As mentes mais inocentes acreditam que conseguimos colocar as figuras históricas dentro de seu contexto mas a realidade é que elas são sempre julgadas pela régua atual, e com isso acabamos cometendo injustiças, por mais que estejamos certos em nosso julgamento. Hanna Reitsch é um desses casos, ela indubitavelmente está do lado errado da História, mas nem por isso merecia ser esquecida.
Hanna é essa linda menina ariana, mas não vamos nos adiantar. Ela nasceu 29 de Março de 1912 em Hirschberg, no que hoje é Polônia mas na época não era, a Polônia havia sido deletada e absorvida pelo Império Austro-Húngaro, o que na época era o que todo mundo imaginava de pior que poderia acontecer com o pobre país.
Filha de pais conservadores e religiosos Hanna desde pequena estava destinada a se tornar missionária, mas ela adorava a idéia de voar, o que no começo do Século XX era um sonho bem inatingível, ainda mais pra uma mulher, mesmo uma que aos quatro anos tentou pular da sacada de casa.
Sorte que Hanna era bem esperta, e convenceu os pais que ela poderia ser uma piloto missionária, faria a faculdade de medicina que eles queriam, e com seu avião poderia levar cuidados médicos, remédios a Palavra de Deus (não necessariamente nessa ordem) a muito mais gente na África. Só que Hanna enchia tanto o saco dos pais que eles fizeram um acordo: Se ela calasse a boca até terminar o ensino secundário, poderia ter lições de vôo enquanto fazia a faculdade.
Ela foi mandada pra Escola de Planadores em Grunau, e por insistência dos pais fez em conjunto um curso de “Ciências Domésticas”, onde aprendeu um monte de coisas úteis, como cavalgar, atirar, cuidar de animais, plantações, etc. Já a escola de planadores não foi tão tranquila.
O Woman’s Lib ainda não estava na moda no começo da década de 1930, e a Internet era terrivelmente lenta, as manas empoderadas não tinham como mandar textão exigindo cotas e Hanna era a única mulher do curso de pilotagem. Para piorar ela era a maior CDF da turma, e quando fizeram o primeiro teste de avaliação geral (no curso eram 3) ela tirou um 10. Nunca nenhum estudante havia tirado um 10 no primeiro teste.
A conclusão dos instrutores, embora não dita abertamente era óbvia, Hanna estava usando seus super-poderes femininos (ie: buceta) pra convencer outros estudantes a ajudá-la a colar. Ela foi convidada a repetir o exame, supervisionada por um grupo de instrutores. De novo ela gabaritou.
Depois de completar a escola de planadores, ela foi para Berlim fazer a faculdade de medicina, e continuou com suas lições de vôo. Nessa época ela percebeu que os pilotos preferiam passar o tempo livre jogando vôlei sem camisa na praia, e conheciam muito pouco sobre seus aviões. Hanna passou a frequentar a oficina da escola, ignorando os calendários na parede e perguntava coisas o tempo todo.
Os mecânicos, inicialmente desconfiados, começaram a dar atenção à moça e ela se mostrou uma exímia aprendiz, uma vez ela passou o fim de semana inteiro desmontando e recondicionando um motor que o mecânico-chefe havia passado como um desafio.
Hanna era uma candidata promissora a se tornar uma grande piloto, mas não sabia… dirigir. Nada demais, carros também não eram algo que mulheres tivessem muita familiaridade <inserir piada sobre mulher motorista aqui>, mas ela sabia como resolver isso. Aproximando-se de uma obra próxima, ela esperou as cantadas de pedreiro acabarem, se apresentou e começou a perguntar sobre o funcionamento dos tratores, caminhões e escavadeiras.
Ela ajudava a consertar os motores, se familiarizava com o funcionamento dos veículos, os operários ensinavam como operar coisas como volante, embreagem, acelerador (seta não, elas nunca aprendem a usar a seta) e Hanna acabou aprendendo a dirigir.
Nessa época ela já pilotava profissionalmente, inclusive pilotando para alguns filmes, e em 1934 Hanna veio dar no Brasil (no bom sentido, é claro). Junto com outros pilotos alemães a expedição planejada estudar o comportamento de planadores em condições térmicas extremas, e em um vôo sobre o Rio de Janeiro Hanna quebrou o recorde mundial de altitude para planadores, 2200 metros, motivo pelo qual ela não foi atingida por alguma bala perdida nem teve sua carteira roubada. Infelizmente ainda dava pra ouvir funk lá de cima.
De volta para a Alemanha (nessa época já era Alemanha) Hanna foi convidada a ser piloto de teste do Deutschesforschungsinstitut fur Segelflug, o Instituto de Pesquisas Alemão para Vôo de Planadores. Ela se tornou especialista em análise de vibração e estruturas de controle, mas em 1936 os ventos da guerra já sopravam na Europa, e ela acabou conhecendo Ernst Udet, ás da Primeira Guerra Mundial e chefe do corpo técnico do Ministério da Aviação.
Eles se conheceram quando Hanna demonstrou para uma comitiva o uso de freios aerodinâmicos em planadores, uma técnica que acabaria viabilizando o Stuka, bombardeiro de mergulho. Udet ficou tão impressionado que concedeu a Hanna o título de Flugkapitän, Capitã de Vôo, a primeira mulher a receber a honraria.
Udet a contratou como piloto de testes civil da Luftwaffe, onde ela testou todo tipo de aviões, do Stuka ao Dornier Do 17, e logo ela foi descoberta pelo setor de propaganda do Partido Nazista, e usada em filmes de divulgação e posters, o que era ironicamente oposto a tudo que os nazistas pensavam sobre mulheres.
A Política Nazista Para Mulheres
A idéia nazista para mulheres era basicamente isto:
Mulheres eram basicamente reprodutoras, seu dever para o Partido, ao qual podiam se filiar mas não exercer posição de liderança, era produzir bebês loirinhos da raça superior para substituir os soldados superiores que estavam sendo dizimados pelos Aliados.
Não há histórias de grandes guerreiras alemãs, não há snipers, pilotos de combate, engenheiras navais. Os ingleses e americanos não usaram mulheres em combate, mas todo o resto do trabalho elas faziam. Para os nazistas, era um absurdo.
Hanna era uma pedra no sapato do nazismo, pois deveria estar casada e espocando sua prole a cada 9 meses, mas insistia em voar. Ao mesmo tempo ela era ótima para vender a imagem falsa de que mulheres eram aproveitadas para outras coisas no Regime. Sim, é hipócrita, mas Hitler está acostumado e não foi a pior coisa que o xingaram.
Apesar de ser a queridinha do Regime, Hanna não parou de voar, ela foi a primeira pessoa a pilotar um helicóptero em ambiente fechado. Foi em 1938, ela fez várias demonstrações do Focke-Achgelis Fa-61, dentro do Deutschlandhalle, uma mega-arena em Berlim construída em 1935.
Por esse feito ela ganhou a Medalha de Vôo Militar, mas sua maior condecoração custou bem mais caro. Em 1942 ela participou do programa de desenvolvimento do Messerschmitt Me-163 Komet, um avião-foguete que Hitler esperava ser capaz de deter as esquadrilhas de bombardeiros aliados.
O Komet era um matador, seu combustível era tão corrosivo que alguns pilotos foram dissolvidos em vazamentos ou acidentes. Sua estrutura só o tornava estável em altas velocidades, e por precisar ser muito leve o trem de pouso era ejetado após o lançamento, ele pousava em um esqui.
Durante um vôo de testes Hanna sentiu uma vibração constante quando soltou o trem de pouso. Um dos aviões de acompanhamento emparelhou com ela, o piloto acenou um lenço enquanto abaixava e subia o trem de pouso. Hanna entendeu, mas decidiu pousar mesmo assim.
No último momento o avião perdeu sustentação e ela caiu próxima à pista. Hanna sofreu quatro fraturas no crânio os ossos do rosto também foram fraturados, seu nariz foi praticamente arrancado e sua mandíbula, deslocada. Ela passou cinco meses no hospital, até que se cansou, fugiu e contra ordens médicas voltou a voar.
Por sua heróica tentativa de salvar o Komet, Hanna recebeu a Cruz de Ferro, primeira Classe, foi uma das três mulheres a receber a honraria.
Quando a Guerra começou a ficar insustentável, Hanna percebeu que o Alto-Comando nazista não aceitava a realidade. Em um jantar ela tentou explicar a Hermann Göring, Comandante da Luftwaffe que o Me-163 nunca funcionaria, mas Göring se irritou e saiu da sala. Ela também perguntou a ele se era verdade o boato sobre câmaras de gás em campos de concentração. Ele disse que era mentira, propaganda da oposição.
Hanna acreditou, afinal se você não puder confiar no Número 2 de Hitler, em quem irá confiar?
O Bicho Começa a Pegar
Hanna passa várias semanas visitando a Frente Russa, e se convence que se a Alemanha não fizer algo vai perder e perder feio. Em conjunto com outros pilotos ela desenvolve a Operação Auto-Sacrifício, que não envolve matar carros em honra a satã, mas o bom e velho (ok na época era novidade) kamikazi.
Hanna planejava usar o Messerschmitt Me 328, um caça a jato já em desenvolvimento como avião-bomba, atingindo alvos estratégicos aliados. O Me 328 já era um avião que seria sacrificado de qualquer jeito, ele era um caça-Parasita, que voaria nas costas de um bombardeiro e quando chegassem perto dos alvos, seriam lançados para proteger os aviões maiores.
Ela conseguiu 70 voluntários e começou a fazer planos, felizmente uma voz da razão foi contra: Hitler. Ele disse que não era algo que cairia bem psicologicamente para as tropas, e que a Alemanha não estava desesperada a esse ponto, mas Hanna sabia ser insistente. Hitler a autorizou a prosseguir com o projeto de forma unicamente experimental, e queria ser “poupado dos detalhes”.
Quando o Me 328 se tornou inviável Hanna se voltou para o Fieseler Fi 103R Reichenberg, uma versão tripulada da bomba voadora V1.
Os planos nunca foram colocados em prática, mas Hanna ainda tinha uma última e dramática participação na Guerra. Pilotando um Arado Ar 96 ela pousou em uma pista improvisada perto do Portão de Brandenburgo, levando o General Robert Ritter Von Greim, um antigo amigo e dizem as más-línguas, amante. Ele havia sido promovido a comandante da Luftwaffe, que não existia mais.
Eles se encontraram com Hitler em seu bunker, Greim recebeu ordens de contra-atacar os soviéticos, que já estavam na cidade. Hitler deu a eles cápsulas de Cianureto, e eles decolaram sob fogo inimigo. Pouco tempo depois foram capturados por americanos, Hanna ficou presa 18 meses mas foi absolvida das acusações de crimes de guerra.
Greim se suicidou na prisão, mas a tragédia de Hanna não acabou aí. Sua família ouviu boatos de que seriam presos e enviados para os soviéticos, então seu pai matou a esposa, a filha e os três netos, se matando em seguida.
Depois da Guerra Hanna estava proibida de voar como todos os alemães, mas planadores eram liberados. Em 1952 ela se tornou a primeira mulher a participar do Campeonato Mundial, e terminou a competição com uma medalha de bronze. Em 1955 ela se tornou campeã alemã e recordista mundial de altitude para mulheres, com 6.848m, algo respeitável pra algo sem motor.
Ela não conheceu só Hitler de nazista famoso, em suas viagens aos Estados Unidos, ela conheceu também Werner Von Braun:
Em 1961 ela foi convidada por JFK para visitar a Casa Branca…
E em alguma de suas viagens, conheceu Neil Armstrong.
Sobre os Estados Unidos, ela disse que foi preparada pra não gostar de nada, mas achou tanta coisa no American Way of Life que gostaria de imitar que adorou a viagem. E isso ela falou em 1938.
Na década de 1960 ela fez várias viagens para Índia e África, se tornou amiga de Indira Gandhi e acabou convidada pelo então Primeiro-Ministro Kwame Nkrumah a abrir uma escola de planadores em Gana.
Hanna reexaminou vários de seus preconceitos, declarando:
“Mais cedo em minha vida nunca ocorreria a mim tratar uma pessoa negra como amiga ou parceira”, sensação que a deixavam com culpa por sua presunção e arrogância.
Hanna participou ativamente do programa de modernização de Gana, e sua escola de planadores foi a primeira da África Negra, acompanhada de perto pelo governo e militares, que sabiam da importância estratégica de formar pilotos.
Depois de terminar seu trabalho em Gana em 1966, Hanna voltou a competir com planadores, quebrando dois recordes mundiais de vôos ida e volta, 715Km em 1976 e 802Km em 1979. Ela também venceu a categoria feminina do primeiro campeonato mundial de helicópteros.
Mesmo assim ela ainda era nazista.
Hanna nunca renunciou ao nacional-socialismo. Alguns que a conheceram dizem que ela era muito ingênua politicamente, e ninguém sabe como ela conciliava a parte racista do nazismo com suas visões pessoais. Talvez ela acreditasse que era possível nazismo sem racismo, como naquele velho episódio de Star Trek.
No mínimo ela era confusa, a correspondência entre Hanna e
Kwame Nkrumah deixa fortes evidências que eles eram amantes, o que não se encaixa muito no comportamento da Raça Superior.
Hanna Reitsch em uma de suas últimas entrevistas disse:
“E o que se tornou a Alemanha? Um país de banqueiros e fabricantes de carros. Mesmo nosso grande exército amoleceu. Soldados usam barbas e questionam ordens. Eu não tenho vergonha de dizer que acreditei no Nacional-Socialismo. Ainda uso a Cruz de Ferro com diamantes que Hitler me deu. Mas hoje em toda a Alemanha você não consegue achar uma pessoa que tenha votado em Adolf Hitler… muitos alemães sentem culpa por causa da guerra mas eles não explicam a verdadeira culpa que sentimos: termos perdido”.
Em 24 de Agosto de 1979 Hanna morreu em Franfurt, de um ataque cardíaco. Dias antes seu amigo e aviador britânico Eric Brown recebeu uma carta onde Hanna escreveu:
Tudo começou no bunker, e no bunker vai acabar.
Aparentemente Hanna usou o último presente de Hitler, a cápsula de cianureto. Nenhuma necrópsia foi feita, o segredo de Hanna morreu com ela, junto com uma vida de histórias e aventuras e tragédias que só aconteceu por uma menina ter nascido no lugar errado, na hora errada.