IA não vai mudar o mundo e será decepcionante

IA não vai mudar o mundo e será decepcionante

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Eu lembro, quando era jovem e inocente. Primórdios da Internet; as pessoas voltaram a se comunicar por texto, depois que a moda dos PenPals já era História. Vídeo e voz era ainda ficção científica, nos restavam os emails, mailing lists, grupos de discussão. A Internet nos trouxe os fóruns, era a Era Dourada do texto. Iríamos escrever mais, escrever muito.

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O dia inteiro no PC, ignorando até a Ally Sheedy

Meninos, eu errei, errei feio, errei muito.

Eu imaginava que teríamos uma verdadeira Renascença, com obras-primas surgindo de todos os cantos, por pura estatística, com milhões de pessoas escrevendo, conteúdo de qualidade inevitavelmente apareceria.

Era o Teorema dos Macacos Infinitos, que dado tempo suficiente batendo em máquinas de escrever, produziriam as obras de Shakespeare. É uma idéia legal, mas, na prática, não funciona, porque assim como macacos, estamos mais preocupados em jogar merda nos outros.

Escolhemos o menor denominador comum. A linguagem usada online é a mínima possível que consegue ser entendida. Quem escrevia em português decente era taxado de esnobe e pretensioso, mais tarde inventaram um tal de preconceito linguístico para impedir que gente que escrevesse mal fosse criticada.

Meu sonho de gente escrevendo muito e com isso escrevendo melhor foi substituído por programas que traduziam textos para “linguagem simplificada”. Sim, os Morlocks venceram.

MAS E A IA?

Escrever mal é só a ponta do iceberg, minha maior decepção foi perceber que a quantidade de conteúdo criado aumentou exponencialmente, mas a qualidade não só não se manteve a mesma, como caiu consideravelmente.

Uma antiga história, provavelmente apócrifa, conta que Gabriel García Márquez uma vez reclamou com o Prefeito de Bogotá que as constantes quedas de luz atrapalhavam seu trabalho, pois usava uma máquina de escrever elétrica.

O Prefeito teria respondido que “Balzac, que era muito melhor que você, escrevia à luz de velas”.

É óbvio que a tecnologia facilita a produção de conteúdo. Eu não escreveria 1% do que já escrevi se tivesse que ir a bibliotecas, escrever à mão e usar telefone para me comunicar com fontes e editores.

Antigamente pra impressionar uma menina a gente gravava uma mix tape, uma fita K7 com músicas melosas. Dava um trabalhão, a gente tinha que ficar monitorando o rádio, esperar tocarem a música que a gente queria, botar pra gravar e rezar pro maldito locutor não falar no meio. Só os mais ricos tinham tape decks duplos.

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Hoje é trivial criar uma playlist no Spotify. Ou, se você quiser ser bem brega e preguiçoso, pode pedir pro ChatGPT criar pra você:

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É inegável que é muito mais fácil fazer animações hoje em casa usando um Blender da vida do que era nos primórdios da Industrial Light & Magic. Editar vídeos é simples também, não há como comparar com a época em que qualquer trucagem como fades e legendas significava enviar o filme para ser processado em laboratório, e montar o filme era algo literal, com pedaços cortados e colados com fita durex.

Duas décadas atrás era impossível editar um vídeo sem ter acesso a uma Ilha de Edição. Gravar um CD exigia horas e horas (caras) de estúdio. Animação em vídeo era impossível para mercado doméstico (nenhuma câmera gravava frame a frame) e quem o fazia, usava filme 8mm, que sempre foi caro, mas no Brasil era proibitivo.

Hoje essa tecnologia criativa está ao alcance de todo mundo que não viva na miséria extrema. O TikTok está cheio de vídeos de gente em casas de pau-a-pique fazendo graça.

Meu telefone tem mais capacidade de processamento do que a Industrial Light & Magic que fez o Exterminador do Futuro 2.

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Então por que eu não criei um?

Bem, pra princípio de conversa não sou o James Cameron, e isso, na verdade, poderia ser o final da conversa.

Surgiram talentos da Internet, gente que usou tecnologia para produzir arte, conteúdo de qualidade e migrou para o mainstream? O escritor mais bem-sucedido é o Andy Weir, do Perdido em Marte. Sou obrigado a citar a E.L. James, que escrevia fanfic Pr0n de 50 Crepúsculo e acabou criando 50 tons de cinza.

Na música o fenômeno mais conhecido é Justin Bieber. Em cinema e TV temos Donald Glover (O Troy de Community) e a Felicia Day, atriz que fazia vídeos de RPG e despontou para grandes pontas em Supernatural.

A história de que há um monte de talentos desconhecidos que só precisam de uma chance, de espaço para serem descobertos é uma bela de uma falácia. Onde estão os Spielbergs, os Lucas, os DeNiros, os Tolkiens, agora que qualquer um pode criar conteúdo e soltar para o mundo?

Mais talentos apareceram? Sim, mas a quantidade de talentos excepcionais continua basicamente a mesma, o que me leva a formular uma hipótese:

O Grande Talento é raro, muito raro, e é inevitável. A pessoa extremamente talentosa vai correr atrás, vai dar um jeito de aparecer, e as pessoas à sua volta irão ajudar.

Estou sendo otimista, talvez ingênuo? Possivelmente, mas é a melhor explicação para a qualidade da produção cultural não ter aumentado, apesar do aumento da quantidade, e o número de gênios ter se mantido o mesmo.

DE NOVO: MAS E A IA?

Existe toda uma classe de criadores apavorados com a IA e com ela irá destruir suas carreiras. Isso com certeza vai acontecer para muita gente. Não vejo espaço mais para os ilustradores de Tumblr que cobram entre $ 5 e $ 15 para criar imagens por encomenda como esta da Morte, personagem dos Perpétuos criada por Neil Gaiman.

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Hoje, qualquer idiota consigo criar uma imagem como essa, eu criei essa imagem, melhor que 90% do que os artistas do Tumblr conseguem produzir. Desculpe, é a verdade.

Óbvio que isso não afeta talento de verdade, e nenhum prompt criado em 5 minutos irá produzir algo com a qualidade de um Dave McKean:

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Essa não vai ser a primeira nem a última vez que o povo que cria artes do dia-a-dia foi garfado pela tecnologia. Hoje vemos fotógrafos desesperados porque a IA irá devastar o mercado de stock photos, aquelas fotos de arquivo usadas em Powerpoints, propagandas baratas e relatórios de empresas:

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Esses mesmos fotógrafos (ok, os avós deles) foram responsáveis por um verdadeiro genocídio de uma categoria inteira de profissionais: os ilustradores.

Antes da fotografia ser inventada, e mesmo depois, até ser popularizada e o custo baixar, a única solução para quem quisesse uma imagem em algo impresso era pagar um ilustrador.

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Todos os anúncios usavam ilustrações. Pintores faziam ilustrações constantemente, pois mesmo naquela época já não dava pra viver de arte.

Ironicamente até ateliês de fotografia usavam ilustrações em seus cartões de visita.

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Quando a foto se tornou economicamente atraente, esses ilustradores todos se tornaram desempregados.

Agora o alvo são os roteiristas, redatores, blogueiros, autores de material do dia-a-dia, mas isso não quer dizer que nada vá mudar.

Sem Esperança

Trocar o povo que escreve o feijão com arroz por IA não afetará a qualidade do material criado. Há quem defenda que com a IA o povo realmente criativo vai usar a ferramenta e produzir muito material de qualidade, mas a experiência de Séculos mostra que isso não vai acontecer.

Para usar IA como uma ferramenta criativa, o sujeito precisa ser criativo, precisa entender a ferramenta, saber como usar e o que pedir dela. É preciso muita bagagem e conhecimento para instruir uma IA até chegar a um produto final de qualidade, que se destaque, que tenham real intrínseco valor artístico, e a imensa absoluta maioria dos usuários de IA E dos artistas do dia-a-dia não têm a bagagem necessária.

Nenhuma IA ainda tem a capacidade de criar um “episódio sensacional de Buffy”. Com base nas médias e informações usadas para treinar o modelo, a IA associará tramas bem-sucedidas, personagens populares e tentará criar uma idéia nova e instigante, mas justamente por ser focada em médias, o resultado será… medíocre.

Uma idéia genial é uma idéia fora da caixa, é uma idéia estatisticamente improvável. Nenhuma massa de dados produziria a trama d’O Sexto Sentido.

Em A Cidade e as Estrelas, de Arthur Clarke, uma sociedade estável, mas estagnada, controlada por máquinas e onde as pessoas vivem eternamente até se cansarem e serem digitalizadas para eventualmente voltarem em novos corpos tem, de tempos em tempos, um indivíduo que foge das regras, traz um grau de instabilidade necessário para que a sociedade quebre seu ciclo de estabilidade.

Sim, isso foi kibado em Matrix.

A IA precisa dessa instabilidade, dessa fagulha criativa para efetivamente brilhar, infelizmente essa fagulha é rara. Da mesma forma que é difícil que a sociedade produza gênios reais, agora precisamos de gente extremamente criativa, que não tenha medo de IA, e esteja disposta a estudar para se tornar exímio usuário da ferramenta. E com isso mudar todos os seus processos.

Pela teoria dos conjuntos, é um grupo muito, muito pequeno.

Conclusão

A IA trará mudanças substanciais, mas nosso consumo e produção culturais não serão afetados, não de uma forma perceptível. Teremos mais animações em alguns anos, quando as ferramentas de IA forem boas o suficiente para gerar vídeos consistentes, teremos mais e melhores efeitos visuais em séries, mas não espero uma enxurrada de produtos de altíssima qualidade.

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Esta animação foi criada em menos de 2 minutos, no meu humilde pczinho, com base em uma única imagem. Pense nessa tecnologia daqui a 5 anos.

Não espero um aumento na qualidade dos filmes, séries, músicas, quadrinhos ou podcast, pois o uso de IA por si só não significa qualidade. Para isso é preciso talento, criatividade e habilidade, e as pessoas que possuem essas qualidades já estão ocupadas sendo criativas.

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