A cena foi cuidadosamente montada. Uma foto de Hitler emoldurada, uma estatueta compondo a cena, e um tapete sujo de lamas nas botas usadas em uma visita ao campo de concentração de Dachau. Lee Miller se lava sem sorrir, sabendo que naquela mesma banheira Adolf Hitler havia se banhado. Era o fim da Segunda Guerra Mundial, e por um momento Lee deixou de ser fotógrafa, e virou a modelo.
Ela já havia modelado antes. Desde criança fez fotos com o pai, que também a ensinou a fotografar. Em 1926 com 19 anos ela quase foi atropelada em Nova York. Foi salva por um sujeito chamado Condé Nast, publisher da Vogue. Ele percebeu que aquela moça tinha potencial, e no ano seguinte ela seria modelo de uma ilustração na capa da revista.
Por dois anos Lee Miller foi uma das modelos mais requisitadas de Nova York, mas sua carreira acabou abruptamente quando um FDP pirateou uma foto dela para um anúncio de Kotex, o absorvente íntimo. Nenhum anunciante queria ser associado a tal produto.
Elizabeth Miller era o modelo de jovem mulher descolada e moderna dos Anos 20, e fazia jus à imagem. Abandonando a modelagem ela arrumou um emprego como desenhista de uma designer, mas ficou de saco cheio e fez o que toda moça descolada da época fazia: Foi pra Europa. Com endereço certo: Bateu na porta de Man Ray, um dos papas do surrealismo, desenvolvendo técnicas fotográficas no estilo. Só que ele não aceitava estudantes ou pupilos.
Claro que isso não é fácil de dizer quando bate na sua porta o equivalente a uma supermodelo, de 22 aninhos falando “Eu sou sua nova estudante”. Ray aceitou, e Miller se tornou estudante, musa, parceira e amante, não necessariamente nessa ordem. A única coisa que ela não era é Amélia, e logo montou o próprio estúdio fotográfico, onde pegava a maioria dos trabalhos que chegaram para Man Ray e ele não queria fazer. Boa parte do trabalho fotográfico dele dessa época foi feito por Lee Miller, ele só assinava.
Morando em Paris, Lee era conhecida da intelectualidade da época, incluindo Jean Cocteau e Picasso, que a retratou em pelo menos quatro obras. Só que de novo ela ficou de saco cheio, e as brigas constantes com Ray não ajudavam. Dando adeus à Europa, ela voltou para Nova York em 1932. Com o equivalente a US$200 mil de dois investidores, montou o próprio estúdio fotográfico, onde fazia trabalhos pros maiores clientes do mundo da moda. Ela também era celebrada em exposições e galerias.
Dois anos depois ela conheceu Aziz Eloui Bey, um engenheiro e empresário egípcio. Ela gostou da idéia de mudar de ares, aceitou o pedido de casamento e foi para o Cairo, mas se entediou em poucos anos. Voltou para Paris em 1937, onde conheceu Roland Penrose. Quando a Segunda Guerra Mundial estourou, eles estavam morando em Londres. Não havia muita dúvida sobre o que fazer: pegar um navio e voltar para os EUA. Era consenso entre todos os amigos e parentes, Lee Miller era uma fotógrafa de moda, ex-modelo, socialite, guerra não era lugar para ela.
Miller pegou a máquina fotográfica e começou a cobrir os bombardeios alemães. A melindrosa patricinha dos Anos 20 havia se tornado fotojornalista, e graças aos seus contatos conseguiu credencial de correspondente de guerra para a Condé Nast, agora uma editora. Ela e David Scherman, outro fotógrafo formaram uma dupla imbatível.
Lee Miller tinha até um capacete especial para usar enquanto fotografava.
Ela percorreu a Normandia, fotografou a libertação de Paris, várias batalhas e os campos de concentração de Buchenwald e Dachau, onde registrou inclusive os guardas capturados. Ela não tinha medo de encarar o Horror de frente, em busca da foto, e o resultado são imagens lindas e assustadoras. Fotojornalismo elevado à condição de arte.
Quando Munique caiu ela sabia que teria que ser rápida. pegou David Scherman e foram para o apartamento secreto de Hitler. Acharam o local intacto, eram os primeiros ali. Fotografaram extensivamente o apartamento, fizeram as fotos na banheira e ainda dormiram na cama de Hitler. Se fizeram algo mais, foram elegantes e não revelaram, mas é meio óbvio que rolou. Quem não gostaria de entrar para o Hitler High Club?
Com o fim da guerra Lee Miller se casou com Roland Penrose e foram morar em uma fazenda em East Sussex, Inglaterra, mas sua vida não foi muito feliz. Ela bebia muito, para tentar controlar a depressão profunda e o stress pós-traumático de tudo que viu e viveu. A lente aparentemente não é um escudo tão eficiente. Aos poucos ela foi abandonando a fotografia, se dedicando à culinária, e como sempre se tornou uma mestra.
Miller morreu em 1977, com 70 anos de idade. Apesar de todo seu sucesso, ela só havia feito uma exposição solo na vida. Lee nunca promoveu o próprio trabalho,e para surpresa de seu filho, Antony Penrose, ela havia guardado no sótão de casa 60 mil fotos, negativos e documentos, cobrindo principalmente seu período na guerra. Uma obra inestimável que ainda está sendo digitalizada.
Lee Miller pagou com sua alma mas não deixou de cumprir sua missão: Humanizar algo tão desumano quanto uma guerra.