Essa semana eu me coloquei na inusitada e ingrata posição de defender a TV Record do Bispo Macedo, e mais inusitado ainda foi eu estar defendendo a posição criacionista da Record, indo contra o Pirulla, aquele vlogueiro que faz ótima divulgação científica e vídeos legendariamente longos.
Em essência, ele reclamou que na novela Gênesis, da Record Adão e Eva são interpretados por atores brancos (embora Eva – Juliana Boller- possa ser classificada como parda, de acordo com a Narrativa que você quer defender).
De forma anormalmente civilizada para o twitter, fizemos um vai-e-vem (no bom sentido) aonde o Pirulla argumentou que o Homem, digo, a Espécie Humana surgiu na África, e portanto os primeiros humanos eram negros.
Um dos mais antigos representantes do gênero Homo (não confundir com a turma do alfabeto) é o Homo rudolfensis1, que assim como Barack Obama nasceu no que é hoje o Quênia, mas 2 milhões de anos atrás no que hoje é o , e não se parecia muito com nenhum homo moderno.
Nessa época o Homem já havia explorado e migrado boa parte do planeta. Em 2018 foi achado um fóssil hominídeo com 2.12 milhões de anos de idade. Na China Central2.
Essas migrações para climas e latitudes diferentes provocou uma diferenciação: Nossos corpos precisam de vitamina D, que é fixada pela luz solar, mas muito Sol causa câncer. Em regiões tropicais evoluímos tons de pele mais escuros, pois há Sol em abundância, recebemos o suficiente para fixar a vitamina D, mas sem excesso para destruir nossas células.
Em regiões com menos luz solar, pessoas com peles escuras têm mais dificuldade em fixar vitamina D, e tendem a apresentar deficiências desse micronutriente3.
A solução da evolução? Clareia a pele do sujeito, ele não precisa de tanta proteção e assim ele consegue aumentar a quantidade de vitamina D. Como efeito colateral encolhe o bilau, só de sacanagem.
Esse foi só um dos milhares de fatores genéticos e ambientais que levaram à imensa diversidade de aparências entre os humanos modernos, uma diferenciação que ainda mantém todo mundo dentro da mesma espécie, todo mundo geneticamente compatível e que permite combinações maravilhosas como as chinegras:
Voltando pro Pirulla
Ele está tecnicamente correto (a melhor forma de correto) em afirmar que os primeiros humanos eram negros, mas Gênesis é uma novela bíblica em uma emissora evangélica. Ciência não tem nada a ver com a história.
Existe um conceito em dramaturgia que é uma regra básica para uma boa história: Você precisa de um World Building consistente. Tom Clancy dizia que a Ficção precisa fazer sentido, a realidade não, e é verdade.
Quando abrirmos um livro, iniciamos um filme ou assistimos um episódio de TV, somos apresentados aquele universo e suas regras. Elas não precisam fazer sentido fora da história, mas dentro delas devem ser respeitadas.
Ninguém perde ou deveria perder tempo tentando imaginar como a magia em Harry Potter funciona. De onde vem a energia para gerar aqueles raios? Como a Hermione virou um híbrido felino? A magia a manipulou no nível genético? NÃO IMPORTA, o que importa é que as regras são respeitadas.
O Super-Homem já teve os mais ridículos super-poderes, mas Kryptonita sempre teve o mesmo efeito. Em nenhuma história ele a vence usando força de vontade, e quando os autores querem criar novos efeitos, inventam uma nova variação, como a Kryptonita… rosa.
No Universo do Super-Homem, a Kryptonita é consistente.
Regras de World Building devem ser explícitas e definidas no começo da Narrativa, se você só puxar uma regra quando é conveniente, enfraquece a história.
No momento em que as regras são estabelecidas, o leitor/espectador concorda em assumir um estado chamado Suspensão de Incredulidade, aonde ele aceita as regras -desde que consistentes- e em troca recebe a história, consistente com aquele Universo.
Por isso o mais ateu dos ateus não tem problemas em ver a Mulher-Maravilha, filha de Zeus laçando um raio com um laço mágico forjado por Hefesto em pessoa. É real? Provavelmente não, mas naquela situação, naquele Universo deuses são reais, do contrário a gente não poderia assistir Vingadores também, afinal Thanos não existe.
A novela da Record é uma versão do mito bíblico da Criação, que é basicamente o mito hebraico, consolidado por volta do Século 7AC. O mito hebraico por sua vez é fortemente baseado na mitologia (lembre-se, mitologia é como a gente chama a religião dos outros) da Mesopotâmia4, que remonta a 3000AC.
A grande diferença é que os hebreus adaptaram a narrativa politeísta para se encaixar no monoteísmo.
Em nenhum lugar falam que Adão e Eva eram brancos, mas fica a grande pergunta: O Pirulla vai, com base na Ciência protestar contra a representação irreal de Adão e Eva negros, na iconografia cristã da Etiópia?
Colocar Adão e Eva como negros é tão “errado” quanto colocar Adão e Eva brancos, visto que eles eram nativos do Crescente Verde, a região entre o Tigre e o Eufrates, ande ficaria o Jardim do Eden. Era todo mundo semita, tudo com cara de turco.
E não, não faz sentido dizer que “havia migração” da África então Adão e Eva poderiam ser negros.
Uma regra UNIVERSAL em mitos de criação, em todos os povos é que os deuses criam AQUELE POVO PRIMEIRO. Se o povo manteve contato com outros povos por tempo suficiente é possível que o mito se adapte para incluir outras civilizações, mas o povo escolhido é sempre o autor do mito, e os primeiros humanos se parecem com eles.
Aliás, Adão e Eva não são exatamente originais e únicos. Nossa criação biparental basicamente força o conceito de um casal primordial. Eles são um arquétipo espalhado por inúmeros mitos de criação. Em alguns casos eles são elevados à categoria de Deuses, como Rangi e Papa, na mitologia Maori.
Claro, como o Pirulla poderia explicar bem melhor que eu, o conceito como um todo de um único casal dar origem a toda uma espécie é furado, não há diversidade genética suficiente, em 3 ou 4 gerações ninguém teria mais o número correto de membros. Por isso inclusive a Arca de Noé é uma enorme perda de tempo.
A questão de Adão e Eva brancos na Record vai mais além ainda, e nem é só se o Pirulla reclamaria com muçulmanos dizendo que a representação deles também está errada. O buraco aqui é mais embaixo, e tem a ver com representatividade, mas no bom sentido.
Eu tenho um excelente artigo aonde mostro que é uma IMENSA bobagem chilicar de representações de Jesus como homem branco louro. Jesus é representado com a etnia local em todo lugar do mundo, de chinês a etíope e mexicano.
Quando mitos se tornam arquétipos, eles são nacionalizados, localizados. As pessoas não precisam de Social Justice Warriors para defender sua representatividade. As próprias culturas adaptam as histórias para a sua realidade.
Ou você vai me dizer que é errado a versão do nascimento de Jesus em literatura de cordel, com os Três Reis Magos com chapéu de cangaceiro montados em burros?
Cada vez que alguém reconta uma história está contando a sua versão. A da Record é só mais uma, ela é a soma das idéias dos diretores, roteiristas, produtores, diretores de elenco, figurinistas, etc. Ela quer contar histórias bíblicas usando atores de seu elenco normal e diálogos adaptados à nossa realidade.
Claro, fracassaram gloriosamente, e nem é pela mão pesada na doutrinação, como comentou o Maurício Stycer, a novela tem personagens feministas (em uns 6000AC) e todo mundo parece estar em uma comunidade Hippie no Humaitá com vista pra praia. (não sei se daria pra ver a praia do Humaitá, eu sou suburano, me processem)
E, como não podia deixar de ser, a Record também tem seu Pirulla de Cristo e resolveram tentar conciliar narrativa bíblica com ciência. Resultado? No primeiro capítulo, depois que Lúcifer perde sua discussão acalorada com Javé e é banido, os anjos caindo, em chamas atingem a Terra e são responsáveis pela… Extinção dos Dinossauros.
Não sei o Pirulla mas depois dessa eu preciso beber.
Fontes:
- Homo rudolfensis -Smithsonian National Museum of Natural History
- Hominin occupation of the Chinese Loess Plateau since about 2.1 million years ago – Zhaoyu Zhu, Robin Dennell, Weiwen Huang, Yi Wu, Shifan Qiu, Shixia Yang, Zhiguo Rao, Yamei Hou, Jiubing Xie, Jiangwei Han & Tingping Ouyang – Nature volume 559, pages608–612(2018)
- Probability of Vitamin D Deficiency by Body Weight and Race/Ethnicity – Tom Weishaar, Sonali Rajan and Bryan Keller – The Journal of the American Board of Family Medicine March 2016, 29 (2) 226-232;
- Walton, John H. (2006). Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament: Introducing the Conceptual World of the Hebrew Bible. Baker Academic. ISBN 0-8010-2750-0.