Rorke’s Drift – Foi tipo Helm’s Deep mas sem Gandalf pra ajudar

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Nossa história começa muito tempo atrás, em um reino muito distante, com o improvável nome de Zululândia, na região que hoje conhecemos como África do Sul. É uma história de vilões e mocinhos, onde estranhamente torcemos momentaneamente pelos vilões.

Tudo começou quando Portugal perdeu espaço nas rotas de navegação, no Século XVII, e a Holanda viu uma oportunidade de cavar um espaço na África, criando entrepostos comerciais no Cabo da Boa Esperança. Quando o bicho começou a pegar na Europa, e Napoleão botou as manguinhas de fora, esticou o olho pra África do Sul.

Os ingleses, para evitar que a França colonizassem a região holandesa, foram lá e tomaram a colônia para si mesmos.

Na época havia um monte de reinos na região, que conviviam mais ou menos com os ingleses, até que um belo dia em 1867 descobriram diamantes na região de Kimberley, o que provou uma enorme imigração e tornou os ingleses especialmente territoriais, e por territoriais entenda de olho no território dos outros.

Um desses alvos era o Reino Zulu:

Para os ingleses os Zulus eram mais um daqueles povos primitivos que não haviam descoberto a pólvora, e lutavam com lanças quase pelados. Não seria problema botar os caras pra correr, e tudo foi feito pra provocar um confronto e dar um fim aos Zulus.

Em 1878 depois de uma série de incidentes os ingleses mandaram um ultimato que entre outras coisas exigia que os Zulus extinguissem seu exército. Só havia um problema, os Zulus não eram um bando de primitivos, se podemos fazer um paralelo…

Zulus eram klingons.

O reino havia passado por profundas reformas nas mais do Rei Shaka (1787-1828), herdeiro ilegítimo do trono que unificou as tribos próximas (na marra) e modernizou a nação.

Shaka acabou com o sistema de clãs que empesteava o exército. Igualou todo mundo e promoções passaram a valer com base na meritocracia. Batalhões foram separados por idade e por estado civil, com responsabilidades diferentes para casados e solteiros.

Mulheres e crianças passaram a integrar as tropas (culpa do Bolsonaro, claro) cumprindo funções de logística, liberando mais homens para o combate.

Guerreiro Zulu com sua Iklwa

Ele aboliu o Assegai, a lança longa que era tradicional, introduzindo a Iklwa, uma arma para combate corpo a corpo que ao contrário da lança de arremesso podia ser usada mais de uma vez. Provavelmente inspirado em Steve Rogers, Shaka reforçou os escudos e treinou seus homens para usá-los como arma de defesa E ataque, mas como aqueles filhos da puta de Wakanda não compartilhavam Vibranium, os Zulus tinham que usar couro de vaca mesmo.

Shaka aboliu o uso de sandálias, para que seus homens se acostumassem a andar descalços, assim não seriam inúteis quando suas havaianas falsificadas inevitavelmente perdessem as tiras. Um guerreiro zulu treinado conseguia marchar 80Km em um dia, descalço. AH sim, havia o incentivo de que quem se recusasse a marchar sem sandálias era executado.

Eu falei que eles eram klingons.

E sim, pelos nossos padrões Shaka era selvagem, e por nossos padrões eu digo ditador africano do Século XX. Quando sua mãe (a dele não a sua) morreu, Shaka determinou luto de um ano, durante o qual campos não poderiam ser plantados nem leite ordenhado.

Qualquer mulher que engravidasse nesse período deveria ser morta, junto com o marido. Mesmo vacas foram mortas “para os bezerros saberem o que é perder a mãe”. Mais de 7000 pessoas foram executadas durante o período de luto.

OK, talvez eu tenha sido precipitado em chamar os Zulus de mocinhos.

Shaka morreu em 1828 assassinado, não deixou herdeiros, graças a um método anticoncepcional inovador. Como era anti-aborto, ele mandava matar qualquer mulher que engravidasse dele, o que tornava a profissão de maria-chuteira uma carreira de risco.

A Batalha de Isandlwana

Em 1879 os ingleses montaram uma força de invasão da Zululãndia, e mandaram uma unidade de reconhecimento com 1837 homens, entre soldados britânicos, forças coloniais e 400 civis. Quando chegaram em Isandlwana, um morro da região, decidiram montar acampamento, mas sem se preocupar com estruturas de defesa como torres de vigia e trincheiras, demoraria muito e afinal de contas eles eram tecnologicamente muito mais avançados.

Que eram, eram. Os ingleses tinham dois canhões de 37mm, foguetes (sim, foguetes!) e sua arma principal era o rifle Martini-Henry, o primeiro rifle britânico a usar cartuchos metálicos, e um puta cartucho, veja o tamanho, comparado com um .303 e um .22:

Os ingleses tinham certeza que escudos de couro de vaca não seriam problema pra essas balas, no que estavam certos, e que os Zulus eram pouco mais que um bando de bárbaros desorganizados, no que estavam mortalmente errados.

Os Zulus estavam acompanhando os britânicos, usando batedores montados, marchas em colunas e muitas outras técnicas inventadas ou aperfeiçoadas por Shaka.

Os Zulus davam voltas em torno dos ingleses, em 5 dias eles marcharam 80Km, os ingleses levaram 10 dias pra marchar 16Km.

Quando os Zulus atacaram, os ingleses perceberam que eram alvo de 15 mil guerreiros, de uma força de 20 mil. As tropas que usavam mosquetes não tiveram nenhuma chance. As que usavam os Martini-Henry ainda levaram alguns zulus junto antes de morrer, mas era gente demais, os guerreiros corriam em direção aos ingleses, indiferentes aos tiros.

No final da batalha a tal superioridade tecnológica não adiantou nada. Dos 1837 homens das forças inglesas, mais de 1300 estavam mortos.

Sim, eles mataram entre 1000 e 2500 zulus, o que não serve de consolo. Isandlwana continua até hoje a maior derrota britânica contra uma força tecnologicamente inferior.

Entra Rorke’s Drift

Enquanto os zulus brincavam de caça ao pato e ao coelho ao mesmo tempo, perto dali em Rorke’s Drift dois oficiais ganhavam o campeonato mundial de estar no lugar errado na hora errada.

Rorke’s Drift era um antigo entreposto comercial que virou missão religiosa, era essencialmente um hospital e depósito de suprimentos, de importância estratégica tão pequena que a guarnição do posto ficou a cargo de um simples tenente, Gonville Bromhead.

Junto dele outro tenente, John Chard, do corpo de engenheiros, que estava lá com um grupo de homens para reforçar um pier no rio. A notícia do ataque a Isandlwana pegou todo mundo de surpresa, e a primeira e lógica decisão era a mais sábia: Botar 10 no veado e sair VOANDO dali.

As tropas nativas que estavam com eles concordaram plenamente e se mandaram, mas eles tinham um problema: NUNCA conseguiriam fugir dos zulus, transportando os vários pacientes do hospital. A idéia era simples: Morrer lutando ou morrer fugindo.

A terceira opção era a mais improvável: Sentar pé firme, e mostrar pros bastardos do que um inglês é capaz!

Esse é o espírito.

O problema principal é que Bromhead e Chad não tinham muita experiência, Chad era essencialmente um engenheiro, eles tinham conhecimento teórico, e só, mas fizeram algo muito fora de moda hoje em dia: Acreditaram nos livros e no que aprenderam em seus estudos.

Eles usaram as tropas remanescentes para construir barricadas com sacos de aniagem, colocaram observadores em postos avançados, instalaram caixas de munição próximas dos grupos de atiradores. Planejaram rotas de retirada e linhas secundárias de defesa.

Aqui um dos diagramas desenhados pelo próprio Tenente Chad. Os pontos em vermelho são a barricada principal, os pontos em preto (não é racismo, é a tinta que ele tinha) são os Zulus.

No total os ingleses tinham 156 homens, e desses 39 eram pacientes do hospital. Os Zulus tinham uma força de 4000 homens.

Por volta de 4:30 da tarde os Zulus atacaram o hospital com uma força de 600 homens. Os ingleses contra-atacaram, mas os Zulus usaram uma tática clássica de Shaka, “os chifres do touro”, lançando duas forças num ataque lateral enquanto o ataque frontal distraía o inimigo. Logo chegaram ao combate corpo a corpo, mas os ingleses recuaram para trás de um dos muros.

Os Zulus, seguindo a tradição dos zumbis (não o de Palmares) subiam nos corpos dos companheiros mortos para tentar escalar o muro, mas eram recebidos a tiros de Martini-Henry à queima-roupa (o que estraga o dia de qualquer um) e golpes de baioneta.

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Por volta de 6 da tarde os ingleses tiveram que recuar, os zulus estavam abrindo buracos na parede do hospital, e o muro não oferecia mais proteção, eles estavam usando as viseiras, os buracos feitos para atirar nos inimigos para… atirar nos inimigos, pois os Zulus tinham algumas armas de fogo também, embora não gostassem deles. Assim como Batman eles diziam que armas de fogo eram armas de covardes.

Os zulus continuaram o ataque em 3 frentes, e a linha do curral caiu também, os ingleses se refugiaram na última linha de defesa, mas tinham uma arma secreta: O tiro de voleio.

Normalmente em filmes de guerra vemos um monte de gente atirando a esmo, mas quando você leva um tempo considerável pra recarregar sua arma, isso é ineficiente, qualquer um que tem experiência de combate (como eu, no Battlefield 4) sabe que recarregando você está vulnerável.

Os ingleses desenvolveram a técnica no tempo dos mosquetes, mas continuaram utilizando com o Martini-Henry, que ainda era um rifle de tiro único. Basicamente um grupo atira em conjunto, começa a recarregar, outro grupo enquanto isso atira, aí o primeiro grupo já recarregou.

Isso cria uma barragem de fogo contínua, impedindo o inimigo de contra-atacar ou chegar perto.

Hordas e mais hordas de zulus atacaram a guarnição, os 156 homens agora eram 124, com 17 mortos e 15 feridos. Foram mais de 10 horas de combate. Os zulus só pararam com o ataque por volta de 2 da manhã, quando dos 20 mil cartuchos iniciais os ingleses só tinham 900 em estoque.

No dia seguinte uma tropa zulu apareceu ao longe, mas não para atacar. Apenas saudaram os inimigos e foram embora. O impossível havia acontecido, dois oficiais júnior, basicamente nerds haviam comandado uma tropa composta de engenheiros e restos de outras unidades na defesa impossível contra um inimigo 25x mais numeroso.

A tropa depois da batalha

Os números oficiais falam de 351 zulus mortos, mas ninguém leva a sério, os valores reais são bem mais altos, incluindo os feridos que foram mortos pelos ingleses depois de capturados e os que foram jogados vivos nas covas coletivas. Ah, e os que foram enforcados por suspeita de colaboração.

Eu falei que não tinha mocinhos essa história.

Rorke´s Drift hoje é um hotel. Yay progresso!

11 Victoria Crosses foram conferidas aos participantes da batalha, o maior número já dado a um único regimento por um único feito. Em Londres a notícia foi um alento, depois do massacre de Isandlwana, e representou um ponto de virada que eventualmente levou à derrota do reino Zulu, a consolidação da Inglaterra como potência dominante na África do Sul e na instituição do Apartheid, eu falei que eles não eram os mocinhos, certo?

Mesmo assim, naquele momento o pessoal da missão não estava errado. Foi uma defesa desesperada para salvar a própria vida, e acredite: O Rei Zulu, Cetshwayo kaMpande, havia dado ordem para não saírem dos limites do reino e só atacarem se fossem atacados primeiro.

Dabulamanzi kaMpande

A confusão toda foi culpa de Dabulamanzi kaMpande, meio-irmão do Rei que parecia estar querendo mostrar serviço, e se não provocou, pelo menos antecipou a derrota final dos Zulus diante dos ingleses. Valeu, maninho.

ADENDO:

Em 1964 foi feito o filme definitivo contando a história da Batalha de Rorke´s Drift: Zulu, com Michael Caine. É um raro filme onde os Zulus não são demonizados, mas tratados como inimigos respeitáveis. Vale muito a pena.


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