Eu já deixei claro que amo Jornada nas Estrelas, é uma série que me faz pensar, me emociona e me deixa esperançoso em relação ao futuro, Jornada já pregava diversidade antes dos floquinhos millenials serem um brilho nos olhos da mamãe. Tudo, de drogas a racismo e interação ciência/religião foi discutido em Jornada nas Estrelas, por isso eu estranhei quando “fãs” chilicaram dizendo que a lacração estava ameaçando a série.
Eu entendo que as pessoas desconfiem do novo, nerds odeiam mudança. Toda série nova de Jornada era vista com desconfiança, mas sem o ódio raivoso de hoje em dia. Quando Star Trek: Discovery foi lançada o chilique por causa dos klingons foi imenso, um monte de gente reclamando horrores afinal “klingons não eram assim”. Bem, eles não eram como você se acostumou, também. Antes do padrão-Worf os klingons da série clássica eram basicamente mongóis (no bom sentido).
As acusações de gente de fora (eu sei, a Falácia do Verdadeiro Escocês, etc) de que Discovery seria uma série lacradora por ter uma mulher negra como protagonista foram ridículas. 26 anos atrás Deep Space Nine era estrelada por um comandante negro, e 2 anos depois estreava Voyager, com uma mulher no comando.
Jornada sempre esteve adiante da turma da lacração, a Madge Sinclair fez a primeira mulher capitã em Jornada nas Estrelas IV, e
para fazer o combo ela ainda era negra. E isso foi em 1987, mas se quiser chutar o pau da barraca, em uma época em que mulheres eram basicamente adereço de cena Gene Roddenberry colocou Majel Barrett como a Número Um no primeiro piloto de Jornada nas Estrelas, em 1966.
Mas e Discovery?
A primeira temporada teve um começo bem fraco, todo mundo parecia muito disposto a abandonar os ideais da Federação, e nenhuma das viagens de exploração e discussão filosófica comuns na franquia deram as caras. Michael era uma protagonista antipática, ela é chata, ela não quer estar onde está, ela faz merda e não aprende, mas lacração?
O máximo de lacração da primeira temporada foi o drama do engenheiro com o doutor, e sinceramente em Jornada nas Estrelas qualquer drama de casal, gay ou não é um porre, só serve para quebrar o ritmo. E Discovery não inovou, não quebrou tabus. Buffy em 1997 já mostrou um casal gay com personagens que ao contrário de Discovery todo mundo se importava e torcia por elas.
Enquanto Discovery patinava na linha temporal mais dark de todas, Orville cumpria o papel de série derivada de Star Trek com episódios discutindo questões sociais. Discovery mostrava uma casal gay em DR constante que se servia de exemplo de um relacionamento homoafetivo, era mais que justificativa pra terapias de cura gay. Orville? Mostrava o Bortus.
Bortus é um Moclan, ele vive na Orville com seu companheiro, Klyden, e embora eles sejam ambos machos, não é um casal gay, pois na espécie deles não existem fêmeas.
Moclans são uma espécie de um único gênero, mas muito, muito raramente nasce uma fêmea. Para evitar que ela tenha uma vida isolada e desprezada pela sociedade, assim que a criança nasce ela sofre uma cirurgia de redesignação sexual e é educada como menino.
Quando isso aconteceu com a filha de Bortus a situação se complicou. Contaminado com a experiência multicultural a bordo da Orville, Bortus foi convencido a manter sua filha como menina, mas contra sua vontade seu companheiro leva a criança para o planeta natal, e ela acaba sendo operada.
Foi um brilhante episódio onde os mocinhos perderam, e toda a questão da transsexualidade foi apresentada e discutida sob um ponto de vista alienígena, mas perfeitamente entendível.
Por tudo que vi de Discovery inclusive em um ótimo episódio da segunda temporada onde eles descobrem uma sociedade de humanos primitivos e não revelam suas identidades achei que eles estariam trabalhando no modelo clássico.
A tripulação é tão diversa etnicamente quanto nas séries antigas, e a Capitã/Imperadora Georgiou, da maravilhosa Michelle Yeoh, não só chuta bundas em Discovery como ganhará uma série própria. Uma japa* de 56 anos estrelando um seriado de ficção científica na TV americana, quer mais diversidade ou tá pouco?
*eu sei
O que causou estranheza MESMO foi isto:
Pois é. Enfiaram um sujeito de cadeira de rodas em Star Trek. Pior, tem um também na nave da Seção 31, o grupo secreto radical implacável mas que por algum motivo se tornaram campeões da acessibilidade.
“Ah Cardoso você odeia cadeirantes qual o problema? Estão dando visibilidade a uma minoria pipipi popopó”
Eu explico:
Em Jornada nas Estrelas ninguém usa óculos, reparou? Nem ninguém morre de câncer. Jean Luc Picard tem um coração artificial. Worf tem uma coluna artificial que foi centro de um episódio ÓTIMO onde se discutiu a ética da Eutanásia.
Jornada nas Estrelas representa o melhor de nós mesmos, o melhor futuro que podemos almejar, uma utopia onde não há mais pobreza, fome, ganância, um tempo onde a Ciência debelou a maioria das doenças, um mundo que estamos aos poucos criando, com notícias como a vacina contra o HPV ter reduzido em NOVENTA POR CENTO os casos de câncer de útero na Escócia.
Jornada nas Estrelas é Leonard McCoy de passagem tratando os rins de uma paciente de diálise com uma pílula, e achando um absurdo. “Diálise? Estamos na Idade Média?”
Hoje pacientes com diabetes vivem vidas normais, 200 anos atrás eles não existiam pois estariam mortos, a nada glamourosa injeção rotineira de insulina seria indistinguível de mágica naquele tempo. Jornada nas Estrelas É esse tipo de mágica.
Ao mostrar tripulantes de cadeira de rodas Discovery está negando todos os avanços da medicina nos próximos 300 anos. Está dizendo a todo mundo confinado a uma cadeira de rodas que não é para ter esperança, VOCÊS NUNCA VÃO ANDAR NOVAMENTE E TODO MUNDO NAS MESMAS CONDIÇÕES FICARÁ NESSA CADEIRA PELOS PRÓXIMOS 300 ANOS!
Pior, nem tecnologicamente a cadeira vai evoluir muito.
Esse tipo de “visibilidade” infelizmente funciona na mente dos millenials, tipo este:
“O personagem tem uma deficiência e está tocando sua vida, não é o foco, ninguém está fazendo disso um espetáculo”
Está, o problema é que está. 1385 likes provam que estão, e isso não é Star Trek.
Se essa linha for seguida daqui a pouco teremos a Tilly fazendo greve ao descobrir que as engenheiras da Frota Estelar ganham menos que os homens, e alguém vai chamar a Michael de “nigger”, dando início a uma trilogia sobre conflitos étnicos na Discovery.
No Século XXIV nós já deixamos para trás todos esses problemas, cacete. Somos melhores que isso. Jornada nas Estrelas é a utopia de Gene Roddenberry e Martin Luther King e Leonard McCoy.
Colocar personagens de cadeiras de rodas, ainda mais sem contexto é ótimo para ganhar pontos com a lacrosfera, mas vai contra tudo o que a série prega. E não, a série não é contra usuários de cadeiras de rodas, eles só são raríssimos em um futuro onde a tecnologia cura a maioria das doenças, mesmo assim tivemos alguns exemplos, quase todos personagens com doenças terminais, ou o Capitão Pike, totalmente paralisado e queimado.
Ironicamente quando aparece em The Cage ele é colocado na única sala em todas as séries de Jornada nas Estrelas com uma porta convencional com maçaneta.
Jornada nas Estrelas não ignora a existência de cadeirantes nos Século XX e XXI, só não vê sentido em colocá-los no Século XXIV, nem por isso ignora suas histórias.
O truque é que usaram metáforas e analogias, ao invés disso trata a questão de forma brilhante no episódio Melora, o 6o da 2a temporada de Deep Space Nine.
No episódio a Alferes Melora Pazlar, a primeira de sua espécie a entrar para a Frota Estelar vai até a Deep Space Nine para uma série de estudos científicos. Ela vem de um planeta com baixíssima gravidade, então a gravidade artificial de 1g da estação é quase intolerável.
Alterações são feitas onde possível, com instalação de rampas, enquanto isso o Dr Bashir usar os replicadores para criar uma cadeira de rodas, algo que a Alferes Dax comenta não ter viso em uns 300 anos.
Melora chega andando com ajuda de um exoesqueleto e uma bengala, e com muito esforço caminha até a cadeira, recusando com rispidez ofertas de ajuda.
Durante todo o episódio ela se mostra uma mulher decidida, inteligente, obstinada mas extremamente na defensiva, pois ninguém a vê, só a cadeira.
No dia seguinte pela manhã o Comandante Sisko, a Tenente Dax e o Dr Bashir estão discutindo a missão, quando a Alferes Melora chega e reclama de terem começado sem ela, e os acusa de estar discutindo o “problema Melora”.
Sisko diz que não estão falando sobre ela, Melora diz que não entende a presença do Dr. Dax explica que ele é a pessoa que mais conhece as capacidades de Melora, que fica compreensivelmente puta. “Eu não preciso de uma opinião médica para me dizer quais as minhas capacidades”.
Melora reclama, dizendo que não quer ser tratada como alguém doente.
MELORA
Eu simplesmente objeciono ser tratada como alguém doente.
SISKO
Eu não estou vendo ninguém fazer isso.
MELORA
Tente sentar na cadeira, Comandante. Ninguém entende até sentar na cadeira.
Melora fala das dificuldades em apenas ser normal, ela só quer viver sua vida e fazer seu trabalho, mas as pessoas a tratam como doente, ou como alguém inferior, digna de pena. O Dr Bashir começa a entender a postura defensiva de Melora, e um clima começa a rolar.
Logo eles estão jantando juntos, e Melora o lega para seus aposentos, onde o Chefe O’Brian configurou os geradores gravitacionais para simular a baixa gravidae do planeta natal de Melora, que mostra ao Doutor como flutuar pelo cômodo. A cena termina com eles se preparando para experimentar várias posições do NASA Sutra.
Bashir acaba desenvolvendo um tratamento de neuroestimulação que pode adaptar os músculos de Melora à gravidade normal da Deep Space Nine, ela inicia o tratamento mas descobre que não poderá mais voar em baixa gravidade, andar no resto da Federação tem o preço de nunca mais poder voltar a seu planeta natal.
Ao final do episódio Melora aprende a ser menos defensiva, mas ao mesmo tempo não abre mão de sua identidade, não deixa de ser quem é, ela entende que andar a faria uma estranha em seu próprio lar.
Melora foi escrito pro Evan Carlos Somers, um roteirista de Deep Space Nine que por acaso era cadeirante:
As dificuldades de Melora andando na Estação foram todas tiradas da própria experiência de de Somers, quando ia visitar as filmagens e NADA era adaptado. Ele colocou suas próprias experiências na personagem, sem fazer algo óbvio, sem coitadismo e sem negar os princípios básicos de Star Trek.
É um episódio memorável, mas de longe o único de Jornada nas Estrelas que trata de deficiências. Só para lembrar a Enterprise do Picard tinha um cego como engenheiro-chefe:
O arco de cabelo mágico de LaForge o davam superpoderes, mas ele não tinha visão normal, e isso sempre foi um ponto dramático para o personagem. Era forte o suficiente para os espectadores entenderem sem que alguém colocasse um sujeito com um cachorro e uma bengala em uma nave estelar do Século XXIV.
No episódio Loud as a Whisper, da Nova Geração (S02E05) a Enterprise está levando Riva, um diplomata/mediador com habilidades lendárias para mediar um conflito entre duas raças. Ele é surdo, mas se comunica através de um “coro”, dois homens e uma mulher que mantém um elo telepático e agem como sua voz.
Infelizmente um dos grupos em conflito arma um atentado e mata o coro, de uma forma brutal, traumatizante para uma série voltada para o público jovem, e claro que eu tenho que mostrar senão ninguém acreditaria no que passavam na TV nos Anos 80:
Com as vantagens de ser um androide, o Tenente Data aprende em alguns segundos a complexa linguagem de sinais usada por Riva, e Data serve de intérprete para ajudar o Mediador.
Picard se oferece para tentar resolver a disputa, mas é uma situação muito complexa, e ambos os lados só confiam em Riva. Depois de conversar com a Conselheira Troi, Riva desiste de abandonar o projeto e decide usar suas desvantagens como uma estratégia.
Como nenhum dos dois lados é capaz de entendê-lo, eles terão que aprender a linguagem de sinais, o que levará anos e nesse meio-tempo os dois lados terão que trabalhar juntos com Riva.
Ele pede que a Enterprise o deixe no planeta, onde ele inicia o longo processo de ensino.
Conclusão
A lista é enorme, eu poderia passar o dia aqui citando episódios de Jornada nas Estrelas cobrindo todos os temas “lacradores”, incluindo o episódio em que um membro (epa!) de uma espécie assexuada conhece o Comandante Riker, se apaixona por ele, começa a desenvolver características femininas e é presa por isso, pois é um crime em seu planeta-natal. Ou quando a Doutora Crusher se apaixonou por um Trill, que é um simbionte alienígena que vive em um hospedeiro humanóide, mas o trill teve que trocar de hospedeiro e foi para uma mulher, e a Dra Crusher admite que “não está acostumada a esse tipo de mudanças” e acaba desistindo do relacionamento.
Jornada nas Estrelas é uma franquia que deixou sua marca na História do entretenimento por discutir questões sérias e atuais através de metáforas e alegorias. Quem o faz de forma óbvia e direta perde a relevância quase imediatamente, e faz mais do mesmo.
50 anos atrás, em Let That Be Your Last Battlefield, Jornada nas Estrelas mostrou o ridículo do racismo com duas espécies alienígenas que eram cópias espelhadas uma da outra, mas que se achavam “A” raça superior. Hoje um millenial só consegue ver blackface no episódio.
Discovery tem potencial de ser uma excelente série, e a segunda temporada está impecável, mas se continuarem com a lacração imediatista, correndo para atender grupos militantes, trocando a filosofia e a promessa de Star Trek por “visibilidade”, correm o risco de virar uma excelente série de ficção científica, mas não uma série de Jornada nas Estrelas.
Resta saber é se serão lembrados daqui a 50 anos. Eu não apostaria nisso.