Desde os blogs morreram e o foco do Contraditorium mudou para cobrir mais História do que Blogosfera conhecemos um bom número de felasdaputa, gente de caráter duvidoso, casos mais complicados aonde gente ruim fazia coisas boas, verdades inconvenientes envolvendo escravidão na África, o não todo fofinho Japão, o racismo sistemático nos EUA, a Rosa Parks que foi escolhida por marketing, etc.
Raramente é abordado um sujeito como Leopoldo II da Bélgica, e em tempos aonde o nazismo é trivializado e virou sinônimo de todo mundo que o Izzynobre não gosta, eu afirmo de forma inédita: Hitler era melhor que Leopoldo em todos os quesitos, exceto no de ser o cara que matou Hitler.
Claro, para entender como chegamos a isso, precisamos passear pela história da África, colonização europeia, Liga das Nações, Escravidão Árabe, com um pouquinho de tecnologia e mulheres fodásticas.
1 – Armando o Cenário
Ao contrário do que o pessoal metido a supremacista gosta de acreditar, A África tem uma longa história de impérios e civilizações, e parte da renda desses impérios vinha da venda de escravos, principalmente o Tráfico Árabe de Escravos, cujos primeiros registros são do ano 614 e só foi acabar por volta de 1900, embora informalmente tenhamos hoje 9.2 milhões de pessoas no continente vivendo em condições de escravidão.
Com a chegada dos europeus os reinos começaram a depender mais e mais da escravidão como renda, se acostumaram com o monopólio, aí quando o bom-senso prevaleceu e a Europa decidiu que escravizar humanos não era uma coisa boa, houve revoltas e tráfico ilegal entre os reinos africanos, e Zanzibar só aboliu de vez a escravidão em 1897. Isso oficialmente, claro.
Sem sua fonte de renda os reinos se tornaram alvo fácil dos europeus, sempre atrás de expandir territórios e recursos, como se o mundo fosse um grande tabuleiro de War. (dica: ele é)
Com a desculpa de que a África era um imenso shithole que precisava desesperadamente ser civilizada, a Europa literalmente loteou o continente, que até o começo do Século XIX tinha pouca presença europeia, em geral ilhas desabitadas e entrepostos comerciais para compra venda e leasing de escravos.
Essa percepção começou em 1876 com a Conferência Geográfica de Bruxelas, organizada pelo Rei Leopoldo II da Bélgica. Sim, até a Bélgica estava de olho na África, e olha que eles nem são um país de verdade, são só um lugar inventado para que ingleses e alemães tenham aonde resolver suas diferenças.
No final da conferência foi criada a Associação Africana Internacional, uma “ong” que pretendia “explorar e civilizar” a África Central. A associação era uma empresa de fachada para os interesses de Leopoldo, que prosseguiu com missões em busca de marfim, fincando o pé na região do Congo, com obras “humanitárias”, ao menos no papel, já que se a internet daqui é ruim, a do Congo em 1880 era pior ainda e dificilmente alguém conseguia fazer uma live.
Em 1885 aconteceu a Conferência de Berlim, em Berlim (só pra ficar claro) quando a Europa organizou a exploração do continente africano, com divisão de territórios e colônias entre os participantes.
2 – The Congo is on the Table
Uma das consequências foi a criação do Estado Livre do Congo, um nome irônico para um país… privatizado. A região foi cedida a Leopoldo, não como Rei da Bélgica, mas Leopoldo pessoa física. Ele investiu uma considerável parte de sua fortuna, e o governo da Bélgica colaborou com outra parte maior ainda.
Quando a indústria automobilística começou a crescer, houve uma súbita demanda por borracha, e Leopoldo aumentou a quantidade de concessões, nas quais empresas pagavam a ele pelo direito de explorar borracha no Congo. A maior demanda também fez com que as empresas exigissem mais produtividade dos funcionários, que não tinham nenhum direito. Não havia polícia, tribunais, hospitais, nada.
Vilas que não cumpriam suas cotas sofriam punições. As empresas empregavam a Force Publique, uma milícia formada por tribos locais para controlar a população e aplicar punições, que podiam ir de açoitamento público a massacres de vilas inteira, como exemplo para outras comunidades.
As empresas decretavam morte dos que não cumpriam suas cotas, mas não confiavam nos soldados da Force Publique. Havia a suspeita que muitos soldados ao invés de matar os preguiçosos, estavam usando sua munição, que era cara e contada, para caçar. O problema foi resolvido exigindo que trouxessem u’a mão do morto, como prova de que ele havia morrido.
Os guardas, que eram bem espertos, aprenderam que ao invés de se embrenhar no mato atrás de um funcionário fugitivo, podiam ir para uma aldeia, passar o facão nos habitantes e voltar com a quantidade de mãos suficientes para preencher sua cota.
3 – A maré começa a virar
Essas histórias e muitas outras foram contadas por jornalistas e viajantes, como George Washington Williams, veterano da Guerra Civil americana, pastor, político jornalista e historiador negro. Em 1890 depois de visitar o Congo ele publicou uma carta aberta ao Rei Leopoldo II, descrevendo em detalhes 14 atrocidades que testemunhou, de famílias inteiras sendo fuziladas a estupros coletivos.
Leopoldo respondeu dizendo que era tudo Fake News, e que estavam tentando impedir que ele fizesse a Bélgica grande novamente. Incrivelmente, colou, mas ele não contava com outra tecnologia em crescimento, comandada por esta velhinha aqui:
Alice Seeley Harris era uma inglesa, missionária que para azar de Leopoldo, também era uma nerd, e seu hobby hig-tech era a fotografia.
De 1901 a 1905 ela e o marido moraram em uma missão no Congo, aonde eles ficaram horrorizados com as atrocidades promovidas pelas empresas seringueiras. Em um dos casos, talvez o mais famoso dois homens chegaram na missão pedindo ajuda. Por não cumprir sua cota eles foram punidos; seguranças da Anglo-Belgian India Rubber Company mataram vários parentes dos dois.
Um dos homens trazia em uma bolsa feita com folhas as mãos e pés de sua filha, arrancados a facão pelos soldados da firma. Sua esposa também foi morta no processo.
Horrorizada, Alice pediu ao homem para fotografá-lo. Depois dessa ela fez muitas outras imagens, que foram publicadas em jornais da Europa e dos Estados Unidos.
Na presença de provas irrefutáveis, o nascente movimento humanitário se fortaleceu. No Reino Unido Edmund Dene Morel era uma força formidável publicando artigo em cima de artigo, viajando pelo país e fazendo apresentações que, com ajuda das imagens de Alice e outros fotógrafos, convenceram o público e foram aos poucos conscientizando a opinião pública internacional.
Foi a primeira campanha mundial de Direitos Humanos, e em 1908 depois de muita pressão Leopoldo perdeu a posse da República Livre do Congo, que foi encampada pelo governo Belga, tornando-se uma colônia. As empresas foram expulsas ou tiveram novas regras de funcionamento para impedir atrocidades, mas o dano já estava feito.
Metade da população do Congo havia morrido, entre 1885 e 1908. Alguns estimam 10 milhões de vítimas, entre mortes causadas diretamente por atrocidades e mortes por fome, epidemias, exaustão, etc.
Há discussão se a República Livre do Congo caracteriza um genocídio, mas há um elemento de crueldade que a torna algo pior. Hitler ao menos se importava com os judeus, ele os considerava uma ameaça. Os turcos genocidaram os armênios por causa de espaço, Stalin matou milhões no Holodomor para provar que o comunismo funcionava. Leopoldo e seus amigos não.
Eles simplesmente não se importavam. No paraíso ancap que era o Congo, a população era vista como menos que humanos. Eles não tinham sequer o luxo de serem vistos como escravos, não eram valiosos o bastante nem para ser propriedade. Alguns eram vendidos pelas milícias, mas para outras tribos, os europeus não se importavam.
Quanto a Leopoldo, ele não saiu de mãos vazias. Entre indenizações diretas e compensações por obras na Bélgica que ele fez com dinheiro do Congo, Leopoldo recebeu do governo belga quase 100 milhões de Francos Belgas. Quanto dá isso?
Um Franco Belga equivalia a 4,5g de Ouro. Isso equivale hoje a U$250. Ou seja, Leopoldo II recebeu uma indenização de US$25.000.000.000 em valores atuais.
Antes de entregar o país Leopoldo ordenou que fossem destruídos todos os registros envolvendo-o com o Congo. “Eles não têm o direito de saber o que eu fiz lá”, teria dito.
Leopoldo II morreu em 1909, sem nunca ter se desculpado ou assumido qualquer responsabilidade pelas atrocidades no Congo. Ele na verdade sequer chegou a colocar os pés no país.
Até hoje a Bélgica também nunca se desculpou ou reconheceu responsabilidade no genocídio. A imagem do Rei é bem positiva entre a população, ele é visto como explorador e -sério- humanitário, por seus esforços contra o tráfico árabe de escravos.
Yes, crianças, essa não teve final feliz.
Fontes:
- The Childhood of Human Rights: The Kodak on the Congo – Journal of Visual Culture (2006) – Sharon Sliwinski
- King Leopold’s ghost – Adam Hochschild
- GEORGE WASHINGTON WILLIAMS’S OPEN LETTER TO KING LEOPOLD ON THE CONGO
- Berlin Conference (1884): Colonialism, New Imperialism, Portugal, Otto Von Bismarck, Chancellor of Germany, Scramble for Africa, Autonomy – rederic P. Miller, Agnes F. Vandome, John McBrewster
- European Atrocity, African Catastrophe: Leopold II, the Congo Free State and its Aftermath – Sir Martin Ewans, Martin Ewans