Você pode ser uma abominação e nem sabia!

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Está divertido acompanhar o povo desesperado com IA vendo pura tecnologia invadir áreas tidas como sagradas, reservadas somente para humanos, e humanos especiais, isso gerou um medo e ressentimento que chega ao nível de pura comédia. Imagens, músicas são elogiadas, mas se você diz que foram feitas por IA, o sujeito imediatamente torce a cara e começa a explicar por que aquela peça é uma droga, e ele havia percebido desde o princípio.

Essa noção estranha, esse pecado original, de ser ruim, do mal apenas por ser IA é fruto do medo inato que muita gente tem de novas tecnologias. Somos criaturas de hábito, não gostamos de mudança.

Todo esse medo da IA é bem maior do que em outras ocasiões, onde a tecnologia igualmente ameaçou empregos e status quo, como por exemplo a automação bancária, telefonia eliminando telefonistas, gráficas eliminando gráficos.

Eu gostaria de dizer que esse medo tem a ver com ameaças a empregos, mas a realidade é que o afegão médio morre de medo de mudança, e nada muda mais a vida do que tecnologia (talvez uma Megasena acumulada). As pessoas encaram mudanças com medo e desconfiança. Essa semana mesmo um leitor comentou que a avó se recusa a comer comida aquecida em microondas, pois “dá câncer”.

Como a mídia percebeu que é tiro no pé, meio que esqueceram a eterna forçada de barra associando telefone celular com câncer, algo que se fosse verdade teríamos uma explosão nos casos de câncer de 1990 pra cá.

Nota: Os casos de câncer aumentaram nas últimas décadas, mas a culpa disso não é do seu celular. A população aumentou bastante e as pessoas estão vivendo mais, e a probabilidade de desenvolver câncer aumenta bastante com a idade.

O medo das novas tecnologias é maior na área de saúde. Todos vimos o negacionismo anti-vacina durante o COVID, mas não se engane achando que isso é só coisa de gente ignorante da direita conservadora. Na verdade o movimento anti-vacina surgiu da esquerda americana, com seu discurso natureba hippie anti-corporações.

O mais assustador é que vacinas são tecnologia de mais de 200 anos, absolutamente comprovada, mas de alguma forma o povo agora tem medo da “vacina não-testada”.  E não parou com o COVID, teve gente que conheço que se recusou a tomar a vacina contra dengue, por ser… adivinhem “nova e não-testada”. 

Sim, eu expliquei que a vacina levou anos pra ser desenvolvida e teve todas as fases de teste, mas gado é gado.

Na maioria dos casos a desconfiança com a tecnologia é vencida pela conveniência. Minha mãe tinha HORROR a Pix, dizia que o Governo iria roubar o dinheiro dela. Alguns meses depois virou evangelista da tecnologia.

Quando a eletricidade começou a se popularizar, era precedida por histórias de terror de como iria matar todos na casa, causar doenças, dor e sofrimento. Televisão? Com toda certeza estragaria os olhos se você se sentasse muito perto. Cansei de ouvir isso.

Em 2015 uma cidade nos EUA, Woodland, proibiu a criação de uma planta de energia solar municipal, a alegação de uma das moradoras que reclamou -Jane Mann- era que as placas iriam absorver a luz solar da região, e prejudicar a fotossíntese das plantas nas fazendas próximas. AH, ela também apontou pro aumento de casos de câncer na região, dizendo que “ninguém pode dizer a ela que os painéis solares não causam câncer”.

Detalhe: Essa mula era uma professora de Ciências aposentada.

Menos recentemente tivemos o problema com a vacina contra o HPV, um avanço revolucionário que salvará milhões de mulheres, evitando que desenvolvam câncer de útero, mas como a vacina precisa ser aplicada bem cedo, antes da menina se tornar sexualmente ativa, um bando de gente tacanha achou que A implica em B, e a vacina induziria as adolescentes a sair transando.

Como se precisasse de vacina pra isso.

Tá mas e a abominação?

Um dos casos mais fascinantes de Ciência malcompreendida é, provavelmente, você, caro leitor. Existe uma chance entre 2% e 10% de você ser fruto de fertilização in vitro, antigamente chamado de Bebê de Proveta.

Tipo isso, só que não.

“DÃÃÃÔ dirá você, corretamente. Isso é irrelevante, faz tanta diferença quanto ser concebido em um dia ímpar. Ser bebê de profeta tem estigma social zero, é algo que exceto nos círculos mais profundos do inferno (Twitter, pros íntimos) você vai achar gente reclamando, geralmente com o discurso “pq não adotou?”, mas mesmo assim a crítica é aos pais, a criança em si não é alvo.

Nem sempre foi assim.

A fertilização in vitro já era uma técnica usada e testada em animais, mas só começou a ser cogitada em humanos nos Anos 60. Em 1970 foi feita a primeira tentativa, com óvulos fecundados implantados em Sylvia Allen, nos EUA, como noticiado no Jornal do Brasil, em 25 de fevereiro de 1970.

A tentativa não deu certo, e o primeiro bebê de proveta só veio a nascer em 1978, se chamava Louise Brown, e veio a reboque de um trem gigantesco de controvérsias.

Na mesma edição é lembrado que nove anos antes um cientista italiano chamado Daniel Petrucci fertilizou um óvulo humano em um tubo de ensaio, e o manteve vivo por 29 dias.

O resultado foi uma condenação aberta do Vaticano, como o Papa Pio XII já havia condenado 10 anos antes, além de acusações chamando os cientistas de homicidas e imorais. O Vaticano pressionou a Universidade para que as pesquisas fossem abandonadas.

A argumentação do Vaticano era que a fertilização in vitro não era “natural”, seria algo mecânico, sem sentimento.

Em 1970 Dom Aluísio Lorscheider, secretário da CNBBB declarou:

“Estamos diante de uma experiência que repugna a dignidade humana”

Acrescentando que

“A igreja condenará como imoral a produção do bebê de proveta, um ser humano procriado sem amor”

Óbvio que como a experiência do clero geralmente se resume a sacristãos, eles não estão muito por dentro dos detalhes, mas fica aqui o spoiler: 99.9999% da Humanidade não foi concebida de propósito, e “amor” não é o que passa pela cabeça de ninguém quando você está na zona do agrião, quase na hora H, pronto pra botar os pingos nos i.

“Filósofos” da Igreja alertavam que bebês de proveta, como foram concebidos à revelia de Deus, não teriam alma, ficando suscetíveis a todo tipo de influência de espíritos malignos.

“Cientistas” alertavam contra riscos de doenças genéticas e outros problemas que não eram problema em todo tipo de fertilização in vitro não-humana, mas o melhor foi a histeria da imprensa.

Sem entender muito a diferença entre bebês de projeta e engenharia genética, especialistas de plantão apontavam um futuro distópico onde ditadores criariam dezenas de cópias de proveta de si mesmos, para criar um círculo de auxiliares que poderiam confiar.

Toda essa propaganda acabou chegando à população, e em 1978 apareceu até um Cordel condenando o bebê de proveta:

“Esse bebê de proveta / Se me trouxe inspiração / contraria o cientista / que criou Eva e Adão / Crescei e multiplicai / disse Deus: mas assim não”

Havia até matérias com título como “Primeiro passo em direção ao Admirável Mundo Novo”, a distopia de Aldous Huxley onde humanos eram gestados em equipamentos em fábricas, tipo Matrix, e programados geneticamente para suas futuras funções na sociedade. Sendo que fertilização in vitro não tem nada a ver com isso.

A coisa chegou a um ponto em que até editoras, que deveriam ser mais esclarecidas, aproveitaram o hype. A Martin Fontes fez um ridículo anúncio associando bebês de proveta ao livro Os Meninos do Brasil, uma história sobre clones de Hitler.

A problematização era digna do Tumblr. Dom Vicente Scherer, Cardoal-Arcebispo de Porto Alegre chilicou:

“O Cardeal de Porto Alegre afirma que o problema se agrava quando “a célula germinativa masculina transplantada no útero não provém do próprio marido, mas de terceira pessoa, de doadores estranhos, recebida ou comprada em bancos de esperma que também já existem. Acresce que o elemento masculino da fecundação se obtém, via de regra, por voluntária e provocada auto-erotização ou masturbação, que a moral católica considera falta grave. Que não torna ato lícito nem quando praticado por uma finalidade honesta. O fim bom não justifica qualquer meio para alcançá-lo.”

Sim, o infeliz quer condenar uma família a não ter uma criança porque ele acha errado um sujeito descabelar o palhaço por alguns minutos, pra encher um copinho de suco de fazer bebê.

Como na Inglaterra a Igreja Católica não apita muito e o Twitter em 1978 não era exatamente popular, o Vaticano só pôde chilicar em seus jornais e paróquias, fora que o Bispo não tem como reclamar com o Bispo.

Indiferente a tudo, Louise Brown nasceu em 25 de julho de 1978, uma saudável garotinha (na época a gente era meio selvagem e designávamos o sexo dos bebês quando nasciam) de 2,6Kg.  Quatro anos depois nascia Natalie, irmã de Louise, também via fertilização in vitro.

Louise foi o primeiro bebê de proveta, Natalie chegou em 40º lugar. Hoje (2024) Louise leva uma vida pacata, aos 45 anos. Seus “criadores” receberam o Nobel de Medicina em 2010.

Não tem nada de errado com o DNA dela, ela é só inglesa.

No Brasil o primeiro bebê de proveta nasceu em 5 de julho de 1991, se chama Vitória Caron Reis e tem 33 anos. Para provar que os alarmistas não estavam de todo errado e que bebês de proveta podem se tornar uma ameaça, ela hoje é advogada.

Estima-se que entre 500 mil e 750 mil bebês de proveta nasçam no mundo, a cada ano, o que é um monte de clones de Hitler sem alma, mas vendo que era uma batalha perdida, o Vaticano foi amansando o discurso, e bebês de proveta foram recebidos sem maiores problemas, aceitos como membros da congregação, recebendo sacramentos como batismo e primeira comunhão.

Hoje em dia é possível realizar procedimentos de fertilização in vitro até pelo SUS, na rede particular o processo custa uns R$30 mil e se você acha caro, não tenha filhos, isso é troco de pinga.

Como todo preconceito e medo ignorante, quando a situação se torna prevalente, o preconceito e o medo deixam de fazer sentido. Quando uma fração razoável de pessoas são fruto de FIV, fica complicado destilar preconceito, e com o tempo mesmo o preconceituoso percebe que, bem… são apenas pessoas.

Hoje ninguém mais lembra disso, mas é Ciência avançando a sociedade, como foi a Revolta da Vacina, o combate à Malária e tantos outros casos.

Vale como lembrança, é sempre bom perceber que nossas grandes certezas, defendidas até por nossos sábios líderes religiosos podem ser meras bobagens, fruto de medo e ignorância.

Por outro lado, eu fico meio triste. Eu queria ser um bebê de proveta, imagine chegar na escola dizendo que não tenho alma, sou um tapa na cara de Deus e pronto para me tornar um veículo para Lúcifer dizimar os quatro cantos da Terra!

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