“De todas as armas do vasto arsenal soviético, nada era mais lucrativo do que o modelo Avtomat Kalashnikova de 1947, mais conhecido como AK-47, ou Kalashnikov. É o rifle de assalto mais popular do mundo, uma arma que todos os combatentes adoram. Uma amálgama elegantemente simples de 4kg de aço forjado e madeira compensada, não quebra, emperra ou superaquece. Ele atirará se estiver coberto de lama ou cheio de areia. É tão fácil que até uma criança pode usá-lo, e elas o fazem. Os soviéticos colocaram a arma em uma moeda, Moçambique colocou na bandeira deles. Desde o fim da Guerra Fria, o Kalashnikov se tornou o maior produto de exportação do povo russo. Depois vem vodka, caviar e romancistas suicidas. Uma coisa é certa; ninguém estava fazendo fila para comprar seus carros.”
Yuri Orlov, no excelente documentário O Senhor da guerra.
Muito provavelmente o soldado russo que empunhou sua AK-74 (a versão modernizada da 47) e mirou no inimigo ucraniano, em Junho de 2022 não tinha a eloqüência ou a visão global do personagem de Nicolas Cage, mas ele sabia operar sua arma.
O tiro foi certeiro. O projétil 7.62×39mm, pesando oito gramas voou em direção ao alvo a uma velocidade de 738 metros por segundo, com uma energia 2179 Joules. A duas vezes a velocidade do som, o ucraniano seria atingido na cabeça antes de ouvir o barulho do tiro.
Também muito provavelmente o ucraniano nunca ouviu falar de Stephanie Kwolek, mas algumas frações de segundo adiante, ele indiretamente estaria agradecendo sua existência.
Stephanie Kwolek era filha de uma costureira e um metalúrgico. Nascida em 1923, ela era a primeira geração de poloneses que emigraram para os Estados Unidos, em um ato premonitório certeiro.
Apesar de sua pouca educação, John Kwolek era um naturalista, ele adorava fazer longos passeios observando a natureza, e Stephanie herdou essa curiosidade. Acompanhava o pai, fazendo anotações das espécies de plantas e animais que encontravam pelo caminho.
Na escola, Stephanie adorava Ciência e Matemática, deixando para trás a maioria dos colegas, e estava claro que ela não iria seguir uma carreira tradicionalmente feminina, não que ela não gostasse de costurar roupas para suas bonecas, arte que aprendeu com a mãe.
Aos dez anos, tragédia: John Kwolek morre, a mãe de Stephanie, Nellie, arruma emprego numa fábrica para sustentar a si mesma, Stephanie e o irmão mais novo. Isso não foi nada fácil, 1933 os EUA ainda estavam no auge da Depressão de 1929, mas Nellie fez de tudo para manter os filhos na escola.
Entre empregos e bicos, Stephanie decidiu que queria ser médica, mas para bancar o longo e caro curso de medicina, ela começou a estudar química em 1942 no Margaret Morrison Carnegie College, se formando em 1946.
Mesmo com os homens voltando da Guerra, ainda era uma ótima época para ser mulher no mercado de trabalho, as vagas de Nível Superior ainda pipocavam em todo canto, e se nas fábricas as mulheres estavam sendo expulsas sem-cerimônia pelos soldados, nos escritórios e laboratórios a coisa era diferente.
Sem muito problema ela conseguiu uma vaga na DuPont, que ainda estava colhendo os louros de sua incrível invenção de 1939, o Nylon. E quando digo sem muito problema, foi assim mesmo. Ela fez uma entrevista com W. Hale Charch (criador do Celofane) e Diretor de Pesquisas da DuPont. Ele disse que em duas semanas ela seria comunicada do resultado.
Stephanie perguntou se não dava pra sair uma decisão logo, pois ela já tinha outra entrevista marcada. Mr Charch chamou a secretária, e na frente de Stephanie ditou uma carta oferecendo a vaga e entregou a ela.
Querendo repetir o sucesso do Nylon, a DuPont investia fortunas em laboratórios pesquisando novas fibras sintéticas, que resolveriam todo tipo de problema.
Stephanie pegou gosto pela brincadeira, e acabou esquecendo a medicina. Ela adorou pesquisar polímeros, e otimizar reações. Até hoje ela é lembrada por ter criada uma reação muito popular em escolas de países decentes com laboratórios de química de verdade – a produção de Nylon em temperatura ambiente.
Durante suas pesquisas Stephanie produziu uma solução que parecia toda errada. As soluções de polímeros que produziam fibras sintéticas costumavam ser límpidas e com consistência de melaço de cana. A que ela havia produzido era turva, com consistência de leite coalho, e bem suspeita. Normalmente esse tipo de resultado era jogado fora, mas Stelhanie teve um palpite, uma intuição e mandou a solução para a fiandeira.
A fiandeira era um equipamento caro e delicado, e o operador não queria usar aquela solução suspeita, mas depois de muito Stephanie insistir, ele aceitou. A fibra resultante não se partiu, nem quebrou a fiandeira. Na verdade a fibra era muito mais resistente do que qualquer um imaginava.
A fibra era cinco vezes mais forte do que aço. Os técnicos tinham dificuldade em cortar os fios com tesouras comuns. Após repetir o experimento várias vezes (Ciência de verdade é assim, crianças) Stephanie chamou seu supervisor, que chamou o diretor do laboratório e todos imediatamente perceberam o tesouro que tinham nas mãos.
Stephanie originalmente pesquisava polímeros que poderiam ser usados para substituir aço em pneus radiais, mas acabou com um polímero capaz de ser tecido em componentes incrivelmente leves e resistentes. Seu nome? Kevlar.
Assim que o Kevlar começou a se popularizar, surgiram idéias de usá-lo como proteção balística. Até então as únicas alternativas eram coletes com placas de aço, extremamente pesados, mas coletes de Kevlar foram desenvolvidos e distribuídos para forças de segurança. Em 1975, na véspera de Natal um policial chamado Ray Johnson estava fora do expediente, mas de uniforme, na fila de um mercadinho em Seattle, Washington. Um ladrão entrou no estabelecimento, viu o oficial e sem pensar deu dois tiros à queima-roupa, ambos os projéteis foram detidos pelo colete.
Ray Johnson foi a primeira de inúmeras vidas salvas pelo Kevlar, que é usado não só em coletes, mas roupas, cordas, pára-quedas, bicicletas, canoas, celulares, amarras de navio, reforço estrutural em porta-aviões, a lista é imensa.
Stephanie Kwolek foi imensamente reconhecida e paparicada pela DuPont. Ela recebeu em 2014 a Medalha Lavoisier, maior premiação interna da empresa. Até hoje ela é a única mulher a receber o prêmio.
Entre outros prêmios, ela recebeu o Chemical Pioneer Award do Instituto dos Químicos Americanos, um prêmio de Invenção Criativa da Sociedade Química Americana, foi introduzida ao Hall da Fama do National Inventors, ganhou a Medalha Nacional de Tecnologia, a Medalha Perkin, também da Sociedade Química Americana, e em 2003, ela foi introduzida no National Women’s Hall of Fame.
A Real Sociedade de Química tem um prêmio chamado “Prêmio Stephanie L. Kwoled”.
Stephanie Kwoled se aposentou em 1986, mas continuou trabalhando como consultora da DuPont, e servindo no Conselho Nacional de Pesquisas e na Academia Nacional de Ciências.
Em 2014 Stephanie Kwoled morreu, aos 90 anos, sem ter idéia da quantidade exata de vidas que sua invenção salvou, mas sabendo que foram muitas, e dado sua origem polonesa, com toda certeza Steph ao ver a imagem do soldado ucraniano, esboçaria um sorriso e diria:
“Ssij, Putin, mój Kevlar jest lepszy”
E não, ele não foi o único ucraniano salvo pelo Kevlar da Stephanie: