A Cloroquina que ganhou um Prêmio Nobel

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Rosemary Kennedy. Apesar de tudo era gatinha.

Rosemary Kennedy era uma jovem bonita, nascida em berço de ouro, herdeira de Camelot; infelizmente seu nascimento foi complicado. Ela ficou mais de duas horas presa no canal vaginal enquanto sua mãe, seguindo instruções, forçava as pernas fechadas aguardando a chegada do médico. Rosemary sofreu privação de Oxigênio e isso afetou seu cérebro.

Seu desenvolvimento mental era bem aquém do de uma menina de sua idade, e quando se tornou adolescente ela começou a apresentar dificuldades de socialização, convulsões e mudanças bruscas de humor. Mesmo assim ela era assistida por professoras dedicadas no colégio, e tinha autonomia o suficiente para viajar acompanhada, sabia ler e escrever, mas seu comportamento errático era um transtorno para a família.

Aos 23 anos, em 1941, surgiu uma oportunidade para mudar a vida da irmã mais nova do futuro Presidente John F. Kennedy; uma cirurgia revolucionária, chamada de Leucotomia Prefrontal.

A cirurgia estava sendo usada com frequência nos EUA, recomendada para pacientes com problemas psiquiátricos e neurológicos graves, como esquizofrenia, psicose, epilepsia, psicose maníaco-depressiva e vários outros.

Rosemary passaria por um procedimento desenvolvido alguns anos antes pelo neurologista português António Egas Moniz. Ele foi o inventor da angiografia e promoveu diversos avanços revolucionários, criando a área da psicocirurgia.

Nota comemorativa celebrando Antônio Moniz, emitida em 1989.

Sua hipótese era que se conseguisse interromper as sinapses ligando áreas específicas do cérebro, conseguiria “acalmar” seus pacientes. Ele teve a idéia ao assistir uma palestra de John Fulton e C.F. Jacobsen, que removeram partes do lobo frontal do cérebro de chimpanzés, com resultados excelentes.

Moniz realizou sua primeira cirurgia apenas três meses após ver a apresentação de Fulton, e apresentou-a como uma esperança para milhões de pacientes com esquizofrenia, ansiedade, depressão e histeria.

Como Moniz sofria de artrite e não sabia o caminho pra Kamar-Taj, quem praticava as cirurgias era um neurocirurgião de sua equipe chamado Almeida Lima.

Resultados da cirurgia

Inicialmente eles testaram o procedimento em 20 pacientes. Originalmente pequenos orifícios eram perfurados no crânio, e uma seringa era usada para injetar álcool e matar partes específicas do cérebro. Depois eles desenvolveram um aparelho que fazia o furo e usava um arame giratório para “desconectar” o tecido cerebral.

Leucótomo de Muniz

Desse primeiro lote, sete foram “curados”, sete melhoraram e seis não tiveram alteração.

Médicos do mundo todo se interessaram pela técnica, que era simples, sem os riscos de uma neurocirurgia convencional. Rosemary Kennedy tinha um futuro promissor pela frente.

Sua cirurgia seria mais simples ainda, graças a um método desenvolvido pelo neurologista americano Walter Freeman, discípulo e admirador de Moniz.

Entre 1936 e 1942 Freeman e seu neurocirurgião, James Watts haviam feito mais de 200 cirurgias, que agora podiam ser feitas em ambiente ambulatorial.

Rosemary Kennedy foi dopada com um tranquilizante leve. Um furador de gelo foi espetado no canto de um de seus olhos. Com um martelo, Freeman partiu o osso, acessando o cérebro. Girando a ponta do furador de gelo, ele separou fisicamente o lobo frontal do córtex pré-frontal. Depois de recuperada Rosemary era uma casca do que havia sido. Ela perdeu suas habilidades verbais, sua capacidade mental era a de uma criança de dois anos, ela sofria de incontinência e fraqueza nos membros, Rosemary também não podia mais andar.

Walter Freeman prestes a martelar a alma de uma pobre coitada.

Ela foi imediatamente internada em uma clínica psiquiátrica. Sua mãe, Rose Kennedy a visitou pela primeira vez depois de 20 anos. O pai, Joseph P. Kennedy Sr, nunca foi visitar a filha.

Enquanto isso o Dr Freeman percorria os Estados Unidos promovendo sua técnica de Lobotomia Pré-Frontal, muitas vezes operando pacientes sem qualquer anestesia, apenas usando eletrochoque para desacordá-los.

Nessa época James Watts já havia abandonado o projeto, acusando Freeman de receitar lobotomias sem muito critério, e se, ligar para os métodos brutais -mesmo para a época- envolvidos.

Freeman não era treinado ou certificado como cirurgião, o que não o impediu de realizar mais de 4000 lobotomias, inclusive em uma criança de 4 anos de idade.

O ferramental da Lobotomia Transorbital

Como é de se esperar, enfiar um espeto de aço 2cm dentro do cérebro e girar pra destruir partes dele gera consequências. Algumas eram diretas; um dos pacientes de Freeman morreu quando ele parou pra posar para uma foto e deixou o furador de gelo escorregar fundo demais no cérebro do paciente.

Outros sofriam de hemorragia cerebral, como Helen Mortensen, uma paciente que passou por três lobotomias com Freeman.

Boa parte da comunidade científica estava horrorizada com Walter Freeman e António Moniz, mas no papel a cirurgia funcionava, afinal pacientes violentos se tornavam catatônicos, bem mais fáceis de se gerenciar.

Como resultado surgiu uma epidemia de lobotomias praticadas em hospitais psiquiátricos -sim, a trama de Sucker Punch é real- sem consentimento dos pacientes, na maioria dos casos. Só nos EUA foram mais de 40 mil lobotomias realizadas, até a prática cair em desuso na década de 1970.

Outros países decidiram banir a cirurgia como um todo, na União Soviética a Lobotomia foi banida em 1950. Na França, só em 1980. Nos Estados Unidos, vários Estados a baniram, mas não há uma proibição federal.

Freeman e Muniz destruíram dezenas de milhares de vidas. Eles literalmente maceraram a única coisa que nos faz humanos, mesmo que imperfeitos, e o que conseguiram com isso? Freeman indicou Muniz ao Prêmio Nobel de Fisiologia, e em 1947 ele foi agraciado com a honraria.

Muniz recebendo o Nobel

Os pacientes que sobreviveram levaram para sempre as cicatrizes físicas e mentais das Lobotomias. Alguns passaram por uma zumbificação completa, os mais afortunados tiveram seus problemas atenuados, pagando com suas personalidades. Todos se sentiam diferentes, com algo faltando.

A Medicina evoluiu, a comunidade médica evoluiu, e esse tipo de intervenção extrema não é mais aceita, qualquer médico decente e a maioria dos indecentes acharia um absurdo cavoucar o cérebro de um paciente para tentar curar depressão, mas eis que hoje temos gente fazendo ainda basicamente a mesma coisa, experimentando nebulização de Cloroquina em pacientes, ignorando todos os resultados negativos de pesquisas demonstrando que o medicamento tem zero efeito sobre Covid-19.

Sob um certo ponto de vista, não evoluímos nada, pois da mesma forma que os Cloroquiners estão matando gente ao provocar falência renal com doses cavalares do medicamento, e mesmo com a maioria da comunidade médica contra, temos uma minoria barulhenta a defendendo.

Pior, da mesma forma que um monte de gente apoiava a cirurgia revolucionária do Dr Freeman, ao ver seus parentes violentos e problemáticos aparentemente “calmos” e sociáveis, um monte de desavisados celebra a Cloroquina por “curar” uma doença que em 97% dos casos se cura sozinha.

É literalmente mais seguro não fazer nada, e evitar falência renal e hepática, do que tomar o tal “Kit-Covid”. Mas o pessoal que morre ou vai pra fila de transplantes, esses são tão invisíveis quanto os milhares de lobotomizados internados e esquecidos, como Rosemary Kennedy, que só morreu aos 86 anos, em 2005, uma longa vida não-vivida.

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