Existe uma imagem recorrente em guerras de americanos colocando os soldados negros como bucha de canhão, mandando-os na frente. Isso foi muito bem mostrado em South Park, mas a realidade é bem mais cruel do que isso, embora ironicamente negros morressem em menos do que Brancos. O racismo fazia com que os oficiais preferissem matar brancos a colocar negros em combate.
Uma coisa que o brasileiro tem dificuldade de entender é a diferença entre preconceito e racismo. Preconceito faz a gente achar que mulher dirige mal, burrice faz a gente continuar achando isso mesmo depois das seguradoras cobrarem bem menos pra segurar o carro delas. Preconceito é achar que português é burro, algo que importamos deles mesmos pois quase todas as piadas de português contadas aqui são piadas de alentejanos contadas em Lisboa e arredores.
Já o racismo é uma condição onde você acredita que a outra raça é essencialmente inferior moral ou intelectualmente. Era comum nos EUA famílias negras sendo proibidas de se mudar para bairros brancos, e quando isso acontecia alguns residentes preferiam vender a casa a conviver com vizinhos negros. Que hoje o jogo virou e negros reclamam que brancos estão estragando a vizinhança ao se mudar para os bairros deles é deliciosamente irônico.
Na guerra a ausência de negros em postos de combate era fruto da crença de que eles eram intelectualmente inferiores, incapazes de obedecer ordens, aguentar a pressão e combater como uma unidade eficiente. Por isso na Segunda Guerra Mundial a maior parte das tropas negras foram colocadas em funções auxiliares, trabalhando como estivadores, secretários, mecânicos e cozinheiros.
Mesmo enfermeiras não eram bem-vindas. O Corpo de Enfermeiras do Exército só aceitou negras muito a contra-gosto, em 1941 depois que a Primeira-Dama Eleanor Roosevelt se meteu na história, mesmo assim aceitaram um grupo de 46 enfermeiras que só cuidavam de soldados negros.
Para piorar as forças armadas americanas eram totalmente segregadas, seguindo à risca as Leis Jim Crow, nome dado ao conjunto de Leis estaduais e municipais que promoviam separação racial entre brancos e negros. Economicamente eram um pesadelo para as forças armadas, pois tudo tinha que ser duplicado.
Banheiro? Pra brancos e pra negros. Refeitório? Duplicado. Clube dos oficiais? Um pra cada raça.
Essa loucura refletia a política do “separados mas iguais”, onde para garantir a constitucionalidade das Leis os cidadãos tinham os mesmos tratamentos (eu teoria) mas cada um com suas negas. Isso levou à formação de unidades somente de negros, em termos de logística era mais fácil do que duplicar as instalações em todas as bases, mas quando as tropas começaram a ser mobilizadas no exterior, isso criou muita confusão.
Cenas assim por exemplo:
Os americanos tinham dificuldade de entender como a FEB funcionava, com tropas multiraciais integradas. E funcionava bem, os mecânicos do Primeiro Grupo de Aviação de Caça davam show nos gringos, quando foram ver o motivo da eficiência, era simples: Não havia grupo de mecânicos negros versus grupo de brancos, e quando uma equipe terminava o trabalho, ia ajudar a outra.
Quando as tropas americanas se instalaram na Inglaterra, sua grande base na Europa (ou próximo a ela, segundo os ingleses) replicaram a estrutura de segregação, mas não contaram com um detalhe cultural que resultou em uma das menores e mais importantes batalhas da Guerra, entre 24 e 25 de Junho de 1943, a Batalha de Bamber Bridge.
Ela resultou em um morto, sete feridos, e ocorreu neste lugar aqui:
O Ye Olde Hob Inn é um pub em Bamber Bridge, na região de Lancashire e era bem popular entre os soldados. O problema era que era popular entre todos os soldados, e a maioria dos pracinhas americanos não aceitava isso.
Quando as forças ianques começaram a chegar na Ilha foi uma invasão ao contrário. Entre 1943 1945 3 milhões de soldados aumentaram fizeram da Inglaterra sua residência. Eles chegavam com seus soldos em dólar, suas meias de nylon, sua libido em alta, seu jeito bonachão e espalhado, e encontravam um país onde boa parte da população masculina estava lutando no exterior.
Imagine um literal exército de Biff Tannens e Flash Thompsons e Johnny Bravos ocupando cidades inteiras, tocando terror em pubs e esbanjando uma fartura que os nativos não viam desde 1939. Um ditado da época dizia que os americanos eram “oversexed, overpaid and over here”.
Só que entre esses ianques havia a população negra, que chegou desconfiada mas logo percebeu que não sofria o mesmo tipo de segregação que estavam acostumados em casa. Segregação essa que havia adestrado o negro a ter uma atitude sempre mais educada, com medo de provocar um incidente. O resultado é que na percepção dos habitantes os negros eram muito mais educados. George Orwell certa vez citou a frase “oversexed, overpaid and over here” só para acrescentar:
“O consenso geral é que os únicos soldados americanos com maneiras decentes são os negros”.
O Exército não queria isso, e mesmo antes das tropas chegarem instruiu os ingleses a impor medidas de segregação estilo Jim Crow, coisa que não caiu bem nos ouvidos bretões. Por mais que seja uma ajuda bem-vinda, o visitante querer impor suas regras é algo muito arrogante.
Quando as medidas não foram tomadas e os soldados brancos tiveram que conviver com negros nos estabelecimentos das cidades, o exército insistiu que segregação fosse aplicada. Os donos dos pubs concordaram e começaram a colocar cartazes em suas portas: “Blacks Troops Only”
O Exército rapidamente deu pra trás “também não é assim”, e acabaram tendo que aceitar brancos e negros dividindo os mesmos espaços, e muita briga começou por causa de cenas assim:
Não é que os ingleses não se achassem melhores que os negros, eles se achavam melhores que todo mundo, incluindo os americanos brancos, e sendo donos de um Império Multiracial, eles acaaram aceitando bem mais facilmente a idéia de integração racial, tanto que tiveram seu primeiro prefeito negro em 1913, John Archer, que governou Battersea, cidade com respeitáveis 167 mil habitantes.
Em 1943 essa integração foi acelerada mais ainda com a chegada dos educados soldados negros, um deles chegou a comentar:
“Eu sou tratado de tal forma que um homem só percebe que é de cor quando se olha no espelho”
Em um caso um soldado negro foi visitar uma família inglesa, ele reparou que estavam extremamente preocupados com seu conforto, colocando almofadas em todo canto. No final da noite ele conseguiu que os anfitriões explicassem o motivo da preocupação. Um oficial americano branco havia dito a eles que negros tinham… caudas.
Em outra situação dois soldados brancos tentaram forçar dois negros a se levantar em um ônibus, para dar lugar a eles. A motorista subiu nas tamancas:
“Vocês não podem fazer ele tipo de coisas aqui. Não temos isso por aqui. Ou vocês viajam de pé, ou descem”
Eles foram de pé.
No próprio pub a tensão racial era constante, Gillian Vessey, uma garçonete na época se recorda de que tinha que peitar soldados brancos que exigiam que fossem servidos primeiro que os negros.
Ironicamente a confusão que resultou na Batalha de Bamber Bridge começou quando uma garçonete se recusou a servir dois soldados negros.
Não foi racismo, Já havia dado 22 badaladas notúrnicas, e depois que o pub toca o sino, não rola mais cerveja. É a regra para todos. Os dois soldados começaram a discutir, alguém chamou a Polícia Militar, e a confusão foi armada. Os policiais brancos chegaram cheios de amor pra dar, amor é aquele negócio aplicado com cacetetes, certo?
Vendo a agressividade dos policiais, que queriam levar os soldados em cana, o povo no bar protestou, impedindo a prisão. Os policiais voltaram com reforços, começou a pancadaria e um soldado negro foi atingido de raspão no pescoço. Na confusão a maioria voltou pra base, o 1511th Quartermaster Truck, uma unidade de logística composta primariamente de soldados negros.
A boataria começou a rolar dizendo que os policiais estavam atirando em soldados negros. Algumas viaturas apareceram, uma delas com uma metralhadora. Assustados os soldados negros correram para o arsenal e pegaram em armas.
Pausa, “pegar em armas” sempre me lembra esta imagem sensacional:
OK, voltando.
Parte da população local apareceu para apoiar os soldados negros, que se aquartelaram no quartel, lugar excelente para um bom aquartelamento, diga-se de passagem. Mandando os civis se abrigarem, bloquearam a entrada da base, com os policiais militares do lado de fora.
Como os PMs não eram exatamente a nata da força militar, e os soldados negros não tinham muito treinamento e experiência com armas, o tiroteio era mais esporádico. A noite escura não ajudou, e só por azar mesmo o soldado negro William Crossland foi alvejado e morreu.
A batalha só acabou por volta de 4AM, com quatro feridos, um morto e um monte de gente presa.
Não era de interesse do Exército dar muita publicidade pro caso, havia o medo da idéia se espalhar e mais tropas negras se rebelarem. Houve uma corte marcial, mas por fora fizeram uma limpa nos oficiais brancos.
Havia uma tendência a tratar as tropas negras como unidades de última categoria, os oficiais brancos eram mandados para elas como punição, a disciplina era uma droga por causa do comando, que era um lixo. Isso tudo foi levado em conta e corrigido. Oficiais racistas foram removidos, e a moral das tropas negras subiu bastante.
Quanto aos amotinados, foram julgados duas vezes. Ao final do segundo julgamento entre 35 réus, sete foram inocentados, o resto pegou sentenças entre 3 meses e quinze anos de cadeia, mas o Presidente do Tribunal apelou por clemência, usando como argumento a baixa qualidade dos oficiais brancos que comandavam as tropas, ofensas racistas proferidas pelos policiais militares e a situação como um todo.
Ao final as sentenças foram reduzidas ou comutadas, em um ano boa parte dos soldados haviam voltado para suas unidades, a maior sentença que alguém serviu foram 13 meses.
A Batalha de Bamber Bridge foi um dos vários incidentes que forçaram o fim da segregação nas forças armadas, que veio a ser oficializada em 26 de Julho de 1948, quando contrariando o conselho de um monte de gente Harry Truman emitiu a Ordem Executiva 9981.
Mais importante do que o fim da segregação nas forças armadas, a experiência dos soldados negros mostrou a eles como era viver em uma sociedade onde eram tratados como gente, esses 400 mil soldados voltaram para casa e deram de cara com a boa e velha segregação de sempre, mas não era algo que podiam mais considerar normal, um fato da vida.
Estava nascido o germe dos protestos pelos Direitos Civis, que culminaria em 1963 na Marcha em Washington por Empregos e Liberdade, onde Martin Luther King, Jr faria seu discurso “Eu tenho um sonho”.