Omissão de socorro? Entenda por que ninguém ajudou a salvar o motorista do acidente do Boechat

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A Internet ontem parou por um momento de lamentar a trágica perda do grande Ricardo Boechat, para se unir em indignação -eu sei, chocante, a Internet indignada com algo- o alvo foram os populares no local do acidente com o helicóptero, que observavam impassíveis enquanto uma mulher resgatava o motorista do caminhão também acidentado.

Os comentários estão raivosos, há gente apontando o machismo como culpado, outros elevaram a mulher à condição de heroína, praticamente uma amazona arrancando a porta do caminhão.

A verdade como sempre não está nos extremos. A mulher fez sim um gesto altruísta humano merecedor dos maiores louvores mas não “Arriscou a vida para salvar o motorista”, como noticiaram. Os sujeitos em volta filmando por sua vez não são “covardes inúteis”, por dois motivos.

O primeiro é que não aconteceu isso de “ficar todo mundo filmando”. Ela foi a primeira a chegar e estava conversando com o caminhoneiro para ver se ele estava bem. Os sujeitos em volta filmavam e observavam a situação, a mulher tinha tudo sob controle.

Quando ela tenta abrir a porta e fala “gente, me ajuda aqui” já há DOIS homens do lado dela ajudando, mais gente não poderia subir pois nem cabia. Isso fica CLARO pra quem se dá ao trabalho de assistir ao vídeo.

O segundo motivo pelo qual as pessoas ficam observando sem fazer nada é bem mais complexo, e para isso vamos ter que voltar a outra tragédia, em 1964 quando essa moça, chamada Kitty Genovese foi cruelmente morta e estuprada (sim, necessariamente nessa ordem) por um lixo humano chamado Winston Moseley, que morreu aos 81 anos, depois de passar 52 anos na cadeia. Detesto quando eles fogem da Prisão Perpétua.

Moseley seguiu Kitty de madrugada até o prédio onde ela morava, a esfaqueou em um beco, fugiu quando ela gritou “Socorro, ele me esfaqueou!” e algum vizinho gritou da janela “deixe ela em paz!”. Dez minutos depois Moseley voltou, esfaqueou Kitty mais algumas vezes e a estuprou, enquanto moradores ouviam os gritos sem fazer nada. Nem mesmo chamar a polícia.

O caso foi bastante sensacionalizado pela mídia, na época a história era que 39 pessoas testemunharam o crime sem fazer nada. Como sempre (eu já disse isso hoje!) não foi bem assim. Foram oito ou nove testemunhas e uma delas ligou para a polícia, mas o caso Kitty Genovese continua sendo usado como exemplo didático do chamado Efeito de Espectador.

De forma bem simples: Quanto mais gente presenciando uma situação, menor a chance que alguém individualmente se manifeste para intervir.

É o famoso deixa que eu deixo. Se uma pessoa passa mal do seu lado e vocês estão sozinhos, há praticamente 100% de chance de você ajudar. Se houver um monte de gente em volta, a sensação “alguém precisa fazer alguma coisa” é satisfeita pela quantidade de gente.

Um bom exemplo é quando falta luz. Quanto menor a área atingida mais rápido são feitas as comunicações à companhia de energia, quando atinge o bairro inteiro a gente fala “é geral” e relaxa afinal alguém já deve ter ligado pra Light.

Apesar das críticas ferozes, em verdade não há componente de crueldade indiferença ou egoísmo o Efeito de Espectador. A empatia continua presente, mas a ação é impedida por causa da racionalização, principalmente em situações que não aparentem ser uma emergência.

Outro fator que afeta o Efeito de Espectador: Coesão de Grupo. Quando temos um grupo de desconhecidos eles carecem de um código de comportamento uniforme. Você tem valores a defender, não quer envergonhar seus pares fugindo de suas responsabilidades.

Em um grupo de desconhecidos a reputação individual não é tão importante, e isso afeta a tomada de decisões.

Outro fator: Diluição de Responsabilidade.

Quando alguém passa mal do seu lado você ajuda, a responsabilidade social é 100% sua, mas se há outra pessoa junto, ela cai para 50%. Com um número suficiente de testemunhas, todo mundo se acalma sabendo que alguém vai ligar para a polícia e para os bombeiros, está tudo sob controle.

Isso foi comprovado cientificamente e publicado no paper From Empathy to Apathy: The Bystander Effect Revisited, de Ruud Hortensius e Beatrice de Gelder. Na pesquisa elas usaram ressonância magnética funcional para estudar o cérebro de voluntários.

Confrontados com um vídeo onde uma velhinha tinha um treco e caía no chão, os voluntários reagiam de forma diferente neurologicamente quando a velhinha estava sozinha, ou quando havia uma, duas, ou quatro pessoas em volta dela. Não houve diminuição de empatia, as pessoas apenas ficavam mais calmas vendo que havia gente pra ajudar a velhinha.

O primeiro fator que gera o Efeito de Observador, a Coesão de Grupo, funciona dos dois lados. Se você não faz parte do grupo social, aumentam as chances de ser julgado, e fica com medo de tentar ajudar e piorar as coisas.

O mais cruel de todos é o fator pelo qual racionalizamos que se ninguém está ajudando então não é uma situação grave, mas curiosamente esse fator é anulado quando a gravidade da situação é inquestionável.

Em The unresponsive bystander: are bystanders more responsive in dangerous emergencies, Peter Fischer, Tobias Greitemeyer. Fabian Pollozek e Dieter Frey comprovaram via experimentos que em situações percebidas como emergências reais, tanto indivíduos isolados quanto em grupo reagem na mesma proporção.

Todo mundo é herói da própria narrativa, mas quando a história é contada em conjunto, raramente nos colocamos como protagonistas, somos biológica e socialmente condicionados a fazer parte de um grupo, e nesse momento impera o raciocínio que alguém mais qualificado irá tomar conta da situação.

Isso pode chegar às raias do ridículo, como em 2011, quando um sujeito de 53 anos chamado Raymond Zack caminhou praia adentro em Alameda, Califórnia (onde eles guardam os nuclear weassels) até ficar com água na altura do pescoço.

Polícia e bombeiros foram chamados, mas não entraram na água, a polícia dizia que era caso para os bombeiros e os bombeiros diziam que não tinham como resgatar alguém de terra. Chamaram a Guarda Costeira, que claro não apareceu, ficaram nesse jogo de empurra mais de uma hora, com dezenas de pessoas observando, da praia e casas próximas.

Ninguém fez nada afinal bombeiros e polícia estavam lá. Raymond sucumbiu à hipotermia, e depois de mais vários minutos um sujeito entrou na água e foi até ele, trazendo-o para a praia, mas Raymond Zack morreu horas depois no hospital.

O Efeito Espectador pode ser mortal, mesmo que todo mundo tenha a melhor das intenções, mas a melhor forma de evitar que isso aconteça é toda vez que falarem “Alguém tem que fazer alguma coisa”, lembrar que você, seu carcamano comedor de palmito, É ALGUÉM.



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