O amigo gay que Hitler não sabia onde enfiar

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Esse soldado claramente camufla.

A história de hoje é mais uma daquelas que termina com a lição “pessoas são complicadas”, tem muita morte e destruição, mas começa em tempos bem mais alegres para os rapazes idem.

Apesar de existir desde o tempo em que Adão viu o Ivo, a cena gay nunca foi muito escancarada, o que era de se esperar. Quando você é uma minoria, o grupo maior vai te olhar esquisito, seja por ser gay, seja por andar com uma camisa do Flamengo na torcida do Vasco.

Até coisas inofensivas como lateralidade cerebral. Canhotos são 10% da população, o que é suficiente para em tempos não tão remotos terem sido perseguidos, demonizados e vistos com desconfiança.

Curiosidade: Há uma pequena variação em termos de orientação sexual. Uma pesquisa da BBC descobriu que 13% dos gays são canhotos, contra 11% dos héteros. Entre lésbicas, a proporção é de 11%, contra 10% entre as mulheres caretas.

Fora períodos de oba-oba como Grécia e Roma antigas, a ordem era ser discreto, mas algumas sociedades eram mais relaxadas do que as outras. Uma que por incrível que pareça era super de boa com o povo LGBT era a Alemanha da República de Weimar, entre 1918 e 1933.

Que horror, que nojo. Ainda bem que Hitler acabou com isso. Fumar em recinto fechado, argh.

Quer dizer, em teoria havia o Parágrafo 175 do Código Penal, mas era um dos raros casos onde outro país imitou o Brasil e usou o conceito de “Lei que não pega”. Em teoria a a Lei, promulgada em 1871 e só cancelada em 1994, criminalizava atos homossexuais entre homens, mas na prática ninguém se preocupava.

Pra piorar a Lei definia como ato homossexual ser pego com a boca (ou o popô) na botija, e por botija eu digo piroca. Qualquer outra coisa, enquadravam como atentado ao pudor, ou nem isso. Mesmo os que eram flagrados na posição em que Napoleão perdeu a guerra, recebiam uma multa e pronto.

A sociedade berlinense como um todo não era tão liberal assim, mas partia do princípio que se o povo fizesse suas saliências nos bares e hotéis reservados pra isso, e fossem discretos, tudo bem.

Isso acabou tornando Berlim a capital gay do Continente, relatos da época dizem que a cidade era muito mais hospitaleira do que até mesmo Paris, a Pelotas da Europa.

Havia entre 27 e 30 jornais e revistas voltados para o público LGBT, cafés, bares, boates, saunas pipocavam pela cidade, e eram freqüentadas por gays, lésbicas, travestis, transsexuais e muitos, muitos crossdressers, um grupo que por algum motivo era especialmente popular na Alemanha da época.

Die Freundin e Die Insel, duas revistas bem populares em 1930 para o público lésbico e gay, respectivamente.

Todo um ecossistema surgiu para abrigar e apoiar essa fauna colorida que hoje só é lembrada em fotos em preto e branco, incluindo alfaiates especializados em criar vestidos tamanho grande para corpos masculinos, dentistas gay-friendly, médicos, advogados e até detetives especializados em casos de chantagem.

Entre os muitos clubes da cidade, um dos mais famosos era o Eldorado, aberto em 1922 como “O ponto de encontro da sociedade internacional”, e foi um sucesso, com shows de transformistas, pista de danças com hostesses travestis e apresentações de gente do naipe de Marlene Dietrich e  Claire Waldoff.

Um… (qual o coletivo de lésbicas?) se divertindo e tomando bons drinks no Eldorado.

Com a ascensão do nazismo, o Eldorado foi fechado em 1932 e transformado em um escritório dos Sturmabteilung, os SA, a milícia paramilitar do Partido Nazista, um grupo de arruaceiros escolhidos entre a escória da sociedade, para dar segurança aos comícios nazistas e vandalizar os eventos dos outros partidos.

O Eldorado, antes e depois.

Conhecidos como Camisas Marrom, os SA estavam entre os mais radicalizados nazistas, fazendo todo o trabalho sujo de Hitler, às vezes bem demais, a ponto de despertarem ciúme de Hermann Göring e Heinrich Himmler, dois figurões do Partido Nazista.

O problema é que os Sturmabteilung estavam sob comando de Ernst Röhm, um nazista tão leal que se filiou ao Partido Nazista antes mesmo de Hitler. (Sim, Hitler não fundou o Partido Nazista, mas isso é história pra outro artigo)

Sujeito tinha cara de mau mesmo do lado de Hitler.

Röhm escolheu um grupo de conhecidos de confiança para chefiar suas unidades, e logo a SA era tão organizada e eficiente quanto uma milícia poderia ser. Com rankings paramilitares, treinamento e estratégia, eles não deixavam ninguém atrapalhar os comícios de Hitler, nem de seus aliados espalhados pela Alemanha.

A SA era tão organizada que não usava verba do Partido, como bons vilões de quadrinhos, eles tinham a fonte de renda mais nefasta: Uma fábrica de cigarros, que produziam, vendiam e no estilo máfia quebravam as lojas dos comerciantes que ofereciam produto da concorrência.

Os SA e suas ridículas gravatinhas.

As tropas de Röhm estavam em todos os cantos, intimidando e coagindo tudo e todos. A economia em frangalhos era ótima para atrair gente com raiva, que adorava despejar suas frustrações quebrando coisas dos outros, e às vezes até os outros.

Os Sturmabteilung foram responsáveis pela Kristallnacht – a noite dos cristais, de 9 para 10 de Novembro de 1938, quando 267 sinagogas foram destruídas, junto com 7000 lojas e negócios de proprietários judeus, e 30 mil pessoas (adivinhem a etnia) foram presos e mandados para campos de concentração.

Ernst Röhm não era muito bem-visto pelas tropas ou pela maioria dos oficiais, mas ele entregava resultados e era amigo de Hitler, então o jeito era não mexer com o cara, mas Röhm era ambicioso, até demais.

Kristallnacht, mas tudo bem, me ensinaram que “Não existe violência contra vidraça, prédio, carro”.

Em 1933 a SA tinha 4.2 milhões de membros, enquanto o exército alemão, limitado pelo Tratado de Versalhes, só tinha 100 mil. Röhm queria que o exército fosse absorvido pela SA, mas os militares não gostaram nada da idéia de se tornar vassalos de um bando de encrenqueiros.

As lideranças chilicaram, a situação chegou até o Presidente Hindenburg, que chamou Hitler, então apenas Chanceler, e mandou dar um puxão na coleira do Röhm.

Charge da época, zoando como Röhm escolhia os membros (epa!) da SA.

Adolfão fez mais que isso, avisou que iria reduzir as tropas da SA em dois terços, mas não foi o suficiente. Uma campanha pública e privada contra Ernst Röhm foi orquestrada por Joseph Goebbels, Hermann Göring e Heinrich Himmler, incluindo um documento forjado com planos de um golpe contra Hitler.

Dizem que Hitler não acreditou (muito) no documento, mas ele viu que a SA estava saindo de controle, e pior, o Presidente poderia decretar Lei Marcial, o que seria fatal para o Partido Nazista. A decisão então foi cortar o mal pela raiz, na chamada Noite das Facas Longas – Sim, nazistas adoram um melodrama.

“Isso, aquele ali, pode passar fogo”.

Entre 30 de junho e 2 de julho de 1934, a liderança da Sturmabteilung foi chamada para um hotel, onde Hitler prendeu pessoalmente Ernst Röhm, enquanto outros altos-oficiais eram às vezes sumariamente executados. Em outros casos os oficiais da SA tinham direito a um julgamento de um minuto, e só depois eram executados.

Por todo o país tropas da Gestapo, sob comando de Himmler, prendiam e matavam o alto escalão da SA. Oficialmente foram 85 mortos, as estimativas passam de mil.

Hitler ainda assim queria perdoar Röhm, mas foi convencido que era impossível. Ordenou então que ele tivesse a chance de tirar a própria vida. Ele foi colocado em uma cela, um oficial entregou uma pistola com um projétil na câmara, avisaram que voltariam em dez minutos e se ele não estivesse morto, eles cuidariam disso.

Ernst Röhm

Quando voltaram a arma estava intocada, Ernst Röhm de pé, batendo no peito, desafiante, dizendo que se Hitler o queria morto, teria que fazer isso com as próprias mãos. Theodor Eicke, Comandante do Campo de Concentração de Dachau, e seu Ajudante de Ordens, Michael Lippert sacaram suas pistolas e executaram Röhm.

No dia seguinte os jornais nazistas publicaram sobre os expurgos, revelando algo chocante:

Ernst Röhm era gay.

E isso era contra tudo que os nazistas pregavam, eles eram responsáveis pelo declínio moral e social da Alemanha, eram parte de um plano comunista para destruir as famílias e afastar o povo de Deus.

Os gays também assediariam crianças e as transformavam em gays, de alguma forma. Quando chegaram ao poder os nazistas perseguiram gays sem descansar, por um tempo eles foram a maioria dos prisioneiros nos campos de concentração. A legislação foi mudada, e agora até mesmo OLHAR pra outro homem de forma esquisita era o suficiente pro sujeito ser preso.

Membros da SS e da SA se infiltravam em clubes e boates atrás de homens que “falavam esquisito”, e os prendiam em flagrante. A Alemanha, que outrora fora se não um paraíso, pelo menos um Rio de Janeiro no Carnaval, se tornou o Reveillon na casa do Tio Militar que não está sabendo.

Ninguém larga a mão de ninguém. Não, péra.

A situação foi pior para os transsexuais e os mais afeminados, sobrou até para os jovens héteros mais delicados, mas os nazistas não queriam saber. Depois de 1934 a homofobia foi pro 11.

Mas e o Ernst Röhm?

Não era calúnia, Röhm era gay, mas muito gay, usando um aforismo do Gaiman, ele era um rapaz mais alegre que uma árvore de macacos chapados de gás do riso. E TODO MUNDO SABIA DISSO.

Röhm frequentava o Eldorado, saía com michês, tinha delivery de garotos de programa direto pra porta de casa, e tinha “nojo” de mulheres. Ele não gostava do discurso homofóbico do nazismo, mas via no movimento chance de fazer a Alemanha grande novamente, e tinha a esperança de convencer os líderes a mudar sua instância em relação ao povo LGBT.

Ele era especialmente leal a Hitler, que por sua vez respeitava Röhm por participar do Golpe da Cervejaria, e se tornado fundamental pra ascensão do Partido Nazista. Hitler se recusava a discutir as inúmeras denúncias sobre a homossexualidade de Röhm, mesmo depois dele ter sido preso cinco vezes, mas nelas todas foi inocentado, por aquela tecnicalidade de só valer aquilo naquilo.

A oposição, claro, via Röhm como um alvo suculento (no bom sentido) e espalhavam panfletos escandalosos denunciando o político.

O mais divertido é que tanto o Partido Social Democrata quanto o Partido Comunista eram veementemente contra o Parágrafo 175, e tinham como plataforma aboli-lo, mas não tinham o menor pudor em usar a homofobia como arma, apostando que o povo conservador não aceitaria um gay como chefe da SA.

Röhm por sua vez era membro da Bund für Menschenrecht (Liga pelos Direitos Humanos), uma organização pró-homossexuais e o último lugar onde a gente imaginaria ver um nazista.

Ele escreveu:

“A luta contra a hipocrisia, a mentira e a falsidade da sociedade atual deve começar com a natureza inata dos impulsos que são colocados nos homens desde o berço… Se a luta nesta área for bem-sucedida, então as máscaras podem ser arrancadas da dissimulação em todas as áreas da ordem social e legal humana.”

Röhm culpava a moralidade burguesa pela alta taxa de suicídios entre a população LGBT

Em 1932 o Partido Social-Democrata publicou um panfleto, durante as eleições, com 17 páginas sobre Röhm, incluindo cópias de 3 cartas comprometedoras. Foram 300 mil cópias, que passavam a imagem de que o Partido Nazista era um imenso Gala Gay, com rapazes dadivosos para todos os lados.

Isso reforçou o mito do Nazista Gay, popularizado pela esquerda da época, segundo o qual o nazismo era um movimento essencialmente gay, Himmler era gay, Goebels era gay, Hitler era gay.

Isso foi de uma baixaria atroz. Para atacar os nazistas, os comunistas usaram da mesma retórica apocalíptica, e o povo ouvia dos dois lados como os gays eram nefastos.

Klaus Mann, irmão do escritor Thomas Mann e gay, escreveu:

“No Terceiro Reich, os homossexuais são regularmente presos e colocados em campos de trabalho ou até mesmo castrados e executados. Fora da Alemanha, eles são desprezados pela imprensa esquerdista e pela comunidade de emigrantes alemães. Estamos chegando ao ponto em que os homossexuais estão sendo usados como bodes expiatórios em todos os lados. De qualquer maneira, a homossexualidade não vai ser “erradicada” e, se fosse, deixaria a civilização mais pobre.”

O mais cruel de tudo é que Röhm nutria simpatia com os comunistas. Ele foi um dos muitos que acreditou no “socialista” do Partido Nacional-Socialista, nome criado, contra a vontade de Hitler, para atrair o proletariado, o próprio uso da cor vermelha também não foi coincidência.

Röhm tinha uma grande queda pelo socialismo, e muitos membros da SA eram ex-comunistas insatisfeitos com o Partido. Isso, para muitos historiadores, foi o principal motivo de Hitler ter decidido expurgar os Sturmabteilung. Ter um monte de gays em seus quadros, Hitler tolerava. As indiscrições de Röhm? Ele estava nem ali. A do resto dos gays? Aí era fogo neles, claro.

Os nazistas invadiram e depredaram o Institut für Sexualwissenschaft, a primeira organização do mundo dedicada ao estudo de sexualidade, com idéias progressivas mesmo para os padrões de hoje.

Ninguém sabe o que aconteceria com Röhm se ele permanecesse na Sturmabteilung durante o endurecimento da política homofóbica nazista. Pouca gente acredita que ele se tornaria o Defensor das Minorias, e ele morreu menos por não ter a confiança e lealdade de gente abaixo dele, e mais por não agradar aos que estavam acima.

Disso tudo, aprendemos é que orientação sexual não é garantia de caráter, você pode ser gay e ser uma pessoa incrível ou ser gay e ser uma pessoa ruim. O mais complicado é quando você é um nazista filho da puta, gay e tem um discurso progressista genuinamente moderno e inclusivo.

Em uma outra realidade talvez Röhm tivesse se tornado um militante LGBT socialista de bastante sucesso, ajudando a causa com seu discurso e carisma, mas no momento em que ele se deixou encantar por Hitler e se tornou um nazista, mereceu os tiros que tomou.

Quanto a Michael Lippert, em 1957 foi julgado e condenado pela morte de Röhm, pegando uma sentença de 18 meses de prisão.

A lição, crianças, é simples: Pessoas são complicadas.

O melhor de tudo é que o prédio do Eldorado ainda existe, hoje é um supermercado, que manteve o nome na fachada, e decorado com fotos da época, como um belo tapa na cara dos nazistas homofóbicos de ontem e de hoje.

Fontes:

  1. Handedness, birth order, and sexual orientation
  2. Berlin was a liberal hotbed of homosexuality and a mecca for cross dressers and transsexuals where the first male-to-female surgery was performed – until the Nazis came to power, new book reveals
  3. Photo of the Eldorado Club
  4. Schöneberg was so Lesbian in the Weimar Republic!
  5. Out on the Town – Magnus Hirschfeld and Berlin’s Third Sex
  6. Berlin, 1919–1933: Birth of the LGBTQ+ Movement
  7. JUNE 9: Frauenlibe/Garçonne publishes its first issue (1926)
  8. GAY MEN UNDER THE NAZI REGIME
  9. ELDORADO – HIER IST RICHTIG!
  10. Cross-dressing Nazis: A German artist found so many photos of them he published a book
  11. Ernst Röhm

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