Há quem ache que com o fim da Guerra Fria, a espionagem tradicional também desapareceu, com todo o trabalho sendo feito remotamente, via Internet. Na verdade espiões, mesmo sendo o oposto de James Bond ou Jason Bourne, continuam firmes e fortes, e agora, em Junho de 2022, um agente do GRU foi preso nos Países Baixos, ao tentar uma vaga de estagiário no Tribunal Internacional de Crimes de Guerra, em Haia.
O inusitado é que o sujeito criou uma identidade falsa se passando por brasileiro, e isso foi seu grande erro.
Sergey Vladimirovich Cherkasov nasceu em 11 de Setembro de 1985, mas apresentava documentos dizendo ser Viktor Muller Ferreira, nascido em 4 de Abril de 1989. Essa técnica de criar uma identidade falsa é básica para espiões “ilegais”, que trabalham sem cobertura de passaportes diplomáticos.
Sergey é agente do GRU, o órgão de espionagem externa das forças armadas russas. Originalmente criado por Stalin, o GRU é responsável por inúmeras operações de infiltrações em órgãos governamentais de países estrangeiros, assassinatos, insuflação de golpes em republiquetas, etc, etc. Em termos de pessoal eles têm seis vezes mais agentes no exterior que a FSB, que na verdade é a KGB, só mudou de nome.
A unanimidade é que não importa a agência, a espionagem soviética era de altíssimo nível, eles chegaram a comandar o MI-6 britânico por algum tempo. A forma mais rápida de ter seus segredos roubados era subestimar a capacidade da KGB ou do GRU.
Agora, talvez nem tanto.
Os relatos sobre Sergey dizem que ele é um sujeito extremamente articulado, com um sotaque difícil de localizar e que não passa a menor imagem de um russo típico. Tudo indica que ele é um excelente espião, e se passar por brasileiro é um truque bem comum também. Por sermos maravilhosamente vira-latas e misturados, brasileiro pode ser qualquer um, da Xuxa ao Pelé, incluindo o filho imaginário deles, o Xulé.
Pois bem; a identidade falsa de Sergey é bem antiga. Ele tem um canal no YouTube com cinco anos de idade e 43 assinantes, o suficiente para mostrar que teve curiosidade, subiu alguns vídeos e deixou pra lá.
Viktor Muller Ferreira também tem um perfil no Twitter criado em 2014. Provavelmente por um descuido em 2017 ele twitou sobre… uma matéria do Bellingcat sobre perfis falsos online do GRU.
Viktor estava morando na Irlanda, e estudava Ciências Políticas no Trinity College, em Dublin, o que era mais que justificativa para estagiar no Tribunal de Haia, tanto que Eugene Finkel, um de seus professores, escreveu uma carta de recomendação. Agora o Professor Finkel está puto nas calças, por ter sido enganado.
Mas e Onde Entra o Brasil?
A vaga é muito disputada, Sergey, ou mais provavelmente seus mestres em Moscou pensaram que uma história triste, com muita superação seria uma ótima alavanca para Viktor ganhar a vaga, então eles escreveram uma senhora história.
O pai de “Viktor” era um Irlandês que veio dar no Brasil, mas quem acabou dando foi sua mãe, que engravidou. O pai foi embora, mas voltou da Irlanda para registrar o filho, depois sumiu de novo.
Viktor teve uma infância pobre, mal conseguindo estudar, enquanto a mãe ganhava dinheiro como música, nos bares “e cafés” do Rio e de Niterói, nos anos 90. Quando a mãe morreu Viktor foi criado por uma tia, trabalhou como borracheiro e conseguiu estudar, se formando em ciências sociais. Ele acabou reencontrando o pai, que estava no Brasil de novo, mas eles não se deram bem.
Mesmo assim Viktor conseguiu tirar cidadania irlandesa, e foi para Dublin estudar.
Até aí tudo bem, mas onde o GRU falhou?
Simples: Apesar de extremamente detalhada, a carta de apresentação de Viktor é uma ATROCIDADE. O português está repleto de erros de gramática e ortografia. Não é algo escrito em russo ou inglês e mandado pro tradutor do Google. É escrito por alguém com algumas noções de português e zero de Brasil.
Vejamos alguns pontos:
1 – Viktor diz que sua mãe mal falava português, e o ensinava algumas palavras em espanhol. Estranho, afinal ela é brasileira.
2 – Ele diz que gostava de ficar vendo os carros passarem na ponte Presidente Costa e Silva. NENHUM cidadão brasileiro chama a Ponte Rio-Niterói assim.
3 – Ele tinha na borracharia um Pôster da Veronica Costa, depois trocado pela Pâmela Anderson. Quem diabos tem pôster de atriz mexicana no Brasil?
4 – Ele diz que era hostilizado no colégio sendo chamado de “gringo”, “mesmo parecendo alemão”. Ninguém chama os outros de gringo no colégio, se você for brasileiro. Ele seria chamado de no máximo “alemão”, mas mais provavelmente chamaria de “russo”. O que seria apropriado.
5 – “No escola superior, eu gostei especialmente do professor de geografia senhora xxxxxx”
6 – Ele diz que odeia peixe pois cresceu perto do porto, e o cheiro era horrível, mas os outros brasileiros adoram peixe. Aham.
A carta toda é uma comédia, o PDF original pode ser baixado deste link aqui.
Parece que em algum momento sujeito saiu do Brasil, e disse que “esqueceu como falar ou escrever em português”, mas que estava fazendo aulas para reaprender. Isso não faz o menor sentido.
A tal carta é cheia de detalhes facilmente confirmáveis, tipo o nome da escola que ele frequentou, o burocrata bota no Google, vê que a escola existe, se dá por satisfeito. Muito provavelmente os nomes foram todos pesquisados, e até o jazigo da tal tia existe mesmo, mas obviamente é alguma mulher aleatória, escolhida por um agente do GRU.
O problema é que todo o disfarce, toda a identidade falsa de Sergey dependia dos burocratas da Corte de Haia desconhecerem completamente o idioma português, e não mostraram a carta para qualquer lusoparlante.
Agora a casa de Sergey caiu. Ele voou para os Países Baixos em Abril de 2022 achando que tinha conseguido o estágio, mas foi identificado pela Imigração, já estava na Lista Negra e foi mandado de volta para o Brasil.
Seu paradeiro é ignorado, o Itamaraty, para surpresa de ninguém, não sabe de nada. Se a História se repetir, como aconteceu com um espião nazista no Rio da Segunda Guerra, ele vai se amaziar com uma mulata e esquecer essa bobagem de espionagem.
De qualquer jeito, Viktor deu muita sorte. Normalmente ele seria preso pelas autoridades holandesas, o GRU fingiria que ele não existe, e ele mofaria na cadeia até organizarem uma daquelas trocas de espiões, de preferência bem melodramática, em uma ponte, durante a noite no inverno, como faziam em Berlim:
Mais Detalhes: Notícia no site do Serviço Secreto dos Países Baixos