A comida de boiola que fez os soldados americanos chorarem

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No texto anterior nós vimos como a necessidade fez com que um grupo de aviadores Macgyverizasse uma máquina de fazer sorvete em uma ilha do Pacífico. Em verdade foi um caso raro mas não único. Na Europa vários aviadores descobriram que se eles pegassem um pote com mistura pra sorvete, ovos, leite e aromatizantes e colocassem no compartimento do artilheiro de ré nos bombardeiros, na volta da missão a temperatura de -50C e o sacolejar do avião teriam transformado tudo em um delicioso sorvete.

O fato é que americanos adoram sorvete. Em consumo per capita eles só perdem para -acredite se puder- a Nova Zelândia1. E não é de hoje. Sorvete é consumido nos EUA desde o final do Século XVIII, mas estourou mesmo com a Lei Seca, quando milhares de bares perderam seu principal produto. A solução foi transformar o estabelecimento em um lugar que vendesse produtos como sorvete e refrigerante. Deu certo,

Em 1922 as cem mil lanchonetes espalhadas pelos EUA venderam o equivalente a US$15 bilhões, corrigindo pela inflação. Boa parte era sorvete. Mesmo com o fim da Lei Seca o amor do americano médio por sorvete não desapareceu, isso ficou tão associado ao país que durante a Segunda Guerra Mundial alguns olhavam de lado para o sorvete. Na Itália Mussolini simplesmente proibiu sua venda, por ser “americano demais”. No Japão o Imperador não tentou impedir a venda mas baixou um decreto reduzindo o preço a ponto de não ser mais lucrativo pra ninguém vender sorvete.

Parece muito com a campanha contra conteúdo “lixo e degenerado” feita pelos nazistas, que levaram ao rápido banimento de todas as histórias em quadrinhos na Alemanha da Segunda Guerra2. Há uma imensa ironia nos nazistas terem como alvo principal o Super-Homem, acusando-o de ser uma criação de dois judeus “física e intelectualmente circuncisados”, sendo o personagem batizado em referência ao Übermensch, figura idealizada por Nietzsche e “emprestada” por Hitler.

No começo os militares não davam muita prioridade ao sorvete, mas os soldados logo deram um jeito. As histórias são muitas, como contado no livro Chocolate, Strawberry, and Vanilla: A History of American Ice Cream, de Anne Cooper Funderburg3:

Localização geográfica não afetava a demanda dos soldados por sorvete, que era comido tanto no ártico quando nos trópicos. Soldados no ártico misturavam leite em pó, ovos, açúcar, água e baunilha em uma vasilha, iam para fora das barracas e enquanto um segurava a vasilha o outro misturava os ingredientes. Com a temperatura ambiente de -40 graus (não sei se Célsius ou Farenheit4) em cinco minutos o sorvete estava pronto.

Engenheiros da marinha nas ilhas do Pacífico construíram uma máquina de sorvete com tubulação de um avião, engrenagens de um motor japonês, o motor de arranque de outro avião japonês, um pequeno motor à gasolina e outras partes encontradas pela área.

Na África do Norte, outra unidade construiu um freezer usando equipamento abandonado, incluindo um motor alemão, engrenagens italianas e partes de um trator americano. Em Novas Hébridas (hoje Vanuatu)  um soldado lotado em uma loja da marinha convenceu um oficial de suprimentos a aceitar um jipe em troca de uma máquina de fazer sorvete. Ele começou a incrementar criando sabores diferentes, e foi um sucesso. Tanto que em 1945 ele fundou sua própria sorveteria. O nome do soldado era Burton Baskins. A sorveteria é a Baskin-Robbins, que hoje existe em 50 países com 7500 lojas.

Uma das máquinas improvisadas, em Bouganville.

Mesmo em situações desastrosas o sorvete tinha efeitos incríveis na moral. Quando o porta-aviões USS Lexton foi afundado pelos japoneses os marinheiros aguardavam o resgate no convés, comendo sorvete servido pelos taifeiros. Vários inclusive atacaram a cozinha na hora que soaram abandonar o navio, e encheram seus capacetes de sorvete. Apesar das terríveis explosões que mataram 216 tripulantes, durante o resgate nenhum dos 2735 sobreviventes foi perdido.

Em 1943 já era evidente que o sorvete tinha um efeito impressionante na moral das tropas, que vinham definhando. Entediados com as rações de combate, os soldados comiam cada vez menos; as rações foram alteradas para inclusão de balas, doces, Coca-Cola e… sorvete.

A ordem foi mudar isso, e a intendência do Exército se comprometeu a comprar equipamento e ingredientes para produção de 300 milhões de litros de sorvete anualmente, mesmo com os EUA em racionamento. Máquinas foram despachadas para todo canto onde houvesse uma base mais permanente, e mesmo pacotes de sorvete de 250ml eram entregues direto nas trincheiras.

O Almirante James Forrestal, Secretário da Marinha determinou que a distribuição de sorvete tivesse a mais alta prioridade, depois de ler que o sorvete era a mais negligenciada de todas as formas de elevar o moral das tropas. O investimento da Marinha foi tão a sério que eles chegaram a construir uma barcaça a um custo de US$14 milhões (corrigidos). Era uma fábrica de sorvete flutuante, em uma estrutura de concreto rebocada para o Pacífico, onde navios se reabasteciam de sorvete.

A única imagem da barcaça do sorvete

A barcaça era capaz de armazenar 7500 litros de sorvete geladinho e produzir 40 litros a cada 7 minutos.

Sorvete era prescrito por médicos como auxiliar na recuperação de pacientes, e para muitos era a única comida que conseguiam segurar no estômago. Um veterano se recorda:

“A melhor época que eu passei no hospital foi quando os Fuzileiros conseguiram uma máquina de sorvete. Nós misturamos os ingredientes e havia alguns camaradas com tanta saudade de casa que estavam quase chorando. Todo mundo queria girar a manivela. Havia tantos soldados que cada um só conseguiu comer uma ou duas colheradas de sorvete, mas foi a melhor coisa que comemos nas ilhas.”

Mesmo para os inimigos sorvete era importante. Günter Gräwe5 era um jovem alemão de 18 anos, ferido por uma granada na Normandia, capturado e levado para um campo de prisioneiros de guerra nos EUA, mais precisamente no Estado de Washington.

Ele se recorda de que foi bem-tratado, estranhando tanta carne e vegetais nas refeições, mas o grande momento foi quando economizou dinheiro para… fazer um lanche. Os prisioneiros podiam trabalhar colhendo batatas e algodão em fazendas próximas, ganhando o equivalente hoje a US$11,20 por dia.

Günter Gräwe em 2017 aos 91 anos visitando seu antigo campo de prisioneiros.

Gräwe conta que ficou olhando o cardápio, sem saber se pedia uma Coca-Cola, que nunca havia tomado, ou um sorvete, que havia anos que não comia. Contando as moedas, ele fez o lógico: Pediu os dois. Em casa sua família há muito não via esses luxos, racionados pela guerra.

O maior desafio do sorvete só aconteceu bem depois, mais ou menos uns dez anos depois, durante a Guerra da Coréia. O General Lewis B. Puller se recusou a servir sorvete para seus fuzileiros, escrevendo para o Pentágono dizendo que isso era ruim para as tropas pois sorvete era “comida de boiola” e que seus homens deveriam ser servidos de produtos americanos másculos, como whiskey e cerveja.

A história veio a público, a opinião popular ficou totalmente contra o General, e os veteranos do Pentágono que se lembravam de todo o bem causado pelo sorvete na Segunda Guerra não pensaram duas vezes: Emitiram uma ordem para que todas as tropas -incluindo as de Puller- recebessem porções de sorvete pelo menos 3 vezes por semana.


Bibliografia e Fontes

1 – Ice Cream Consumption Per Capita Around The World – Business Insider, 2013

2 – “Smut and Trash:” A Brief History of Comics Censorship in Germany –   Caitlin McCabe –  2016

3 – Chocolate, Strawberry, and Vanilla: A History of American Ice Cream – Anne Cooper Funderburg

4 – EU SEI.

5 – Former German POW says, ‘Thank you, America’ – Ruth Kingsland – 2017



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