Quando um almirante fofoqueiro salvou o pescoço de um marinheiro salvador de vidas

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Voar na Batalha da Inglaterra, desembarcar na Normandia, brigar com Rommel no deserto, tudo isso era atividade perigosa na Segunda Guerra, mas nada, nem mesmo pilotar bombardeiros sobre a Alemanha era tão perigoso quando servir em submarinos.

A taxa de mortalidade era na faixa de 20%. De cada 5 tripulantes, um não voltava para casa. Os motivos eram vários, de acidentes a ataques inimigos, houve até um submarino afundado pelo próprio torpedo, mas talvez o pior motivo para perder um tripulante era uma doença séria, no meio do oceano, sem possibilidade de resgate.

Com 288 submarinos no mar durante a Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos não chegaram perto dos alemães, que construíram 1162 U-boats, mas mesmo esses 288 consumiam mais recursos do que a Marinha dispunha, principalmente no campo de pessoal.

USS Silversides no final de sua construção.

A Marinha não tinha como colocar um médico em cada submarino, então a maioria se virava com um “farmacêutico”, nome dado na época para um tripulante com um treinamento mais ou menos como um paramédico hoje em dia.

Eles eram capazes de lidar com primeiros socorros, extrair dentes, aplicar injeções, diagnosticar problemas, mas nada mais complicado do que isso. O que foi péssimo para o bombeiro George M. Platter, do submarino USS Silversides.

Em Dezembro de 1942, partindo de Brisbane, Austrália, o Silversides estava em sua 4ª Patrulha, bem dentro do território japonês, quando George Platter começou a se sentir mal. Thomas Moore, o farmacêutico a bordo logo reconheceu os sintomas de apendicite, e percebeu que George só piorava.

Logo ele pediu para falar com o capitão, o lendário Creed Burlingame, que era uma mistura de James Kirk com Marko Ramius. O prognóstico era severo: Se nada fosse feito o apêndice iria supurar e George Platter iria morrer.

George Platter e Thomas Moore

Havia duas opções: Reverter o curso e rezar pro apêndice aguentar até lá, ou operar George ali mesmo. Thomas nem de longe era médico, com apenas 23 anos de idade, mas ele havia sido aprendiz em um hospital e auxiliou como enfermeiro em várias cirurgias. Ele estava razoavelmente confiante de que conseguiria fazer a cirurgia.

O Capitão consultou os mapas e registros, atrás de navios aliados na região que tivessem melhores instalações médicas, mas não havia nenhum. O jeito foi explicar para George as opções.

O pobre marinheiro de 19 anos não tinha muita escolha, então aceitou a cirurgia.

Refeitório do Silversides. Não exatamente espaçoso.

Correndo contra o tempo, Thomas Moore organizou uma sala de cirurgia improvisada no refeitório, aproveitando as mesas de inox, mais fáceis de esterilizar. Como o paciente era maior que a mesa, uma tábua de passar foi colocada na ponta pra suportar os pés dele.

Voluntários foram escolhidos para auxiliar na cirurgia. O capitão teve a idéia de submergir o Silversides, mesmo com as baterias ainda não plenamente carregadas, pois a 150 pés de profundidade (45 metros) era muito mais fácil manter o submarino estável, e caso algum japonês aparecesse, não precisariam fazer um mergulho de emergência.

Thomas, se lembrando de tudo que tinha observado nas outras cirurgias, aplicou uma dose de anestesia na espinha do colega, e usando um bisturi de seu kit médico, fez a primeira incisão.

Os equipamentos eram limitados. Thomas não tinha separadores cirúrgicos, então com ajuda de outros tripulantes e provavelmente Uri Geller, entortou algumas colheres para usar como quebra-galho.

Um marinheiro com uma câmera fotográfica documentou a cirurgia!

Como penicilina ainda era extremamente cara e experimental, o que havia disponível era sulfa, em tabletes, que Thomas triturou até transformar em pó, e era usada para polvilhar o campo cirúrgico, enquanto examinava o intestino do paciente, atrás do apêndice.

Quando ele achou o órgão (apêndice é órgão?) estava aderido ao intestino, mas com paciência Thomas Moore conseguiu descolar, isolar e remover o apêndice intacto.

Nessa hora George Platter, que estava acordado, comentou que conseguia mover os dedos dos pés, e estava sentindo Thomas mexer “em suas tripas”. Quando a anestesia começou a perder efeito mesmo, George pediu pra alguém bater na cabeça dele com algo pesado, mas Thomas tinha um plano B: Éter.

O problema é que ninguém tinha idéia de como usar o anestésico, então ao invés de colocar um pano sobre o nariz e a boca do paciente, e ir pingando aos poucos, derrubaram um monte de éter, enchendo a sala de vapores. Os auxiliares começaram a ficar tontos, no submarino inteiro o cheiro era sentido. O que não era bom, visto que éter além de tudo é inflamável.

A insígnia do Silversides.

Por sorte Thomas conseguiu controlar a situação, e voltou para a cirurgia, quando percebeu um sangramento. George estava com uma hemorragia interna, que se não fosse localizada e detida, seria morte certa.

Thomas começou a examinar sistematicamente os intestinos de George, são sete metros de tripa, e ele repassou várias vezes, pois não conseguia achar a origem da hemorragia, até que viu que havia cometido um erro bobo: A origem era um vaso na incisão, que não havia sido tamponado direito. Uma simples sutura resolveu.

Verificando mais uma vez o apêndice, pra ver se nada havia se rompido, Thomas colocou tudo de volta e fechou a incisão. A cirurgia estava completa depois de quase cinco horas.

George foi transferido para uma cama, Thomas ficou a seu lado acompanhando seu paciente. Nesse momento as baterias do Silversides estavam só no cheiro, e o Capitão decidiu emergir, era a manhã de 23/12/1942, mas apenas uma hora depois um destróier japonês apareceu no horizonte, e eles tiveram que fazer um mergulho de emergência.

O destróier chamou um avião, que lançou cargas de profundidade. O Silversides sofria ataques simultâneos, desviando de torpedos. As explosões das cargas de profundidade danificavam equipamentos e jogavam os homens de um lado para o outro. George Platter foi arremessado de seu beliche, mas Thomas estava lá para segurá-lo.

Durante um dos ataques enquanto o Silversides mergulhava uma explosão danificou seus hidroplanos, travando-os em posição de submersão, colocando o barco em uma descida descontrolada, que só foi estabilizada a 100 metros de profundidade. O máximo que o Silversides havia sido testado e certificado era 90 metros.

Quando a situação se acalmou e ninguém acreditava que tinham sobrevivido, era 25 de Dezembro, e o Capitão resolveu presentear a tripulação; usou seu estoque de “uísque medicinal” e mandou a cozinha produzir uma versão de eggnog, aquela bebida horrorosa que americano toma no natal, usando leite enlatado e ovos em pó.

Platter por sua vez em seis dias estava recuperado, todo faceiro andando normalmente.

O USS Silversides fez 15 patrulhas no Pacífico, afundando 23 navios totalizando 90 mil toneladas. É o terceiro no ranking. Em todas essas missões ele só perdeu um tripulante.

Quando voltaram para o porto, a notícia se espalhou, e o Corpo Médico da Marinha ficou puto quando soube. Chamaram o farmacêutico Thomas para uma comida de rabo. Ele não estava autorizado a realizar cirurgias, e deveria ter feito “outra coisa”, sendo que ninguém explicava que outra coisa seria essa.

Thomas Moore só queria salvar seu amigo, nunca pensou em medalhas, mas não sabia que ao invés de reconhecimento seria acusado de comportamento irresponsável, e se tornaria alvo de represálias.

Quando o Corpo Médico começou a discutir que punições aplicaria, o Almirante Chester Nimitz achou que tinham ido longe demais.

Ele tecnicamente não poderia interferir em assuntos do Corpo Médico, mas tinha uma carta na manga: Ele vazou para a imprensa a história, enfatizando o heroísmo do jovem farmacêutico.

Link para a matéria. Cuidado, PDF.

Quando a história começou a pipocar nos jornais, com repórteres entrevistando cirurgião e paciente, o povo do Corpo Médico ficou sem ação; se eles punissem o jovem marinheiro, a opinião pública pediria suas cabeças.

Muito a contragosto eles deixaram pra lá, emitindo um comunicado que futuras operações estavam proibidas sob quaisquer circunstâncias.

No total foram feitas três apendicectomias de emergência em submarinos americanos durante a Segunda Guerra, no USS Silversides, USS Seadragon e USS Grayback.

Ambos os marinheiros, Thomas e George viveram longas e produtivas vidas. O USS Silversides sobreviveu à guerra, foi transformado em unidade de treinamento, depois abandonado. Quando estava em avançado estado de deterioração, voluntários resolveram recuperar o barco, e depois de arrecadar dinheiro suficiente, começaram o trabalho.

Hoje o Silversides é a principal atração de um museu que leva seu nome em Muskegon, Michigan. Ele foi restaurado às suas condições originais, seu equipamento está tão bem preservado que ele tem capacidade de sair navegando, se necessário.

O Comandante Burlingame viveu até os 80 anos, vindo a falecer em 1985, com o posto de Contra-Almirante, e a sensação de dever cumprido ao ter tomado a decisão correta e colocado a vida de seu tripulante na frente de sua missão.

Capitão Burlingame. Tem como não confiar?

Fontes:



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