Quem já trabalhou em agência está acostumado a receber manuais de uso de marcas. EM SI o conceito é bem útil, é bom saber quais fontes utilizar, quais cores combinam ou ou combinam com uma logo, e a história do produto sempre rende boas peças.
Problema é que marketeiro de empresa não só veste a camisa como tatua a logo na testa, e assumem que qualquer desentupidor de pia é a chave para a sobrevivência da humanidade. NENHUM cliente reconhece que seu produto é supérfluo, desinteressante ou apenas irrelevante no Grande Esquema das Coisas.
Como marketeiro que é marketeiro não é burro e quer manter o emprego, não vai ser idiota de dizer isso pro cliente, então tratam qualquer porcaria com uma seriedade de uma pílula que trata câncer, diabetes, aids e paumolescência, mesmo em mulheres.
Claro que quem está de fora não vê o produto com a mesma seriedade, como ficou muito bem demonstrado no Colbert Report de 23 de Fevereiro.
O programa de Stephen Colbert costuma ter excelentes relações com patrocinadores, que deixam a equipe de criação solta, assim Doritos patrocinou sua Campanha Presidencial, ele aparece virando Jack Daniel’s no gargalo e Bing/Microsoft doaram 150 mil dólares para o Haiti, pagando US$1000 cada vez que Colbert falasse ”Bing” no ar. Ele falou, sacaneando direto, afinal é um produto que é alvo natural de zoação.
No mesmo programa do dia 23 para demonstrar que adorava uma jabá ele citou o quadro-fake de atualização sobre as atrocidades na Síria patrocinado pela Fruit Roll-Ups.
Não se engane. Foi pago, bem pago e o anunciante não teve problemas em ser associado com um massacre, pois ficou no contexto de um quadro de humor.
O anunciante principal entretanto era o Wheat Thins, uma bolachinha (ou biscoito, depende da sua religião) de trigo usada como acompanhamento em aperitivos. Fácil, não?
Não. O Departamento de Marketing mandou para um programa de humor extremamente sarcástico e irônico um memorando com instruções de uso da marca, afinal o merchandising deveria ficar dentro das especificações.
Ao invés de criar uma situação complexa, ou enfiar um “patrocinado por”, Colbert decidiu que o tal memorando garantia espaço de honra para o produto, e fez o quadro todo LENDO e comentando o texto enviado.
Ele fala:
“Stephen, eu me pergunto, quão importante é o Wheat Thins? Pois bem, eu também pensava assim, até receber este memorando da Wheat Thins detalhando qual o papel do Wheat Thins em nossas vidas. Vou te dizer uma coisa. Acha que conhece o Wheat Thins? VÁ SE FODER!”
Isso mesmo. E continua a ler o memo da Nabisco, que define duas categorias: Qual o papel da marca e qual não é o papel da marca.
O primeiro papel do Wheat Thins: “É o perfeito acompanhante para petiscos, a qualquer hora, em qualquer lugar, e com qualquer coisa”.
Colbert concorda entusiasmado, puxa debaixo da mesa uma bandejinha e mostra que o biscoito funciona com queijo, húmus e até um pedaço de pneu!
“Eu gostaria de despejar essa caixa inteira na minha boca, mas o memorando especifica que”
“não podem mostrar consumo exagerado”.
São inclusive específicos:
“A porção a ser servida é de 16 biscoitos…” e Colbert “não pode comer mais de 16”. “Se mostrados fora da caixa (como em uma tigela), só pode haver um máximo de 16 biscoitos nela”.
Sem parar, e no tom entusiasmado de jabazeiro Colbert explica: “Então lembrem-se todos, embora Wheat Thins seja-“ e cita o memorando – “Um petisco para qualquer um ativamente em busca de experiências”, essas experiências não incluem a experiência de comer 17 biscoitos.
Ele concorda, e de novo citando o texto do marketing, diz que 16 biscoitos são o número perfeito para “mantê-lo no caminho, orgulhoso, fazendo o que você ama fazer, não importa o que seja”.
Sério, de onde tiraram isso? Parece coisa de japonês. É UM BISCOITO, CACETE!
“Não importa o que seja!” – diz Colbert – “levando as crianças para a escola, assistindo um filme, iniciando um incêndio criminoso… não julgamos, pois Wheat Thins não é” –olha o memo de novo – “um criador de experiências isoladas, não compartilhadas”. Ele é um “conector de pessoas com mentes afins, encorajando compartilhamento”.
Um biscoito.
Nessa hora ele pega uma tigela enorme, abre a caixa, despeja os míseros 16 biscoitos, e avisa (sim, lá vem memo) que Wheat Thins “não é um cruzado ou um rebelde procurando mudar o caminho de um indivíduo, ou o mundo”.
Claro, o palhaço enfia os 16 biscoitos na boca de uma vez.
Sempre o rebelde, ele pergunta se deve tentar comer 17 biscoitos. O auditório aplaude, ele puxa um Wheat Thins da prateleira debaixo da mesa, mas quando vai colocar na boca, o programa sai do ar.
Volta com Stephen lendo um texto pedindo desculpas à Nabisco, acompanhado de um “advogado” da empresa.
Ele encerra o quadro dando até logo, dizendo “junte-se a nós semana que vem quando lerei um memorando de alguma outra empresa que me deu dinheiro”.
Nessa hora o estagiário de Xoxomídia que se acha o Olivetto 2.0 está xingando muito no Twitter: “mimimi cardoso burro isso é armado”.
SIIIIM cara MULA. É armado, no sentido de que você não sacaneia publicamente um patrocinador sem ele estar ciente, e ter concordado. A questão é que um patrocínio simples, um “trazido a você por” se tornou um quadro de 6min49seg em um programa de 21 minutos.
AQUI o quadro completo:
The Colbert Report | Mon – Thurs 11:30pm / 10:30c | |||
Wheat Thins Sponsortunity | ||||
|
Em nenhum momento ele falou mal DO PRODUTO, que todo mundo conhece. O alvo da sacanagem foi o departamento de marketing, tentando dar uma importância exagerada e desnecessária a um produto que por si só é simpático.
Deu certo? Deu, mas é um caso atípico. Colbert tem mais de 30 roteiristas experientes, capazes de tirar leite de pedra, como nesse caso. Um CQC da vida seguiria à risca o manualzinho, com x segundos de packshot, x menções ao produto pelo nome e uma chamada que passe modernidade mas cite tradição.
Quem lida com pau mandado tem que mandar tudo mastigado, mas quem lida com TALENTOS não deve tratá-los como leitores de teleprompter. Principalmente porque talentos não costumam tratar seus espectadores como idiotas que acreditam que tramas são interrompidas para alguém ir no Itaú tomar café com gerente ou pegar empréstimo no caixa automático.
Outro programa que costuma ser um show em termos de integrar o jabá de forma inteligente é 30 Rock. Na cena abaixo, algo que você JAMAIS verá num BBB da vida, Alec Baldwin interrompe o que estava dizendo para comentar do nada que os celulares da Verizon são ótimos.
Tina Fey concorda, e de forma lindamente cínica diz que se visse um celular desses na TV correria para o revendedor mais próximo perguntando “como posso conseguir um?”.
Dito isso ela pausa, olha para a câmera e diz: “podemos receber nosso dinheiro agora?”
YES, 30 Rock trata o público como pessoas inteligentes o bastante para perceberem que o que acabaram de ver foi uma propaganda. E, ao contrário de mimizentos de Twitter, não se ofender por seu programa preferido estar ganhando dinheiro.
Misturar conteúdo com publicidade sempre foi algo mal-visto, muitas vezes é feito com a mais profunda má-vontade, mas não é necessário. Se você misturar um cliente inteligente, uma agência inteligente e um programa inteligente, pode enfiar um merchandising em uma cena onde discute-se um merchandising, e ainda criticar alguém que fez o mesmo, só pra fazer pior ainda, como neste excelente momento também de 30 Rock
O único problema é que é muito mais fácil atirar bacalhau pra pessoas.