John Henry era um operário negro no final do Século XIX, ele trabalhava na estrada de ferro, perfurando rocha com sua marreta, para colocação de explosivos. Um dia seus superiores apareceram com uma novidade: uma máquina a vapor, uma perfuratriz que seria muito superior, melhor e mais rápida que qualquer homem.
John Henry entendeu como um desafio pessoal; ele não seria trocado por uma geringonça de metal. Ele apostou que era mais eficiente que a tal perfuratriz.
Organizaram uma competição. A máquina foi ligada, com inumana eficiência começou a perfurar a rocha. John Henry com sua marreta atacou a pedra, cada batida mais fundo a broca entrava. As horas se passavam, John Henry suava em bicas, mas não desistia. Ao final, ele conseguiu: O trabalho estava completo, enquanto a máquina a vapor ainda girava e perfurava a rocha.
A vitória teve um preço alto; o esforço fez com que uma veia no cérebro de John Henry estourasse. Ele caiu morto, mas vitorioso.
A história, que ninguém sabe se foi verdadeira, e provavelmente nunca aconteceu, foi perpetuada na Balada de John Henry, se tornou um exemplo de Americana, o conjunto de folclore moderno dos Estados Unidos. Hoje várias cidades reivindicam ser seu local de nascença. Ele tem estátuas espalhadas pelo país e é usado como exemplo contra automação e perda de empregos.
John Henry estava errado. Tudo que ele provou é que não temos como competir com máquinas, e se ele fosse inteligente, teria procurado aprender como se tornar operador da perfuratriz.
John Henry e a IA
A perfuratriz de John Henry de forma alguma foi algo único ou inédito. Desde que criamos a primeira ferramenta, tecnologia tem sido usada para facilitar nossas vidas, aumentar nossa produtividade e desempregar quem fazia as coisas do jeito antigo.
Neste texto aqui eu conto como a fotografia foi absolutamente disruptiva, afetando não só pintores, mas também um mercado muito maior de ilustradores e desenhistas, que de um dia pro outro descobriram que sua fonte de renda praticamente não existia mais.
Os mais inteligentes se adaptaram rapidamente, pintores especializados em paisagens aprenderam a fotografar, tiravam fotos de referência e trabalhavam no estúdio, muito mais confortável e produzindo muito mais.
A realidade é que automação e tecnologia tornam nossas vidas mais confortáveis. O povo adora reclamar que tecnologia tira empregos, mas nunca vi um filho de rameira dizer “Hoje eu vou no banco, pois não quero usar homebanking e tirar emprego dos caixas”. Também é realidade que toda essa comoção por causa da Inteligência Artificial é porque a água está batendo na bunda.
Ninguém ligava de verdade quando era o caixa do banco, o frentista, o jornaleiro vendendo cartão telefônico. A briga com a Inteligência Artificial é porque ela agora está ameaçando as profissões “nobres”, artistas, escritores, redatores, gente que se acha superior porque consegue encadear algumas palavras.
O medo é palpável, gente que se considera insubstituível, exercendo atividade que acha ser intelectual e criativa, descobriu que um Large Language Model rodando em um PC doméstico com uma placa de vídeo feita pra joguinhos é capaz de produzir material igual, ou melhor, do que eles criam.
Hoje já conseguimos usar IA para resumir textos, escrever emails, criar atas de reuniões, transcrever e traduzir áudios, legendar vídeos e- OK, vamos perguntar pra IA o que ela sabe fazer:
O povo que gosta de negar a realidade, ou nega por puro desespero jura que a IA não consegue criar nada de útil, mas não dá pra tampar o Sol com a peneira.
Coloquei alguns parágrafos deste texto no ChatGPT e pedi para ele criar a letra de uma balada sobre o tema. O título sugerido por ele foi “A Água Tá Batendo”
Verso 1:
Ninguém ligou quando foi o frentista,
Ou o caixa do banco, uma profissão à vista.
Agora a máquina cria e escreve, tão preciso,
E o medo cresce, o chão já não é tão liso.
Refrão:
A água tá batendo, é real o temor,
Não é só sobre automação, é mais que dor.
O que era nobre, agora em questão,
Será que uma máquina rouba nossa criação?
Verso 2:
O orgulho se esvai, quando a IA faz,
O que achávamos ser arte, agora em paz.
Um modelo rodando num PC, tão sagaz,
Cria o que juramos que só a mente faz.
Refrão:
A água tá batendo, é real o temor,
Não é só sobre automação, é mais que dor.
O que era nobre, agora em questão,
Será que uma máquina rouba nossa criação?
Não satisfeito, fui no suno.com e mandei que ele criasse uma balada com a letra. Em poucos segundos eu tinha em mãos uma música totalmente original, com direito a vocais. Você pode conferir aqui.
“Ah Cardoso, mas isso não substitui o Chico Buarque”
Não, mas substitui completamente o criador de jingles de político, abertura de podcasts, comerciais de supermercado, carro de tele mensagem…
Tendemos a julgar o trabalho dito criativo como se fosse tudo material de alta qualidade e valor artístico, mas o grosso da produção é coisa do dia-a-dia, é o garoto de 15 anos que cobra US$10 pra fazer uma ilustração meio tosca da Sailor Moon de bikini, ou seja lá quem a molecada esteja tarando em segredo hoje em dia.
A grande indignação com a Inteligência Artificial é que quem produz esse material do dia-a-dia, o texto do publieditorial que o influencer vai postar de má-vontade, o press-release que absolutamente ninguém lê, o depoimento legítimo e espontâneo no site do produto do cliente, quem faz isso se acha superior ao resto do populacho, mas agora está vendo sua torreta de marfim desabar.
Nos próximos anos vamos viver a Vingança do Proletariado, os trabalhos manuais vão ser mais valorizados. Nenhuma IA vai consertar seu carro ou instalar suas caixas de som. No mundo da TI o povo de infra vai ganhar mais prestígio, e muita gente que trabalha com “criação” vai migrar para outras áreas.
Então é o Apocalipse?
O ideograma chinês para crise é formado pelos símbolos para perigo e mudança. O mundo “criativo” está em crise, e muita gente vai ser atropelada por esse gigantesco rolo-compressor, se continuar com a estratégia de enterrar a cabeça no chão e fingir que a Inteligência Artificial não existe.
Os mais espertos vão invocar Darwin e se adaptar. Vão entender que a IA, por mais inteligente que seja, é uma ferramenta, e como toda ferramenta depende da habilidade de quem a usa. Se você colocar um cinzel na minha mão vai conseguir uma pedra quebrada, se colocar na mão de Strazza, consegue isto:
O grande erro que muita gente comete é achar que a IA é feita para criar produtos prontos e acabados. Canso de ver gente reclamando que a IA gerou uma imagem excelente, quase perfeita, mas tinha um pequeno erro em alguma parte, ergo IA é inútil e perda de tempo. Pombas, já ouviu falar de Photoshop?
A pessoa que hoje exerce atividade criativa no dia a dia precisa entender que só vai sobreviver na produção se tiver um diferencial, e a Inteligência Artificial é a ferramenta perfeita para isso, só que é preciso um certo esforço. Você tem a seu dispor uma ferramenta que basicamente pensa, entende sua linguagem e é infinitamente paciente. Pare de tratá-la como um Google da vida.
Você pode usar os LLMs para aprender conceitos novos, avaliar a eficácia de um texto, ou até a adequação de uma imagem. No exemplo abaixo, eu criei uma Velma Sexy e perguntei se era adequada para uma campanha de venda de cereais para senhoras católicas do interior do Paraná. Obviamente em uso real dá para ser bem mais sutil, você pode pedir para a IA avaliar o entendimento do texto para várias demografias, por exemplo.
Você pode escrever um texto e pedir para a IA criar variações para diversos públicos e níveis de entendimento, você pode fazer com que a IA emule uma persona e você tem uma conversa direta com seu público. Você pode pedir que ela avalie suas idéias para artigos, ou pode pedir para a IA resumir um documento de patente ou explique um paper científico de forma leiga. As possibilidades são infinitas, é uma assistente poderosíssima, se você souber pedir da forma correta.
Ou você pode também desconsiderar tudo isso, dizer “huehue IA não sabe nem desenhar mãos”, e seguir achando que será sempre assim.
Conclusão
Eu sei que estou soando como um apologista da IA prometendo só alegrias, leite e mel, mas o caminho é esse, é aprender, entender e usar a ferramenta a seu favor.
Porque, se há algo que a maioria ainda não entendeu, e quando essa ficha cair vai ser como A Grande Ficha, da genial Laerte…
…o que a maioria não entendeu é que a IA não é sua inimiga, não é a IA que vai tomar seu emprego e te deixar na poeira. Quem vai fazer isso é o seu coleguinha que aprendeu a usar a IA.