Em guerra, assim como na vida temos a tendência de desdenhar dos adversários, fazer piada e demonstrar como não nos preocupamos com eles, mas ao mesmo tempo é perigoso acreditar demais nisso. Em dado momento você vende tanto o peixe de que seu adversário é um selvagem sub-humano incapaz dos seus feitos de tecnologia e coragem, aí relaxa e toma uma bela piaba.
Isso aconteceu mais de uma vez na Guerra do Pacífico, com Americanos E Japoneses subestimando o outro lado e pagando caro por isso. Sim, floquinho, a propaganda japonesa era tão racista e xenófoba quanto a americana, talvez mais.
Obviamente ninguém aprende, aí caímos em uma estranha realidade aonde a esquerda acusa o Bolsonaro de ser um completo imbecil, incapaz de usar um cotonete sem manual de instruções, mas ao mesmo tempo é um gênio manipulador que controla políticos, mídia e internet para promover seus planos nefários.
Embora a primeira opção seja mais provável, admiti-la como verdadeira seria admitir que conseguiram perder uma eleição pra uma marionete de batata inglesa.
Historicamente há casos aonde o inimigo é elogiado, e até admirado. Isso torna nossa vitória melhor ainda, muito melhor vencer o Império Romano do que o Uruguay, mas no caso da Alemanha Nazista a percepção deixou de ser propaganda, virou consenso.
Essa percepção é evidente no clássico comercial Hitler, da Folha de São Paulo, criado por Washington Olivetto e veiculado em 1987.
A idéia de que apesar de uma ou outra pequena falha moral os nazistas reergueram uma nação em frangalhos, criando um país eficiente, com emprego, saúde, educação, etc está enraizada no inconsciente coletivo, virou até tema de um episódio de Star Trek da Série Clássica, onde o historiador mais burro do mundo acha que pode salvar a economia de um planeta implantando o nazismo, excluindo violência e políticas genocidas.
Os filmes mostrando a produção industrial da Alemanha não deixam dúvidas, os tanques em suas linhas de montagem, navios gigantescos sendo produzidos, estaleiros despejando submarinos no mar sem parar, tudo é ágil e grandioso na Alemanha Nazista.
Ou não?
Primeiro de tudo vamos situar a política econômica da Alemanha no pós-pré-guerra.
Com o fim da Primeira Guerra Mundial a Alemanha foi destruída economicamente. O dinheiro nos bancos evaporou, o desemprego foi pras alturas, a agricultura se ferrou completamente, pois grande parte da mão-de-obra foi pra Guerra e não voltou.
O Kaiser abdicou, foi formada a República de Weimar e os Aliados atulharam a Alemanha de pedidos de indenização, o suficiente para inviabilizar a economia do país. Em meados da Década de 1920 o então Ministro de Relações Exteriores, Gustav Stresemann apresentou o caso aos EUA e conseguiu uma redução nas indenizações. Ao mesmo tempo os bancos americanos perceberam na Alemanha um ótimo mercado para expandir seus investimentos.
Sem dinheiro em caixa, os alemães começaram a pegar dinheiro dos EUA a juros altos, e repassar para seus clientes. Isso ajudou a economia a crescer, o governo estatizou um monte de serviços, criou mecanismos de previdência social, leis trabalhistas e a Alemanha foi devagar se recuperando, até um certo dia em 1929.
Com o Crash de 29 os bancos americanos correram atrás de dinheiro em todo lugar, uma fonte favorita foi apertar os bancos alemães, o que -de novo- destruiu a economia do país, abrindo espaço para o surgimento do Partido Nazista, com uma proposta de terceira via, inclusiva, adotando todo tipo de eleitor (exceto judeus, comunistas, você sabe, os suspeitos habituais).
Com a Crise de 29 a Alemanha ganhou 20 milhões de desempregados. Em 1933 esse número era de 11.5 milhões. Com a ascensão do nazismo ao poder, foram criados projetos coletivos e incentivos que em um ano diminuíram esse número pela metade. O povo estava vendo resultado, e no papel as propostas eram mais que razoáveis, ainda mais para um povo que tinha sido ferrado pelos banqueiros.
Sim, Hitler odiava capitalismo, que ele chamava de “escravidão dos juros”. Segundo a doutrina nazista o Capitalismo1 “Escravizava seres humanos sob o slogan do progresso, tecnologia, racionalização, padronização, etc”.
No documento2 que lista os 25 Pontos da doutrina do Partido Nazista, há partes que parecem vir direto do Programa de Governo de um PSOL da vida:
“Exigimos a criação e manutenção de uma classe média sólida, a comunalização imediata de grandes lojas que serão alugadas a baixo custo para pequenos comerciantes(…)”
Ou:
“Exigimos a nacionalização de todos os trustes.
Exigimos participação nos lucros em grandes indústrias.
Exigimos um aumento generoso nas pensões de velhice.”
E esse tópico 17, que deixaria o MST com uma ereção pétrea:
“Exigimos uma reforma agrária de acordo com nossas exigências nacionais e a promulgação de uma lei para expropriar os proprietários sem indenização de quaisquer terras necessárias para o propósito comum. A abolição do aluguel da terra e a proibição de toda especulação imobiliária.”
Apesar disso, o Partido Nacional-Socialista era tudo menos socialista. Hitler odiava comunismo, que chamava de “A Guarda Branca do Capitalismo”. Comunistas eram listados junto com judeus3 como “inimigos do Estado”.
Ah sim, ele também odiava social-democracia. Hitler era um cara bastante irritado com todo mundo.
Inclusive com o próprio conceito de Estado, os nazistas não gostavam de serviço público e burocracia estatal, tanto que fizeram uma limpa, removendo todos os indesejáveis das repartições públicas e substituindo-os por membros do Partido.
No papel a Alemanha ia de vento em popa. A agricultura entre 1933 e 1939 aumentou 71%, a produção industrial batia recordes, a Alemanha maravilhava o mundo com seus Zeppelins, suas autobahns e seus carros populares, mas como sabemos o Fusca foi um grande estelionato aplicado no povo alemão, e o resto não ficou muito longe.
Mesmo antes da Guerra a Alemanha já vivia racionamento, até maçãs eram difíceis de achar. Sem reservas, frutas importadas eram caríssimas. A Agricultura havia se tornado essencialmente de subsistência, com êxodo rural e a mão de obra ainda não recuperada da perda de vidas da 1ª Grande Guerra.
A propaganda vendia a idéia de uma Alemanha poderosa monolítica e funcional, mas mesmo Albert Speer, o Arquiteto de Hitler definiu o regime nazista como “Caos organizado”. Em alguns casos havia 5 agências diferentes responsáveis pelo mesmo setor econômico, ao que Hitler respondia1 “que o mais forte faça o serviço”.
O próprio crescimento industrial teve um preço muito caro. Apesar do discurso socialista em seu manifesto, os nazistas odiavam sindicatos, e uma das primeiras medidas que tomaram foi colocar membros do Partido no comando das unidades sindicais, que em muitos casos tiveram seus bens confiscados. As condições de trabalho não eram mais reguladas pelo Estado, nem os salários.
O salário médio por semana de um trabalhador alemão5, em valores reais saiu de 94.6 Marcos em 1914 para 111 Marcos em 1940. O afegão, digo alemão médio tinha emprego, mas ganhando menos e trabalhando mais, e depois que a Guerra começou, sofrendo com a competição desleal da mão de obra escrava, que era mais barata ainda.
Lembra quando eu falei que não dá pra confiar em nazistas? Pois é. No Ponto 6 do manifesto deles, é dito:
“Nós travamos guerra contra a administração parlamentar corrupta, por meio da qual os homens são nomeados para cargos em favor do partido, independentemente do caráter e da aptidão.”
Apesar disso Hitler nomeou para supervisionar seu plano de reforma da economia não um economista, mas Hermann Göring, um aviador. Um ótimo aviador aposentado, admito, mas com zero conhecimentos de economia e administração.
No campo militar a única coisa eficiente era o desperdício de recursos. A Alemanha havia planejado construir quatro porta-aviões classe Graf Zeppelin, mas quando a Guerra começou nem o primeiro estava pronto. O Graf Zeppelin só foi lançado em 1938.
Em termos, claro. Ele só estava 85% pronto, com previsão pra estar pronto em 1940. As brigas internas na Marinha, junto com a sempre mutante estratégia de Hitler, que não gostava de porta-aviões acabou suspendendo o projeto, depois de anos, milhões de dinheiros investidos e preciosos recursos de matéria-prima afundados no navio.
Boa parte da pretensa eficiência alemã vinha das super-armas, que ficavam ótimas nos vídeos de propaganda mas na ponta do lápis, não funcionavam. Peguemos o Panzerkampfwagen Tiger Ausf. B, por exemplo. Mais conhecido como Tiger II, era um tanque formidável, um monstro de 68 toneladas. Os Abrams usados hoje pelos EUA pesam 61 toneladas.
Quase invulnerável, o Tiger II tocava terror nas tropas aliadas, era preciso um monte de tanques inimigos para derrotar um Tiger II. Ele poderia ter mudado o destino da guerra, exceto que só foram construídos 489 unidades.
Já o M4 Sherman, o carro-chefe do Exército dos EUA teve 49234 unidades construídas. E não é só uma questão de capacidade industrial. Nem os EUA poderiam construir o Tiger II em grande quantidade. Cada Tiger II custava, em valores de 1945, US$300 mil. Um Sherman custava US$44 mil6.
Os foguetes V2? Cada um custava o equivalente em 1944 a US$37500. Hitler estava pagando o equivalente a um Spitfire (US$50 mil) ou um tanque Sherman cada vez que lançava uma tonelada de explosivos em Londres.
Por todo lado a Alemanha Nazista era um país assolado de burocracia, órgãos redundantes batendo cabeça e exercendo a mesma função, e gente mais preocupada em promover a imagem da eficiência do que ser eficiente. Isso aconteceu desde o começo, quando os ideais de eficiência foram cooptados da Prússia7, mas apenas os ideais.
Essa percepção persiste até hoje, com a Alemanha pagando de eficiente mas levando nove anos pra construir um aeroporto em Berlim.
Propaganda aliás nem era exclusividade de Hitler. Todo mundo lembra a clássica frase “Mussolini fez os trens andarem no horário”, mas na prática o que ele fez foi desestimular os passageiros de reclamar dos atrasos8.
Mussolini investiu sim em ferrovias, mantendo os projetos de recuperação existentes antes de assumir o poder, e focando a maioria dos investimentos nas rotas cênicas do Norte, que a Elite italiana usava para visitar suas casas de inverno.
Conclusão
Apesar da propaganda, o microgerenciamento inerente a todo regime fascista, a necessidade de ter gente de confiança em todos os níveis hierárquicos e o desejo por soluções rápidas, junto com a tara por controle e documentação tornaram inviável à Alemanha ser realmente eficiente. Portanto, quando chamar alguém de nazista, cuidado. Pode não ser entendido como elogio.
Fontes:
- The Washington Post – Five myths about Nazis
- The History Place – The 25 Points of Hitler’s Nazi Party
- Wikipedia – Political Views of Adolf Hitler
- Coffee Cup History – The Myth of Nazi “Efficiency”
- Historicly – The Economy of Evil
- Wikipedia – M4 sherman
- DW – German efficiency: The roots of a stereotype
- The Guardian – Revisiting Mussolini’s railways