Lise Meitner, a garota elemental

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Em 1982, em um laboratório mal-iluminado no Instituto de Pesquisa de Íons Pesados em Darmstadt, Alemanha Peter Armbruster e  Gottfried Münzenberg repetiam pela enésima vez um experimento. Um alvo de Bismuto-209 foi bombardeado por átomos de Ferro-58.

Acelerados por campos magnéticos, os átomos de Ferro atingiam o alvo com incrível energia. Mesmo assim a maior parte deles era repelida, as nuvens de elétrons agindo como campos de força protegendo o precioso núcleo, mas em alguns casos a energia cinética era mais forte, e os núcleos de ferro atingiam em cheio os núcleos de berílio.

Os dois átomos momentaneamente se aniquilavam, então forças poderosas e minúsculas, irritadas com a desordem forçaram as partículas subatômicas a procurar um novo estado de equilíbrio. Onde antes havia ferro e berílio, uma nuvem de prótons, nêutrons, elétrons se reorganizou em algo novo.

Essa reação envolveu milhões de átomos, mas  somente UM se estabeleceu momentaneamente com 109 prótons. Os equipamentos de alta precisão germânica conseguiram captar a indistinguível assinatura mesmo de um único átomo. Não havia dúvida: eles criaram um novo elemento químico.

Existem 92 elementos químicos naturais. Alguns criados durante o Big Bang, como o Lítio, outros frutos de nucleossíntese, no coração de estrelas. Alguns mais pesados demandam tanta energia que é preciso uma Supernova para criá-los. O Ferro em seu sangue foi criado quando uma gigante vermelha tenta desesperadamente manter o processo de fusão nuclear, mas a reação que produz Ferro gera pouca energia, e ela não tem como fundir o Ferro em elementos mais pesados. A estrela esfria, começa a colapsar por seu próprio peso e então explode em uma supernova.

Essa explosão gera tanta energia que elementos muito mais pesados são produzidos. O Ouro de sua aliança? Você está olhando para uma parte de uma estrela há muito morta.

A criação de elementos químicos em laboratório surgiu em 1930, com o Tecnécio, mas havia problemas maiores. A Tabela Periódica apresentava “falhas”, havia elementos faltando e os cientistas corriam para encontrar os elementos que a Natureza estava escondendo. Em 1898 Pierre e Marie Curie descobriram o rádio, e se você já acha improvável e raro uma mulher cientista de ponta no final do Século XIX, não ouviu falar de Lise Meitner.

Nascida em Viena, 1878, era uma pequena cientista, como toda criança. Aos 8 anos escondia debaixo do travesseiro seu caderno onde anotava observações e cálculos. Quando descobriu que na Áustria do começo do Século XX mulheres não eram admitidas em instituições de ensino de ciências, Lise correu para o Facebook e fez um textão lacrador e-nah, mentira. Com apoio dos pais ela teve aulas com professores particulares de Física, e se graduou na marra. Admitida na Universidade de Viena, foi a segunda mulher a conseguir um Doutorado.

Sua pesquisa com difusão de partículas Alfa foi fundamental para que Ernest Rutherford refinasse seu modelo atômico.

Quando completou o Doutorado, Lise pensou em estudar na Friedrich-Wilhelms-Universität, em Berlim, mas era longe e caro. “suncê quer ir pra Berlim? Pois vá, minha nega, vá com meu axé!” disse o pai dela, que incentivou e bancou a mudança. Lá ela frequentou as aulas de Max Planck, e muita gente estranhou. Ele não aceitava mulheres em suas aulas. Obviamente quem estranhou não conhecia a qualidade do trabalho de Lise, e Planck podia ser preconceituoso como tudo mundo em sua época, mas sabia reconhecer Inteligência, mesmo que viesse na forma do Pecado.

Planck, desgraçando a cabeça de um monte de estudantes homens, escolheu Lise como sua assistente, com direito a desenvolver as próprias pesquisas. Ela criou novos métodos de separação de elementos, descobriu vários isótopos e principalmente conhecem Otto Hahn, outro físico brilhante e um amigo que a acompanharia por toda a vida.

Quando Hahn foi para o Instituto Kaiser Wilhelm, Lise foi junto, onde continuaram a pesquisar isótopos. Em 1917 eles preencheram mais uma lacuna na tabela periódica. Lise Meitner havia descoberto o Protactínio, elemento de número atômico 91, o penúltimo elemento natural, logo atrás do Urânio. Ela ganhou uma medalha por isso, e mais tarde seu próprio laboratório de física no Instituto.

Ela se tornou a primeira mulher na Alemanha a atingir o posto de Professor Titular e mais tarde chefiou o Departamento de Física do Instituto Kaiser Wilhelm, o problema é que isso foi em 1935, Adolf Hitler estava se consolidando no poder, e subitamente Ilse percebeu que sua família adorava quebrar copos em casamentos, deixar cadeiras vazias nas ceias de Páscoa e colecionar prepúcios em uma gaveta. Usando seu admirável cérebro e incrível lógica matemática Ilse percebeu que a Alemanha Nazista não era um bom lugar para um judia, mesmo que reconhecida e respeitada entre seus pares.

Quase todos os cientistas judeus do Instituto haviam fugido, Ilse acabou percebendo que era hora de se mandar. Com ajuda de Otto Hahn e outros cientistas ela fugiu no meio da noite, acompanhada de dois cientistas, Adriaan Fokker e Dirk Coster, ambos holandeses. Eles convenceram os guardas pelo caminho de que ela não era ninguém em especial, e atravessaram em segurança a fronteira com os Países Baixos.

Ilse Meitner, cientista premiada havia deixado a Alemanha com 10 Marcos na bolsa e nada mais. Para piorar o emprego prometido na Universidade de Groningen não apareceu. Ela acabou tendo que tentar a sorte na Suécia, e foi bater no laboratório de Manne Siegbahn. Manne era um grande mané, com opiniões bem fortes sobre mulheres na ciência, mas mais uma vez o currículo e o círculo de amizades de Ilse foram suficientes para vencer a resistência.

Lá Ilse trabalhou com Niels Bohr, além de manter a colaboração com Otto Hahn, tanto por carta quanto em visitas eventuais. Essas pesquisas faziam parte da corrida para criar elementos artificiais, algo postulado desde os anos 30.  Quando Otto Hahn e Fritz Strassmann fizeram seu experimento em 1938, perceberam que algo de estranho estava acontecendo. Os elementos novos não estavam sendo criados, mas os antigos estavam sendo destruídos, com grande liberação de energia.

Ele contou os detalhes para Ilse, e ela criou o modelo matemático para explicar o que estava acontecendo: haviam descoberto a fissão nuclear. Quando um feixe de nêutrons de alta energia atinge o Urânio, os elementos resultantes são instáveis demais, decaem em outros elementos, liberam energia e parte dessa energia atinge outros átomos, que repetem o processo, em uma reação em cadeia.

Logo ficou evidente que havia ali potencial para algo bem grande:

Como ao contrário de Hitler, os EUA não tinham problema com as idéias mirabolantes da Física Judia, iniciaram o Projeto Manhattan, trazendo boa parte dos maiores cérebros da Época para Los Alamos, com  objetivo de construir uma bomba atômica. Uma física judia em especial foi especialmente convidada para fazer parte do projeto, mas lembrando de sua experiência como enfermeira radiológica na Primeira Guerra, Ilse recusou dizendo que “não vou ter nada a ver com uma bomba”.

Em 1945 foi divulgado o Nobel de Química de 1944, e o prêmio foi para Otto Hahn, pela comprovação experimental da fissão nuclear. Muita gente não gostou, a contribuição de Ilse havia sido esquecida, mas ela mesma defendeu a premiação do amigo.

Ambos foram finalistas do Nobel várias vezes, e 50 anos depois quando foram abertos os arquivos da Comissão do Prêmio, ficou claro o motivo de Ilse não ter dividido a honraria: Com a Guerra em andamento a comissão que determinava o prémio de Química estava isolada em Estocolmo, e não tinham experiência com interdisciplinaridade. Ilse contribuiu muito na área física e matemática da descoberta, isso confundiu os membros da comissão, que não entendiam como uma contribuição à distância, por carta poderia ser tão importante quanto o trabalho em laboratório.

Ilse se preocupava mais com os cientistas alemães que tinham ajudado os nazistas, como Heinsenberg e Max Von Laue, e nunca mais viu a Alemanha como uma segunda casa, embora sempre voltasse para visitar Otto Hahn, seu mais fiel amigo.

Logo após a Guerra a Comissão de Energia Atômica da Suécia montou um laboratório para ela, onde trabalhou de 1947 até 1960, quando se aposentou e foi morar na Inglaterra junto com os parentes. Depois de um ataque cardíaco em 1964 e uma condição de arteriosclerose severa, Ilse acabou não podendo ir aos EUA receber o Prêmio Enrico Fermi de 1966, pela descoberta da fissão nuclear, dessa vez corretamente dividido entre  Otto Hahn, Lise Meitner e Fritz Strassmann.

Lise Meitner, a cientista que Albert Einstein chamou de “Marie Curie da Alemanha” morreu em 27/10/1968 aos 89 anos, dormindo. Ela nunca soube da morte de Otto Hahn, em Julho do mesmo ano.

Décadas depois a Física viveria outra situação beligerante, as Guerras Transférmium, quando institutos de pesquisa criando novos elementos corriam para batizar suas descobertas, ignorando as convenções internacionais. Por um tempo elementos tinham vários nomes, nenhum nome ou eram chamados somente pelo número atômico.

Menos o 109. Quando foi detectado no Instituto de Pesquisa de Íons Pesados em Darmstadt, houve pouca ou nenhuma dúvida quanto a seu nome: Meitnerium.

Foi o único caso onde nenhuma das partes envolvidas disputou ou contestou a escolha.

Aquele único átomo de Meitnerium existiu por 1.7 milissegundos, antes de decair em Bóhrio, mas a memória de Lise Meitner viverá para sempre, como a primeira, e por enquanto única mulher não-mitológica homenageada com um elemento químico. Não, desculpe Marie Curie, o Cúrio é seu e do maridão. Lise não divide palco.

 


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