O mundo do cinema é interessante; assim como mulher, ele também é de fases. Gêneros e temas vêm e vão. Houve uma época em que quase todo filme envolvia grupos de jovens vampiros ou lobisomens, e nem estou falando de crepúsculo, mas da praga vampiresca dos Anos 80 com Os Garotos Perdidos.
Faroestes eram a regra, depois saíram de moda ao ponto de Westworld virar nostalgia.
Em termos de estilo e histórias, tivemos a época dos heróis solitários, a dos grupos em filmes de ação, e o formato clássico da dupla de dois tiras, que se odeiam mas se amam ao mesmo tempo. Sem baitolagem, claro, estamos nos Anos 80, os gays ainda não tinham sido inventados.
Nesse tempo todo um grande contraste esteve sempre presente: De um lado a turma do cinema-arte, cinema-cabeça, do cinema que não liga pra orçamento, bilheteria, essas bobagens (desde que o salário do Diretor esteja em dia) e que se preocupa em passar uma mensagem.
Do outro lado temos o cinema comercial, que quer (e precisa) ganhar dinheiro, afinal é uma indústria, não uma ONG vivendo de doações. Aí entra a clássica frase de Samuel Goldwyn, o G da MGM:
“Se você quer mandar uma mensagem, use os Correios”
Depois que o cinema foi inventado pelos irmãos e candelabros Auguste e Louis Lumière, a invenção seguinte foi o ingresso de cinema. Eles cobravam para exibir seus filmes, as plateias pagavam alegremente para ver filmes sobre o dia-a-dia parisiense, locomotivas, histórias curtas. Com o sucesso de seus filmes, os irmãos Lumière mandaram expedições pelo mundo, para exibir filmes e filmar a vida local, que por sua vez se transformavam em novos filmes.
Quando Thomas Edison inventou a pirataria, roubando os filmes de Georges Méliès e exibindo-os em cinemas nos EUA, George ficou furioso não pelo roubo de sua obra em si, mas pela perda financeira.
Por décadas cinemas eram atrelados aos estúdios, os donos forçados a comprar filmes ruins em pacotes para ter acesso a filmes populares. Ironicamente esses filmes ruins, como não tinham obrigação de atrair público, caíam na mão de cineastas iniciantes.
Eles serviam de escola para diretores e técnicos, que tinham liberdade para experimentar, desde que respeitassem o orçamento.
Com o tempo, o povo do teatro e da literatura parou de torcer o nariz para o cinema. Começaram a se interessar por aquela nova forma de arte, e nasceu o filme artístico, o filme de autor. O cinema intelectual, de baixo orçamento, o cinema de festivais e folhas de louros nos cartazes.
Em alguns lugares o chamado cinema de arte é financiado pelos grandes estúdios. Hollywood adora bancar pequenas produções e festivais como Sundance, fundado em 1978 pela produtora do Robert Redford.
O que não dá, é claro, é para comparar cinema de arte com cinema comercial. Eu sempre brinco que não assisto filme de país sem luz elétrica ou água encanada, mas não é 100% brincadeira. Eu não tenho mais paciência pra filme cabeça, cheio de sofrimento e mensagens sociais. Outro dia vi um trailer de um filme afegão, acho, sobre um garotinho que foi pra cidade atrás de seu bode e zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
Oh desculpe, onde estava? Pois é. Eu gosto de filme com coisas que explodem, e a maioria das pessoas concorda comigo, o que irrita a turma dos filmes-cabeça, dizem que somos alienados, que aquilo não é cinema de verdade, pipipi popopó.
Martin Scorsese jogou gasolina no fogo declarando:
“Isso não é cinema. Honestamente, o mais próximo que posso pensar deles, por mais bem feitos que sejam, com atores fazendo o melhor que podem dentro das circunstâncias, é em parque de diversões. Não é o cinema de seres humanos tentando passar emoções, experiências emocionais para outros seres humanos”.
Primeiro de tudo, pau no seu cu, Scorsese.
Em segundo lugar, Rubens Barrichello.
Em terceiro, não passam emoções? Tony Stark descobrindo que o Soldado Invernal matou seus pais, o funeral de Yondu, Thor reencontrando a mãe em Endgame, O Aranha do Andrew Garfield se redimindo perante a si mesmo, ao salvar a MJ do Holland. Tem 20 anos de pura emoção na expressão dele, e a reação da platéia mostra que passa sim, emoção.
A emoção está lá, é só buscar, mas muito antes de Scorsese. É o ano 1995, e a Marvel ainda está terminando de produzir seu primeiro filme para o cinema: Howard the Duck. Mesmo assim o cinemão já incomoda a turma do filme cabeça.
É o ano de Hackers, Apollo 13, Waterworld, Congo, Batman Forever, Mortal Kombat, Braveheart, Bad Boys, GoldenEye, Crimson Tide, Judge Dredd, Força em Alerta 2 e muitos outros blockbusters.
Na Dinamarca dois diretores, Lars von Trier e Thomas Vinterberg decidem dar um basta nisso, e trazer de volta o cinema moleque, o cinema de várzea, o cinema raiz, sem preocupações com bobagens como dar lucro e agradar ao público.
Eles querem que o cinema volte a contar histórias, focadas em atores, sem distrações. Escrevem uma série de regras para que o filme se enquadre no manifesto que eles chamaram de Dogma 95. Algumas delas:
- A filmagem deve ser feita no local. Adereços e cenários não devem ser trazidos ou montados. (se um adereço em particular for necessário para a história, deve-se escolher um local onde esse adereço seja encontrado).
- O som nunca deve ser produzido separado das imagens ou vice-versa. (Música não deve ser usada a menos que ocorra onde a cena está sendo filmada.)
- A câmera deve ser de mão. Qualquer movimento ou imobilidade alcançável na mão é permitido.
- O filme deve ser colorido. Iluminação especial não é aceitável. (Se houver pouca luz para a exposição, a cena deve ser cortada ou uma única lâmpada deve ser anexada à câmera.)
- Efeitos ópticos e filtros são proibidos.
- O filme não deve conter ação superficial. (Assassinatos, armas, etc. não devem existir.)
- A alienação temporal e geográfica é proibida. (Isso quer dizer que o filme se passa aqui e agora.)
- Filmes de gênero não são aceitáveis.
- O formato do filme deve ser Academy 35 mm.
- O diretor não deve ser creditado.
Bizarro, não? São regras mais rígidas do que documentários, e excluem basicamente todo filme já feito que não foi uma peça de teatro filmada, e ao ar livre. É curioso como decidem que os filmes devem ser coloridos. Eles querem voltar aos velhos tempos mas não tão velhos.
Também há o clássico efeito sojado dessa turma proto-lacradora. Não gostam de armas ou assassinatos, crimes, etc. O que era bom para Shakespeare pelo visto é intenso demais pras sensibilidades modernas.
Então vejamos: O filme tem que ser filmado em locação, sem adereços externos, sem iluminação e com captação sonora direta. Sem trilha sonora. Não pode ser musical, noir, faroeste, comédia, romance, não pode nada.
O resultado? No total foram feitos 35 filmes sob o Dogma 95, antes de todo mundo perceber que era uma imensa bobagem e só estavam dando uma desculpa intelectual para fazer filmes com orçamento de geladeira.
O Movimento, claro, não era levado a sério nem pelos seus criadores. O PRIMEIRO filme do Dogma 95, Festen, de Thomas Vinterberg teve uma cena onde o diretor cobriu uma janela com uma toalha para alterar a iluminação da cena. Lars Van Tiers violou as regras em vários filmes também.
E como eram esses filmes? Bem… Julien Donkey-Boy, de 1999 contava a história de um garoto esquizofrênico e sua família desajustada. Violou várias vezes as regras, mas ainda assim ganhou certificado de Dogma 95. Aqui o trailer:
No mesmo ano Star Wars: Episódio 1 faturou o equivalente em valores de 2022 a US$1.82 bilhões. Já Julien Donkey-Boy, bem… US$142.688,15.
Cinema é espetáculo, não faz sentido criar regras arbitrárias pra forçar o cinema a parecer com teatro, sendo que o próprio teatro se esforça para escapar das paredes e transportar a platéia para cenários grandiosos.
É possível fazer filmes intimistas? Com toda certeza, há grandes filmes com poucos cenários. Dr Strangelove, Casablanca, se resolvem com 4 ou 5 cenários e olhe lá. Há filmes ótimos com pouquíssimos atores, Gravity é um bom exemplo.
Gravity aliás é um ótimo exemplo de como efeitos visuais não limitam o cinema. Pelo contrário. Efeitos visuais permitem que você conte mais histórias, passadas em tempos e terras distantes, restrito somente por sua imaginação.
Não faz sentido um cineasta renunciar a uma ferramenta que amplia seus horizontes, imagina Os Dez Mandamentos sem efeitos visuais, ou praticamente todo o cinema indiano sem música. O cinema expressionista alemão sem iluminação artificial.
O Dogma 95 inviabilizaria obras-primas de Charlie Chaplin e Buster Keaton, junto com o clássico Le Voyage dans la Lune, de Georges Méliès.
Cinema existe para ampliar horizontes, não para restringir criatividade. Fora com o Dogma 95, e viva o cineasta que pensa fora da caixa, imaginando sequências incríveis que deixam o espectador maravilhado, como essa fantástica tomada contínua no filme Soy Cuba, de 1964, dirigido por Mikhail Kalatozov.
Dogma 95 foi um delírio de gente que faz filmes chatos e que não entende que pessoas vão ao cinema para se divertir. No final Dogma bom mesmo é o 99, que nos rendeu Alan Rickman como um anjo sem pinto e Alanis Morissette como Deus.