Felizmente o mundo civilizado (vocês não, países com pena de morte para gays) anda muito mais tolerante, e hoje um sujeito pode entediar a gente com histórias do namorado do mesmo jeito que uma amiga falando do namorado, com o agravante da gente ter que ouvir sem esperanças de pegar o sujeito. Não, isso não saiu como eu imaginava, nota, reescrever.
O lado ruim é que com mais tolerância diminuem as causas, antigamente em alguns lugares como os EUA coisas inimagináveis como o voto feminino eram causas que demandavam (corretamente) passeatas e campanhas. Hoje a base da maioria das campanhas envolve não-discriminação na sociedade civil, o que é por si só um grande avanço.
Chegamos ao ponto aonde o foco é fazer com que as pessoas não sejam escrotas com quem é diferente, significa que não precisamos fazer mais campanha para não jogarem as ghey do alto de prédios, e o simples fato de você se ofender mais com meu “as ghey” do que com o fato DO ISIS JOGAR PESSOAS DE PRÉDIOS POR SEREM GAYS já demonstra seu privilégio e condição confortável de minoria em um país minimamente civilizado.
A redução das causas faz com que tenhamos… Rebeldes sem causa, com link pra banda do Roger pois sei que isso irrita os floquinhos. A militância então passa o dia atrás de mínimos deslizes, procurando gente para cancelar, e como toda estrutura totalitária, quando não acham um deslize, inventam alguma coisa.
A moda agora é patrulhar atrás de uso de “expressões problemáticas”, como ontem, uma iluminada fez um mea-culpa se autoflagelando por ter usado a expressão “canela de pedreiro”, em referência a uma garrafa de cerveja estupidamente gelada com uma camada de condensação que lembra o pó de cimento na canela de um pedreiro no final de um dia de trabalho.
Basicamente 100% dos pedreiros do planeta reconhecem a expressão, a maioria usa e 0% consideram ofensiva, mas os lacradores em seu delicioso racismo do bem internalizado acham que pela garrafa ser escura naturalmente a expressão se refere a negros, ergo todo pedreiro é negro e como pra eles, do alto de suas faculdades de humanas pedreiro não é uma profissão digna, é ofensivo chamar um negro de pedreiro.
Só que não é esse o ponto do texto de hoje. O ponto é esta bobagem aqui postada pela Vivo, em seu tesão desregrado de lacrar forte, pois em 2020 o cliente não mais tem sempre razão, o cliente agora tem que receber lições de moral e comportamento de CNPJs eticamente superiores.
A maioria das expressões “racistas” vem do fato do militante moderno, que já é imune a metáforas, ser imune também ao estranho conceito de que uma palavra pode ter mais de um significado, e termos como “preto” poderem significar mais de uma coisa.
Claro, há casos até cômicos, quando cismaram que Black Friday tinha esse nome por causa de uma promoção de venda de escravos, provavelmente na Escravas Bahia, mas a pior de todas essas bobagens envolve este móvel aqui:
O nome disso é criado-mudo. Não é exatamente uma novidade. A novidade é que alguém inventou uma lenda urbana sobre a origem do termo, e é hilária, que foi popularizada por uma versão na página da Etna, mas vou linkar pro Ponto Frio que não tem essas frescuras:
Em 1820, os escravos que faziam os serviços domésticos eram chamados de criados. Alguns desses homens e mulheres passavam dia e noite imóveis ao lado da cama com um copo d’água, roupas ou o que mais fosse.
Porém, alguns senhores achavam incômodo o fato de eles falarem, e muitos chegavam a perder a língua. Outros sofreram duras punições para “aprender” a nunca se mexer quando houvesse alguém dormindo.
Um dia, surgiu a idéia de uma pequena mesinha para ficar ao lado da cama, usada basicamente para apoiar objetos. Esse móvel exercia a mesma função do escravo doméstico e foi chamado de criado. Então, para não confundir os dois, passaram a chamar o móvel de criado-mudo.
Se você se der ao trabalho de procurar vai encontrar um monte de variações, a maioria focando no fatídico ano de 1820, quando aparentemente o Brasil Colonial inventou o Criado-Mudo. Todas elas exigem um total desconhecimento de história, etimologia e bom-senso. Então, vamos lá.
Primeiro de tudo, a etimologia de “criado”. Vem da Europa Feudal, aonde os camponeses mandavam seus filhos para serem criados pelos nobres, em troca de serviços domésticos. Nenhum desses filhos eram negros, eram europeus pobres fornecendo mão de obra para europeus ricos. Mesmo europeus menos ricos mandavam os filhos para a alta nobreza, na condição de criados.
No mundo angloparlante criados eram chamados de house servants, que é diferente de servo, servo é mais punk, servo vem do latin “servus”, “escravo”, que poderiam ser comprados e vendidos e eram essencialmente propriedade dos senhores feudais,mas como a maioria era branco a gente ignora pois não ajuda na Narrativa certo companheiro?
“Criado” nunca foi um termo exclusivo para negros, principalmente em Portugal, de onde veio.
Segundo, é prepóstero que alguém acredite que a Raça Humana, em toda sua inventividade só tenha tido a brilhante idéia de colocar uma mesinha do lado da cama no final do Século XIX. Se ao menos a Ciência pudesse nos ajudar…
Ops, ela pode.
Em Roma já havia mesinhas do lado da cama e dos sofás usados para refeições e uma sonequinha abanada por escravos, afinal ninguém é de ferro. Aqui a reprodução de um Biclinum, um conjunto de sofás com mesinha de centro.
Podemos ir mais além no passado, pro povo que inventou a maioria dos móveis que usamos até hoje, e que são suspeitosamente modernos (aliens?): Os egípcios. Além das camas em si, e das cadeiras, os egípcios também tinham… criados-mudos. E bem bonitinhos, diga-se de passagem.
Como nossa sede e nossas bundas não mudaram nos últimos milênios, a necessidade de ter um móvel do lado da cama para colocar um copo d’água continua a mesma, e na idade média nada mudou, exceto que se popularizaram os criados-mudos com portinha e gaveta. Motivo? Veja esta foto:
Reparou que do lado da cama tem… um trono? Pois é, essa moça era rica, esse trono era nada menos que um suporte pro penico. Naquela época ainda não tinham inventado o conceito de banheiro, então quem era pobre tinha um penico no criado-mudo e se contorcia pra usar. Quem era rico tinha uma cadeira com furo no meio e um criado pra recolher o penico e jogar o conteúdo pela janela.
A tal mesinha de cabeceira também era popular em lugares como mosteiros, assim os monges podiam colocar suas bíblias e seus castiçais, e ler à noite. Ou então acender as velas e usar pra procurar onde o maldito sacristão tentou se esconder.
“Ah mas e o nome criado-mudo?”
Essa é interessante, pois há um cruzamento de informações. O termo “dumbwaiter” é anterior à maioria das mesinhas usadas na Europa, e se refere a algo completamente diferente, inventado em 200AC em Roma, provavelmente com outro nome.
Dumbwaiter significa literalmente garçom mudo, garçom silencioso. Dumb significa literalmente um sujeito incapaz de falar. Em outros idiomas é sinônimo de burro, deficiente intelectual. Não é um termo muito simpático.
O que era chamado dumbwaiter era um mini-elevador construído em casas ricas, levando a comida diretamente da cozinha para a sala de jantar. Como ele só levava e trazia os pratos, em silêncio, algum sujeito politicamente incorreto pensou “hurr durr é como um garçom, mas mudo”. Deu o nome dumbwaiter, e pegou.
Com o tempo o termo foi se espalhando, vieram as chamadas “dumbwaiter tables”, uma mesinha aonde a comida é colocada e as pessoas se servem, como se fosse um garçom mudo parado oferecendo os pratos. Sim, eu sei que soa idiota mas o pessoal do Século XVII e XVIII não era muito criativo nem respeitoso com a criadagem.
Logo o termo se separou dos mini-elevadores, e passou a ser usado para referenciar a mesinha na sala de jantar. No quarto a mesinha se chamava Night Table, mas como eram basicamente o mesmo móvel com nomes diferentes, por um tempo a Night Table também foi chamada de dumbwaiter, mas logo os modelos com portas se popularizaram, ele deixou de ser tecnicamente uma mesa e em 1852 pela primeira fez foi rebatizado de Nightstand.
Algum português bem-humorado ouviu o termo dumbwaiter, achou divertido, traduziu literalmente e o nome pegou, mas bem tarde. Ele sequer consta do Diccionario brazileiro da lingua portugueza, de Antônio Joaquim de Macedo Soares, publicado em 1889, o que é listado como “Banquinha que se põe junto à cabeceira do leito” é um negócio chamado… Donzella.
Donzella também aparece no Diccionario da Lingua Brasileira, publicado em 1832 e de autoria de Luiz Maria da Silva Pinto. Criado Mudo? Não consta.
A idéia de que senhores de engenho torturariam escravos, arrancando a língua deles pra depois colocar o sujeito de pé do lado da cama enquanto dormiam é… risível. É terrivelmente desumanizante, vende a idéia do escravo como uma casca de gente, sem nenhuma capacidade de rancor ou vingança, quando qualquer um, até a Escrava Isaura entraria em modo Full Django se tivesse a língua arrancada só pra não contar o que o patrão faz na cama.
Fora que a fofoca sempre corria solta, com as sinhás e as escravas trocando figurinhas o dia inteiro. Leiam menos Paulo Freire e mais Gilberto Freyre, seus arrombados.
A maior prova de que essa origem do termo “Criado-Mudo” é uma imensa bobagem é sua total inexistência na literatura etimológica pré-2015, se tanto. A “teoria” está começando a aparecer em papers de Humanas, usando como fonte outros papers de Humanas igualmente contemporâneos. Não é assim que se faz Ciência, não é assim que se combate opressão. A única resultante disso tudo é um monte de gente -eu incluso- fazendo papel de palhaço perdendo tempo discutindo por causa de uma mesinha idiota.
Fontes:
- Infopédia – Mesa de Cabeceira
- Diccionario da lingua portuguesa – Silva, Antonio de Moraes, 1755-1824 Edição : 8. ed. rev. e melhor.
- Diccionario da lingua brasileira – Pinto, Luiz Maria da Silva – 1832
- 1911 Encyclopædia Britannica/Dumb Waiter
- Merriam-Webster – Nightstand
- What is the History of Dumbwaiters?
- How the Ancient Egyptians Put Their Feet Up: – Furnishings in Ancient EgyptItalian Neoclassical Period Walnut Inlaid Commodino with Two Drawers, circa 1780
- The triclinium