Nossa história se passa antes da Internet ter se popularizado, e envolve o povo Xhosa (pronuncia-se *click*coza), um dos maiores grupos étnicos do que hoje é conhecido como África do Sul. Os Xhosas são conhecidos por sua língua, que usa vários cliques sonoros, é realmente fascinante.
O que não é tão fascinante é que eles passaram por uns bons perrengues durante a colonização holandesa e depois inglesa, resultando nas Guerras Xhosa, entre 1779 e 1879.
Logo após a oitava Guerra Xhosa, que terminou em 1853, o reino estava em frangalhos; o gado, principal fonte de renda e alimento dos Xhosa, sofria com uma epidemia de Pleuropneumonia Contagiosa Bovina, trazida provavelmente por gado europeu importado pelos colonizadores.
O ressentimento contra os ingleses era imenso, a 8ª Guerra foi a mais violenta de todas, os Xhosa perderam e perderam feio. Eles precisavam de ajuda e para isso apelaram até para o sobrenatural.
Os Xhosa eram muito supersticiosos (que como a gente chama a religião dos outros) e viam sinais de interferência divina em tudo. Um desses sinais veio de uma adolescente de 15 anos chamada Nongqawuse.
Seus pais morreram durante a guerra, ela foi criada por um tio que por acaso dirigia um orfanato. O tio a introduziu (no bom sentido) nos mistérios da religiosidade Xhosa, o que deixou a menina bastante impressionada.
Um dia, em abril de 1856, Nongqawuse e uma amiga estavam espantando pássaros em uma plantação (tipo a cena de Forrest Gump, sem as conotações sinistras) quando ela teve uma visão.
Nongqawuse correu para contar tudo para Mhlakaza, seu tio e mentor espiritual. Segundo os ancestrais na visão, os Xhosa deveria destruir todas as suas plantações e matar todas as cabeças de gado.
A lista de demandas dos “espíritos” era bem completa:
- Os mortos ressuscitariam.
- Todo o gado vivo teria que ser sacrificado, pois foi criado por mãos contaminadas.
- A agricultura teria que cessar.
- Novos grãos precisariam ser plantados.
- Novas casas precisariam ser construídas.
- Novos currais para gado precisariam ser erguidos.
- Novos sacos de leite precisariam ser feitos.
- As portas teriam que ser trançadas com raízes de buka.
- As pessoas devem abandonar a feitiçaria, o incesto e o adultério.
Se seguissem esses comandos, os espíritos varreriam todos os europeus para o mar, os Xhosas seriam recompensados com gado novo, as plantações cresceriam férteis e fortes.
Uma pausa para você, querido leitor, refletir sobre essa idéia idiota. Imagine alguém chegar e dizer “se você botar fogo na sua empresa ela vai ressurgir maior e mais poderosa”.
Não estamos falando de latifundiários, a maioria dos Xhosa praticava agropecuária de pequena escala, aqueles boizinhos, aqueles pés de sei lá o que eles plantam na África eram o que botava comida na mesa. Sugerir que essas pessoas destruíssem seu meio de subsistência é de uma idiotice atroz.
Mhlakaza obviamente começou a espalhar a profecia de sua sobrinha, e conseguiu uma audiência com Sarili kaHintsa, Rei dos Xhosa, que também acreditou piamente em Nongqawuse. Com o apoio real, a história se espalhou, e logo praticamente toda a população do reino seguiu os comandos da adolescente.
Os Xhosas começaram a queimar as plantações e matar as cabeças de gado, foi uma fartura imensa, churrasco todo dia, afinal ninguém falou nada em desperdiçar a carne. Estima-se que entre 300 mil e 400 mil bois e vacas tenham sido exterminados, o que resultou em um monte de Xhosas cansados, mas de barriga cheia. Por um tempo.
Nongqawuse previu que a profecia seria cumprida em 18 de fevereiro de 1857, o Sol ficaria vermelho, os europeus seriam varridos da África, todos ficariam felizes.
Spoiler: Nada de diferente aconteceu no dia.
O Rei foi atrás dela e do tio, que o convenceram que houve um pequeno erro de cálculo. Sarili saiu da casa de Nongqawuse anunciando que em oito dias o Sol nasceria vermelho, uma grande tempestade varreria os europeus, os mortos ressuscitariam e a prosperidade viria.
Com essa confirmação, os Xhosas mataram todo o gado que sobrou, somente um pequeno grupo de céticos, chamados de amagogotya (os amargos) se recusaram a matar os boizinhos, e eram bem malvistos pelo resto dos Xhosa.
Obviamente oito dias depois NADA aconteceu. Os Xhosa se viram sem plantações, sem gado, sem comida. Nongqawuse foi entregue aos ingleses, para sua própria proteção, e permaneceu na casa de um tal de Major Gawler por um tempo. Nessa ocasião foi feita a única foto que temos de Nongqawuse.
Sem fonte de subsistência, os outrora orgulhosos Xhosa se viram em meio a uma imensa fome, a população caiu de 105 mil para menos de 27 mil, os que sobreviveram tiveram que implorar aos ingleses ajuda, com mantimentos e meios para reconstruir suas plantações e fazendas.
Em resumo: Uma adolescente inventou uma profecia sem pé nem cabeça, pedindo pro povo destruir sua fonte de subsistência, e todo mundo achou uma ótima idéia.
Gente profetizando o fim do mundo não é novidade. Uma vez fiz uma busca no Google e descobri que literalmente havia um “profeta” em algum lugar prevendo fim do mundo para qualquer ano imaginável. Sim, 2024 também. A diferença é que essas profecias são em geral passivas, com algumas exceções, tipo aqueles cultos que todo mundo se reúne pra se matar e embarcar na nave alienígena voando atrás do cometa Halley.
O que aconteceu com o povo Xhosa foi diferente, mesmo Jim Jones, em Jonestown teve que forçar parte de seus seguidores a tomar o veneno. Aqui os Xhosa beberam tudo e lamberam os dedos.
A explicação é que Nongqawuse apareceu no momento ideal, pegou um povo sem esperança, humilhado, desesperado para se livrar de seus inimigos. Um povo extremamente religioso, não treinado em ceticismo, ensinado a não questionar líderes, pregadores e profetas.
O mais assustador é que uma jovem de 15 anos conseguiu promover um genocídio de gente grande, exterminando 2/3 de um povo. Thanos ficaria impressionado.
Os ingleses, claro, adoraram. Agora os Xhosa vinham pedir emprego, suas terras eram vendidas por troco de pinga ou tomadas na mão-grande, pois não havia mais gente suficiente para defendê-las, e a expansão britânica foi bem mais tranquila, ao menos até 1877, quando aconteceu a última Guerra Xhosa, a 9ª, iniciada em uma briga de bar. Sério.
Quanto a Nongqawuse, ela fugiu para a obscuridade, se mudou para Alexandria (Ainda na África do Sul, não a do Egito) e viveu tentando fazer com que ninguém se lembrasse quem ela era. Faleceu aos 57 anos, em 1898.
O povo Xhosa perdeu seu reino, mas hoje são quase 10 milhões de pessoas, espalhados em 5 países. Seis se você contar os EUA e o Trevor Noah.
Fontes:
- Women in South African History – Human Sciences Research Council
- The Tongue Is Fire – South African Storytellers and Apartheid – Harold Scheub
- The Dead Will Arise – Nongqawuse and the Great Xhosa Cattle Killing 1856-7 – Jeff Peires
- NongqawuseXhosa cattle-killing movement and famine (1854–1858)