Que a Europa dos Anos 30 não era fácil pra ninguém, não é novidade, mas era especialmente complicada para judeus, quando os movimentos fascistas os escolheram como boi de piranha e justificativa pra tudo de errado no Mundo.
Isso foi especialmente verdade para um sujeito chamado Leon Moriz Reiss. Ele era ex-tenente do Império Austro-Húngaro, e por um tempo foi ex-judeu. Leon, que atendida pelo nome artístico de Leo Reuss nasceu na Ucrânia em 1891, e frequentou a Academia de Música e Artes Dramáticas de Viena, por volta de 1913.
Formado, Leo ingressou no teatro, conseguindo uma carreira bem promissora, sendo bastante elogiado, o suficiente para sair da Áustria e em 1921 ir para Munique, e mais tarde Berlin, onde não só atuou em um monte de peças como se tornou produtor.
Para inconveniência de Leo e mais algumas outras pessoas, um tal Regime Nazista estava tomando conta da Alemanha. Começaram a surgir leis restringindo os direitos civis da população judaica, incluindo cancelar a cidadania, além de proibir que trabalhassem em diversas profissões.
Leo sentiu que não era bem-vindo, e teve a excelente idéia de que não era ideal ser judeu na Alemanha de 1935. Não tão inteligente foi a idéia de voltar pra Áustria.
Chegando em Viena, nosso amigo ator descobriu que o clima por lá não estava muito judeu-friendly também, e os trabalhos começaram a escassear, ainda mais com a proibição da Alemanha de judeus trabalharem na indústria cinematográfica, que a Áustria acatou.
Leo teve então uma idéia maligna: Se mudou para uma cabana na região do Tirol, onde as montanhas estão vivas com o som da música.
Os tiroleses são um povo bem pitoresco, vide as roupas típicas, mas eles também têm todo um jeito de falar e agir que se destaca. Leo passou então a estudar os maneirismos, sotaques e prosódia dos moradores da região.
Ele passou um ano sumido. Quando voltou estava com uma barba bem grande, cabelão e tomava banho de imersão em água oxigenada para clarear a penugem.
Apresentando-se com o nome de Kaspar Brandhofer, Leo dizia ser um fazendeiro tirolês que aprendeu sozinho a atuar, e queria uma chance de mostrar seus talentos. Ele procurou Max Reinhardt, um diretor com quem havia trabalhado antes. Leo ficou com medo de ser reconhecido, mas seu disfarce era bom demais.
Max não só não o reconheceu como ficou impressionado com seu talento, e o recomendou a Ernst Lothar, outro diretor, produtor e autor. Depois de uma entrevista em Viena, Lothar convidou Leo para participar de uma peça que ele estava montando, Fräulein Else.
Vários atores da peça já haviam trabalhado com Leo. Ele manteve o personagem o tempo todo, ninguém o reconheceu, viam apenas um tirolês, cristão, meio chucro, que era ótimo ator mas não conhecia nada do ramo.
Quando a peça estreou, o público adorou a performance de Kaspar, digo, Leo. Ele foi chamado de “o melhor ator natural de sua geração”, de prodígio, sua carreira era promissora, etc, etc. A Crítica simplesmente AMOU Kaspar Brandhofer.
Quem também gostou dele foram os nazistas. Kaspar foi apontado como exemplo da superioridade do Homem Ariano, um humilde camponês que através de talento e dedicação se tornou um ator fenomenal, representando os mais elevados ideais da Raça Superior.
Lothar ofereceu a ele um contrato de três anos, e promessas de vários outros trabalhos, mas algo não estava correto. Leo havia enganado todo mundo, mas teria que continuar assim por vários anos.
Ele decidiu então, depois de uma semana revelar a farsa, e joga na cara dos nazistas que não era raça, mas talento que fazia um ator.
Isso não caiu bem, e Leo foi preso, ou ao menos detido. A acusação, usar uma identidade falsa, que felizmente ainda não era um crime capital para um judeu na Áustria, como respirar seria alguns anos adiante.
Leo levou uma multa, e percebeu que a situação só iria piorar. Desta vez consultando um Atlas, ele fez a coisa certa e se mudou para Nova York.
Lá ele logo encontrou um fã que havia visto uma de suas apresentações em Viena, um tal de Louis B. Mayer.
Um dos Ms da MGM, Louis dispensou o teste do sofá e ofereceu trabalho para Leo na hora.
Com o nome Lionel Royce, Leo fez pelo menos 49 filmes entre 1938 e 1946, participando de clássicos como Gilda e Maria Antonieta. E ele não estava sozinho. Hollywood era uma espécie de Meca para atores judeus emigrando da Europa, eles trouxeram mudança e sangue novo para uma indústria que ainda estava se acostumando a mudanças como cor.
Ironicamente, Leo fugiu dos nazistas mas eles nunca ficaram muito longe, como a maioria dos atores europeus que foram parar nos EUA, eles eram perfeitos para papéis de… nazistas.
Sim, como não haviam inventado ainda a Apropriação Cultural, era politicamente correto para judeus fazerem papéis de nazistas.
Lionel Royce fez vilões em dezenas de filmes, interpretando vários alemães e nazistas, entre oficiais e espiões. Os mesmos nazistas que o impediram de trabalhar agora eram sua fonte de renda.
Ele obviamente não era nenhum Clark Gable ou Bogart, Royce era um ator coadjuvante, talentoso, confiável e bom de se trabalhar, o que lhe rendeu um monte de convites e propostas, inclusive uma estranhíssima: O representante da Embaixada Alemã ofereceu a Royce um emprego como diretor da UFA GmbH, a maior produtora e distribuidora de filmes na Alemanha.
Royce receberia inclusive um título de “Ariano Honorário” para poder assumir a vaga.
Mui espertamente, ele respondeu “obrigado, mas não obrigado” e preferiu acompanhar de longe a queda do 3º Reich, e os únicos nazistas de seu convívio eram seus colegas judeus nos sets de filmagem.
Sua colaboração com o esforço de guerra foi se unir ao USO – United Service Organizations, aquela ONG que organiza shows e entretenimento para militares no exterior. Royce fez shows para o USO até quando nas Filipinas teve um ataque cardíaco fulminante e veio a falecer, em Primeiro de Abril de 1946.
Lionel Royce tirou sarro da Raça Superior, fez de sua profissão interpretar nazistas, que eram sempre os vilões e sempre perdiam no final, e ainda teve o prazer de ver os nazistas de verdade sendo derrotados. No mínimo uma vida de se aplaudir de pé.