A França de Vichy é origem de muitas das piadas envolvendo os franceses e sua grande capacidade de rendição. Depois que Hitler atropelou as tropas francesas e inglesas, e tomou o país, a metade debaixo da França foi declarada “Zona Livre”, um eufemismo para um governo-fantoche sob comando do Marechal Pétain, controlado na coleira pelos nazistas.
Eles se tornaram inimigos, alvos da resistência francesa, e abertos colaboradores dos nazistas. Mais que isso, assumiram o controle das várias colônias francesas na África, Oriente e Caribe. Rapidamente os nazistas começaram a promover suas odiosas políticas nos territórios coloniais francesas, o que incluía perseguição a judeus, discriminação aberta e muito mais.
Isso incluía os 250 mil judeus vivendo no Marrocos.
Na época o Marrocos era um protetorado francês, dotado de certa autonomia, com governo próprio, mas atrelado a Paris. O próprio Sultão, Mohammed al-Khamis bin Yusef bin Hassan al-Alawi, ou Mohammed V, foi escolhido pelos franceses depois da morte de seu pai, o Sultão Yusef bin Hassan. E essa foi a maior besteira que os franceses fizeram.
Governantes ambiciosos, que almejam poder e riqueza, são perigosos. Já Mohammed V não queria ser Sultão. Ele foi empurrado ao trono quase à força pelos franceses, que achavam que ele seria mais manipulável, com apenas 17 anos e uma atitude mais calma.
Mohammed havia estudado o Corão a ponto de se tornar especialista, tinha a melhor educação que seu pai havia conseguido prover, e era adorado pelo povo. Por isso ele não ficou nada satisfeito quando as forças de ocupação francesas e alemães começaram a impor decretos para perseguir a população judaica.
Ele teria dito
“Não há judeus no Marrocos, há somente cidadãos marroquinos, e é meu dever protegê-los contra agressão”
Muçulmano de raiz, Mohammed seguia os preceitos de hospitalidade do Islã, e se recusava a segregar os judeus marroquinos, ignorando as ordens de impor o equivalente das Leis de Nuremberg localmente.
Desde 1940 tentavam criar guetos, proibir a população judaica de morar em várias áreas da cidade, exercer determinadas profissões e matricular os filhos em escolas públicas. Os decretos chegavam e Mohammed os ignorava, para irritação de Vichy e mais tarde, Berlim.
Eventualmente ele foi obrigado a assinar algumas dessas ordens, mas em reuniões secretas com líderes judeus, o Sultão garantiu que elas não seriam implementadas, e se fossem, seriam bem mais brandas.
No Marrocos os judeus não foram obrigados a usar estrelas amarelas, não tiveram seus bens confiscados nem perderam sua cidadania. Quando os nazistas insistiram que os judeus fossem concentrados em áreas específicas, guetos, o Sultão “concordou”.
O que os nazistas não sabiam é que a maioria dos judeus já viviam nos mellahs, bairros judeus, e não havia restrição para que entrassem e saíssem à vontade.
Mohammed não podia ser abertamente contra o regime de Vichy ou os nazistas, seu poder era limitado e simbólico, mas como seus subordinados entraram no esquema “você finge que manda e eu finjo que obedeço”, conseguiram enganar os nazistas e colaboradores com esse teatro.
Às vezes Mohammed era bem direto. Em 1941 ele deu uma grande festa para celebrar seu sultanato. No banquete, revelou seus convidados de honra: rabinos e judeus importantes. Os alemães subiram nas tamancas, ainda mais porque Mohammed sempre se recusou a receber oficiais alemães.
Os franceses colaboracionistas foram protestar, ao que o Sultão respondeu:
“Eu absolutamente não aprovo as novas leis antissemitas, e me recuso a me associar a uma medida com a qual discordo. Reitero, como fiz no passado, que os judeus estão sob minha proteção, e rejeito qualquer distinção que deva ser feita entre meu povo.”
Os alemães até teriam feito alguma coisa, mas estavam tomando uma piaba federal das forças do Marechal Montgomery, que com ajuda dos criptógrafos de Bletchley Park, recebia as ordens alemães antes mesmo de chegarem na mão do Marechal Rommel.
Nem todos os judeus marroquinos deram sorte, 2100 foram presos em campos de prisioneiros construídos pelas tropas francesas, e uma boa parte morreu por causa das péssimas condições, mas as prisões tinham mais a ver com eles serem parte da Resistência e presos políticos.
Acima de tudo, o Sultão conseguiu algo precioso para seus judeus: tempo. Ao não obedecer às ordens, não promover segregação e não enviar seus súditos para campos de concentração, o Sultão conseguiu que eles estivessem vivos para, em 1942, testemunhar a chegada de tropas aliadas, libertando o Marrocos do jugo nazista.
Ao primeiro sinal dos ingleses e americanos, o Sultão mandou suas tropas para se aliar aos libertadores, o povo foi para as ruas e festejou como nunca.
Ao contrário de seus menos afortunados irmãos na Europa, os judeus marroquinos foram protegidos por seu líder, sofreram sim as dificuldades da Guerra, mas como todos os outros cidadãos.
O tratamento dado aos judeus foi tão especial e humano, que praticamente não há relatos de judeus marroquinos em museus do Holocausto, e alguns nem os consideram “Sobreviventes do Holocausto”, por mais estranho que isso soe.
Mohammed V tem a eterna gratidão dos judeus marroquinos, mas não dos franceses. Em 1953 ele foi deposto e exilado pelo governo de Paris, apenas para voltar ao poder em 1955, retomou o trono e negociou a independência do Marrocos em 1956, ano em que decretou formalmente que judeus e muçulmanos teriam os mesmos direitos, e que a Coroa sempre protegeria a população judaica.
Como em 1955 os judeus finalmente conseguiram um terreninho para construir um puxadinho e realizar o sonho da casa própria, a Diáspora chegou ao fim e eles emigraram em massa para Israel. A população judaica no Marrocos diminuiu muito, mas mesmo restrita a 3000 pessoas, ainda é a maior do norte da África.
Ambos os países mantêm relações cordiais, e Israel nunca esqueceu o que Mohammed V fez pelo povo judeu. Em 2022, Isaac Herzog, Presidente de Israel enviou uma carta para o Rei Mohammed VI, dizendo:
“Quando milhões de judeus enfrentaram os horrores do Holocausto, … Mohammed V forneceu um refúgio seguro para seus súditos judeus. Onde quer que estejam, os judeus marroquinos relembram com orgulho e afeição a memória de seu avô.”
Em 26 de fevereiro de 1961, durante uma cirurgia de desvio de septo na Suíça, Mohammed V sofreu uma complicação e veio a falecer, ponto fim a seu reinado, mas não sua memória. Negociações secretas tentam incluí-lo como um dos Justos Entre As Nações, a maior honraria do povo judeu a um gentio.