando nada disso existia. A única forma de se comunicar com seus entes queridos era por carta. Infelizmente na Segunda Guerra Mundial os serviços de correio eram quase tão ruins quando o Correio brasileiro, mas eles ao menos tinham a desculpa de ter que funcionar em meio a uma guerra.

A correspondência tinha que atravessar o Atlântico, muitas vezes indo parar no fundo do oceano, cortesia de algum U-Boat. Chegando na Europa (ou mais precisamente na Inglaterra) era preciso identificar a unidade de cada soldado, onde ela estava e como encaminhar a correspondência. Logo as cartas começaram a se acumular, não havia pessoal suficiente e o Alto Comando não queria dedicar mais homens para o serviço. Galpões inteiros se enchiam de correspondência não-entregue, era Curitiba, numa escala menor.

Os soldados começaram a reclamar muito, e a fila da correspondência tinha cartas com dois anos que ainda não haviam sido entregues. Relutantemente o Alto Comando percebeu que precisava fazer alguma coisa, mas em um extremo exercício de má-vontade, alocou para o problema a forma mais baixa de vida que conheciam (os Mexicanos ainda não haviam sido inventados): Mulheres Negras.

Com a escassez de homens as forças armadas criaram corpos auxiliares compostos por mulheres, o Exército tinha o Women’s Army Corps, elas cumpriam as funções não-combatentes, eram médicas, enfermeiras, datilógrafas, telefonistas, advogadas, pilotas e engenheiras. Só que na década de 1940 o Exército dos EUA era segregado, então tropas negras não se misturavam com tropas brancas.

Exceto quando era conveniente.

Em verdade o Exército nem queria tropas negras, mas acabou meio forçado por interferência presidencial, Eleanor Roosevelt era defensora ferrenha de ações que dessem espaço para a população negra, ela inclusive foi uma das principais razões para a criação do esquadrão de pilotos de Tuskeege, a outra era o Exército tentando provar que negros não conseguiriam se tornar pilotos de caça.

Sob influência da grande ativista de direitos civis Mary McLeod Bethune, Eleanor pressionou o Presidente para que uma tropa de WACs negras fosse enviada para a Europa, até então elas só trabalhavam nos EUA, auxiliando tropas igualmente segregadas. Poucas haviam sido mandadas para o outro lado do Atlântico.

Como Franklin Roosevelt entre brigar com Hitler e brigar com a mulher sabia qual a decisão mais inteligente, concordou e foi criado o 6888th Central Postal Directory Battalion, sob comando da Major Charity Adams Earley, a primeira mulher negra a se tornar oficial do WACs.

OK, a foto acima era mais pra relações públicas. Aqui uma imagem mais realista da doce Major Charity:

Ela nasce em 1918, na Carolina do Norte, mas cresceu na do Sul. Seu pai era um pastor metodista e a mãe professora. A família era extrema incentivadora de estudos, e em 1938 Charity se formou na Wilberforce University. Não chegou a ser uma Bel pesce mas tinha dois majors, Física e Matemática.

Com a guerra ela se alistou no Women’s Army Auxiliary Corps, que mais tarde viraria só Women’s Army Corps. Como tinha diploma foi para a escola de oficiais, se tornando a primeira mulher negra a se graduar. Alocada como supervisora de treinamento, ela logo ganhou novas funções e responsabilidades, e em 1944 foi mandada para Birmingham, Inglaterra, para botar ordem na companhia de mulheres negras que havia por lá.

No final do ano ela foi designada comandante do 6888th Central Postal Directory Battalion, mas quase não deu certo. Um general disse que iria mandar um tenente branco para ensinar o trabalho a Charity e suas meninas. A resposta dela foi:

“Senhor, só sobre o meu cadáver, senhor!”

O general ameaçou Charity de corte marcial. Charity ameaçou denunciá-lo por racismo. No final os dois lados se acalmaram, nenhum tenente apareceu e a Major Charity não teve mais interferências externas.

Composto de 855 mulheres, o 6888 foi designado para cuidar de correspondências, o que significava lidar com cartas danificadas, destinatários ilegíveis e casos de gente que só escrevia “Billy, França” achando que algum corno conseguiria fazer a carta chegar. As cornas conseguiam.

Eram 7 milhões de soldados americanos na Europa, só de Robert Smiths o exército catalogou 7500 diferentes. O jeito era trabalhar dia e noite.

As meninas do 6888 trabalhavam em 3 turnos, 24 horas por dia, 7 dias por semana. O lema era “Sem correio, sem moral”. Charity sabia o quanto era importante para um soldado na frente de batalha, às vezes vários anos longe de casa receber um cartão postal, uma foto, uma palavra de seus pais ou da namorada, mesmo que às vezes fosse uma carta “Dear Johnny”.

O Alto-Comando não estava esperando muito, tanto que a estimativa era que o 6888 acabasse com as pendências em seis meses. As meninas de Charity zeraram a fila de correspondência em 3.

Como toda tropa negra elas eram segregadas, então algumas tinham que se dividir em tarefas como cozinha, limpeza, serviços gerais, e dormiam em uma escola para moças que havia sido solicitada para uso das forças armadas. No trabalho ocupavam um hangar sem aquecimento, e tinham que se virar vestindo ceroulas.

Para manter a moral da tropa alta, a Major Charity montou salões de beleza, um centro de recreação e até um bar:

Apesar da política oficial do Exército pregar segregação, Charity sabia que isso não levaria a nada, e estimulava suas meninas para que interagissem e convivessem socialmente com soldados brancos e a população em geral. Segundo relatos isso acabou com muito preconceito de ambos os lados.

Quando a correspondência atingiu níveis gerenciáveis o 6888 ganhou uma nova missão: Foi mandado para a frança, em Rouen. Esperando por elas três anos de correspondência acumulada. Pelo menos a travessia do Canal foi tranquila, ao contrário da chegada à Inglaterra, onde foram recebidas por uma bomba voadora V1.

De novo elas fizeram em 3 meses o trabalho que levaria 6, e foram realocadas para Paris. Dessa vez elas ficaram hospedadas em um hotel de luxo, com criados e cozinheiros. Se já era bom estar em um país sem segregação racial oficializada, receber tratamento de primeira classe foi melhor ainda.

Elas foram até convidadas a desfilar em uma parada em homenagem a Joana D’Arc, onde foram recebidas pela população como libertadoras, não como curiosidade.

O 6888 atuou até Janeiro de 1946, quando voltou para os EUA e foi dissolvido um mês depois. Ninguém sabe quantas correspondências elas entregaram, quantos milhões de soldados tiveram um lampejo de esperança lendo as mensagens de seus entes queridos, quantos pais que perderam seus filhos na guerra receberam uma última e preciosa carta, por causa dessas mulheres.

Infelizmente elas tiveram zero reconhecimento, para o Exército dos EUA foi como se elas fossem apenas um rodapé na História. Fora as medalhas-padrão para todas as unidades, nada.

Isso só começou a mudar em 2009, quando Michelle e mais tarde Barack Obama fizeram menções à contribuição do 6888, mas só em 2018 algo concreto foi feito:

Em 30 de Novembro de 2018, no Forte Leavenworth, Kansas foi inaugurado um monumento em homenagem ao 6888, contando a história do batalhão e listando todas as 855 mulheres, inclusive as três que morreram em acidentes durante a campanha.

É um reconhecimento muito, muito tardio mas melhor do que não serem reconhecidas. É no mínimo justo mostrar como aquele bando de mulheres alegres e determinadas transformaram o que seria um experimento feito para dar errado em uma unidade extremamente organizada e competente.

A Tenente-Coronel Charity Adams Earley morreu em 2002, mas cinco sobreviventes do 6888 estiveram presentes na cerimônia de inauguração do monumento: Maybeel Campbell, Elizabeth Johnson, Lena King, Anna Robertson e Deloris Ruddock.

Em um mundo ideal eu traria essas velhinhas para o Brasil, para ensinar algumas coisas para aquele bando de incompetentes de azul e amarelo.

Para saber mais: www.womenofthe6888th.org


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