Você já viu esse mapa antes, está sendo denunciado em um monte de páginas do Facebook e blogs antenados. É a famigerada projeção Mercator, criada para distorcer a real forma do mundo, dando destaque aos países brancos do norte, e diminuindo o tamanho e a importância dos Povos de Cor™. A Groenlândia é mostrada maior que a Austrália, o Alaska é do tamanho do Brasil. Claramente um complô racista nazista, certo?
Errado, claro.
Não que mapas não sejam usados como ferramentas políticas. O Google vive se metendo em encrenca, e tem que escolher qual mapa mostrar de acordo com as sensibilidades do país em questão. A Criméia aparece como Rússia ou como Ucrânia, a gosto do freguês, e para um monte de linhas aéreas, Israel não existe.
Nos mapas de bordo você acompanha a rota e tem um grande buraco entre a Jordânia e o Mediterrâneo. Não, também não tem Palestina, a única coisa que o pessoal odeia mais do que judeu é palestino, mas você não vai ver isso nas manifestações do PSOL em solidariedade ao HAMAS.
Mesmo assim, o tal mapa mundi que ofende todo mundo está inocente nessa brincadeira. É a boa e velha Projeção de Mercator:
Ela é distorcida, somente os pontos mais próximos ao Equador são precisos, o resto é desproporcional. A Groenlândia aparece várias vezes maior do que a Austrália, quando na realidade os dois territórios na mesma escala tem suas proporções invertidas, a Austrália é quase 3 vezes maior:
Aqui uma Projeção de Mercator sobreposta a uma Projeção de Peters, em verde, corrigindo a distorção:
Só tem um problema: Isso corrige uma distorção e aplica outra. Mapas são um negócio ingrato, pois se baseiam em uma premissa impossível: Representar com precisão uma superfície esférica em uma superfície plana.
Todo mundo que já descascou uma tangerina e ficou brincando de achatar a casca sabe que não dá, você acaba tendo que quebrar os pedaços, e não dá pra representar na mesa a imagem da tangerina originalmente redonda.
Existe até uma projeção chamada Borboleta de Waterman:
Neste xkcd clássico dá pra conhecer várias outras projeções, mas no final das contas a única forma precisa de representar os países e continentes de nosso planeta é… um globo.
Mas… se há mapas com menos distorções, porque diabos escolheram logo o Mercator, esse lixo?
Eu sei que millenials acreditam que todo homem branco desde a aurora da humanidade vive como se estivesse no Alabama de 1960, mas Geraldo Mercator (aportuguesando os nomes como a gente fazia antigamente) não estava interessado em oprimir minorias. Ele gostava de fazer mapas úteis.
Nascido em 1512 na Holanda, Mercator era um verdadeiro Homem da Renascença. Cartógrafo, Geógrafo, Cosmógrafo, artesão, calígrafo, ele produziu uma série de mapas de alta qualidade, até que em 1569 lançou o mapa que seria conhecido até hoje:
Compare com outro mapa da época:
Note que os paralelos e meridianos no mapa acima são curvos, representando a curvatura da Terra. Já no mapa de Mercator eles são retos. Tecnicamente as linhas curvas representam melhor a realidade, mas o que é genial em Mercator foi ele perceber que a realidade é superestimada. Seu mapa tinha um propósito: Navegação.
Quando você tem um sistema de coordenadas esféricas e quer transpor para um plano, tem que fazer um monte de contas chatas, e ficar recalculando para cada mudança de latitude e longitude. Já no mapa de Mercator todas as distorções que deixam os paralelos e meridianos retos fazem com que a navegação se torne algo tão simples quanto traçar uma linha entre dois pontos.
Sim, não é tããããão simples, há vários fatores de correção, norte magnético vs norte geográfico, etc, mas em essência é uma linha reta e dá pra aprender em 5 minutos:
Curiosamente na época o mapa de Mercator não fez sucesso. Um mapa preciso e fácil de navegar não adiantava muito quando era impossível determinar a posição de um navio no oceano. Eu explico: Todas aquelas imagens de navegadores portugueses com seus astrolábios eram para determinar a latitude, a posição do navio no sentido norte-sul. Isso é bem simples, usando o Sol ou uma estrela conhecida, desde os gregos que sabemos medir latitude.
Já longitude, a posição no sentido Leste-Oeste em teoria é mais simples ainda: Imagine que você sabe que é meio-dia em seu porto natal, e você conhece as coordenadas do porto. Quanto for Meio-Dia onde quer que você esteja, você compara com a hora do seu local de partida e pronto, já sabe onde está. Em teoria.
Na prática isso exige um relógio preciso, e relógios precisos só foram aparecer no Século XVIII. John Harrison passou 31 anos pesquisando até conseguir produzir seu cronômetro naval, e mesmo assim a Marinha Britânica preferiu continuar usando tabelas lunares, um método primitivo trabalhoso e complicado de determinar longitude.
De qualquer jeito, com as tabelas e os cronômetros a projeção de Mercator ganhou imensa popularidade. Ninguém se importava com as distorções, elas eram um preço muito pequeno a pagar por um mapa prático que qualquer aspirante aprendia a usar em alguns minutos.
Com o tempo o mapa de Mercator foi se espalhando pelos portos do mundo, ensinado em escolas de aprendizes e virou a imagem “correta” pra todo mundo. Inclusive pras “minorias oprimidas”. O mapa que abre este texto foi feito em 1853 por Suido Nakajima. É uma obra-prima de precisão e arte, e dado o período, com o Japão num nível de isolacionismo e xenofobia tão grande que os ingleses tiveram que restabelecer relação na base da bala, é improvável que tenham adotado essa projeção pra promover os interesses da supremacia branco machista cis-hetero opressora européia ianque.
Mas quem sou eu pra discutir com millenials. Até porque se fosse pra discutir eu começaria a rir de uma “conspiração” pra humilhar o Terceiro Mundo, em uma época em que a quase totalidade da Humanidade tem um celular com acesso à Internet, e a Terra vista do espaço não é exatamente uma novidade.