Lamento informar mas queimar livro não tem nada de nazista

Compartilhe este artigo!

Em 26 de Outubro de 1948, na cidadezinha de Spencer, West Virginia ocorreu uma cerimônia nefasta: Depois de um mês recolhendo histórias em quadrinhos, crianças, supervisionadas e doutrinadas por adultos promoveram uma Fogueira Santa, queimando o que consideravam fruto de todo mal, devassidão, pederastia, sodomia e até gomorria -seja lá o que for isso-

A queima dos gibis foi consequência do pânico e histeria criados por um fillho da puta nefasto chamado Fredric Wertham, autor do livro “Sedução dos inocentes”, repleto de ciência ruim (mesmo pros padrões da psicologia) no qual ele concluiu que quadrinhos geram menores infratores depois de entrevistar menores infratores e descobrir que eles… liam quadrinhos.

Wertham chegou a proferir boçalidades como:

“Eu acho que Hitler foi um iniciante comparado à indústria de quadrinhos”

Uma bobagem total exceto se se referir ao tratamento dado aos judeus, especificamente Jerry Siegel e Joe Shuster, mas o resultado foi semelhante. Quadrinhos foram banidos de escolas, bibliotecas não mais os emprestavam, pais não compravam gibis para as crianças e para sobreviver a indústria criou, em 1954 o famigerado selo da Comic Code Authority.

O CCA foi basicamente um instrumento de censura “voluntária”, ao qual as editoras se submetiam. Revistas sem o selo de aprovação não eram vendidas em lojas, expostas em jornaleiros ou permitidas em vários lugares. Algumas gráficas se recusavam a imprimir gibis não-aprovados.

O tal código era o sonho de todo conservador e militante de esquerda, atendia os anseios de ambos os lados. Entre outras coisas ele determinava que:

  • Crime nunca deve ser apresentado de forma a criar simpatia para com o criminoso, promover desconfiança com as forças da Lei e da Justiça ou inspirar outros a desejar imitar os criminosos.
  • Em toda ocorrência o bem deve sempre triunfar sobre o mal e o criminoso punido por seus atos.
  • Cenas de violência excessiva devem ser proibidas. Cenas de tortura, uso excessivo de facas ou armas, agonia física ou crimes brutais devem ser eliminados.
  • Todas as cenas de horror, derramamento de sangue excessivo, depravação , luxúria, sadismo ou masoquismo não devem ser permitidas.
  • Profanidade, obscenidade, vulgaridade ou palavras e símbolos que tenham adquirido significados indesejados devem ser proibidos.
  • Nudez em qualquer forma é proibida, bem como atentado ao pudor.
  • Mulheres devem ser desenhadas de forma realista sem exageros de quaisquer características físicas.
  • Sedução e estupro nunca devem ser mostrados ou sugeridos.
  • Perversão sexual de qualquer tipo é estritamente proibida.

A lista é bem maior, mas já dá pra ter uma idéia.

Dezenas e dezenas de títulos de terror e crime, duas categorias visadas pelo CCA foram cancelados imediatamente. Os que sobreviveram foram amenizados, contribuindo para a infantilização das histórias. Por décadas a criatividade foi tolhida pelo Código, que muito aos poucos foi sendo abandonado pelas editoras, mas as grandes só o fizeram na virada do Século XXI. A Marvel abandonou o Comic Code Authority em 2001, a DC, só em 2011.

Esse fetiche pela censura continua até hoje. Para todo lado há igrejas e grupos militantes fazendo queima de livros. Ano passado um padre polonês promoveu uma queima de livros de… Harry Potter, por causa das mensagens de bruxaria e paganismo.

Essa preocupação em recolher, proibir e queimar livros não é de hoje, na verdade não é nem de ontem, é muito mais antiga. Faz tempo que os poderosos descobriram que nada é mais perigoso do que informação em mãos erradas, e até pouco tempo livros eram a maior e única forma de compartilhar informação.

Um livro pode abrir todo um novo universo, o leitor consegue vislumbrar um mundo de idéias, conhece o impossível, descobre outros como ele. Um livro expande nossos horizontes, nos mostra como vivem, pensam, amam e morrem homens de outras terras e outros tempos.

E isso é extremamente perigoso para o Status Quo. Quem está confortável no poder não quer mudança, e mudança é algo que livros adoram trazer.

Claro, quem tem medo de mudança é porque sabe que é indesejável ou substituível. São esses mais medíocres que mais se preocupam com livros, como o Governo do Estado de Rondônia, que mandou recolher 43 tíitulos enviados para as escolas estaduais, por não serem “adequados” a crianças e adolescentes. Entre os autores inadequados, Machado de Assis, Carlos Heitor Cony, Edgar Allan Poe e o notório subversivo Euclides da Cunha.

Quando a história explodiu, a imprensa foi atrás. Logo apareceu gente dizendo que o documento era falso, pois uma busca no sistema estadual não retornava como válido o identificador do ofício.

Em entrevista o Secretário de Educação de Rondônia, O secretário de Educação Suamy Vivecananda Lacerda de Abreu afirmou que era um caso de “fake news”. Beleza, acontece, em tempos modernos todo mundo falsifica tudo para atacar desafetos políticos, caso encerrado, certo?

Errado. Vazaram provas de que o documento ainda estava no sistema, mas em modo restrito. Depois de afirmar a vários jornalistas que o caso era fake, o tal secretário mudou a versão, disse que o documento era um “rascunho” que não havia sido enviado, sem perceber que 1 – continua sendo uma mentira descarada, coisa de gente baixa e sem caráter e 2 – dane-se que era um rascunho, alguém solicitou a composição do documento e pretendia enviar, ninguém pede a composição de um documento que não planeja enviar. Porra.

Agora a parte divertida: Rondônia é governada por Marcos Rocha, do PSL, à época partido do Ornitomito. Tecnicamente ele defende os mesmos ideais conservadores, se bem que pra ser conservador em Rondônia o sujeito tem que ser contra a novidade questionável da iluminação a gás.

Nota para os ofendidos: Azar, me cancelem.

Com a nossa polarização política insana e retardada, claro que imediatamente definiram que é tudo parte de um Grande Plano maligno de doutrinação da juventude, arquitetado por Jair Bolsonaro, a maior mente criminosa de nosso tempo, o Kanye West do Mal.

Não parando por aí, e com conhecimento de história restrito a Indiana Jones que viram na Sessão da Tarde (mentira, Netflix no ônibus) esta cena:

A gritaria foi imensa: Governador nazista Bolsonaro nazista querem queimar livros, projeto de dominação, etc, etc. Como sempre o pessoal se perde na hipérbole, esquecendo a chamada Navalha de Hanlon: “Nunca atribua à malícia o que pode ser adequadamente explicado pela estupidez”, e sim, eu estou dizendo que quem quer recolher livros em nome da moral e dos bons costumes é estúpido, não necessariamente um nazista, pois essa prática nem de longe foi originada ou restrita a nossos amigos do 3o Reich.

EM 2018 duas idiotas resolveram queimar uma pilha de livros que diziam ser velhos dentro do ginásio coberto da escola. Não foi um gesto de fascismo, foi um gesto de estupidez.

Já em 2008…

Aqui foi um gesto de estupidez E arrogância. A comunidade doou 400 livros para a criação de uma biblioteca, mas os responsáveis se acharam detentores dos valores morais, decidindo que revistas como Sabrina não eram literatura digna, e sim “obscena”. No pacote queimaram livros que diziam estar danificados, sem entender que um livro capenga é melhor que nenhum livro. Estupidez? Com certeza. Fascismo? Não chega a tanto.

Já essa imagem acima não tem nada de inocente. São as funcionárias de uma biblioteca em Zhenyuan, China, queimando 65 livros que foram identificados depois de uma busca pelas prateleiras. Eram livros religiosos, políticos, tendenciosos (ou seja: Não refletiam o viés do Partido Comunista) e obras banidas pelo Governo. A China vive uma censura permanente de todas as formas de expressão, e a queima de livros é só uma dessas formas de censura.

Nos EUA em 1953 o senador Joseph McCarthy em sua cruzada anticomunista conseguiu convencer o Governo a banir e queimar livros de autores comunistas, material controverso e qualquer coisa que promovesse comunismo, tanto das bibliotecas locais quanto das embaixadas.

Papai Stalin, aquele que o pessoal da esquerda diz que matou foi pouco, em 1948 resolveu resolver o problema judaico da União Soviética, e entre outras ações, queimou 40 mil livros da coleção judaica da biblioteca de Birobidzhan, no Oblast Autônomo Judaico, uma região na Sibéria para onde Stalin moveu à força a maioria dos judeus soviéticos.

eu sei.

Em 2015 o ISIS invadiu a biblioteca em Mosul, Iraque, e queimou 8000 livros raros e manuscritos inestimáveis, por não professarem as bobagens sobre o amiguinho imaginário de quem eles tanto gostam. Às vezes não é fascismo, não é medo de perder o poder, não é medo de educar o povo. Às vezes é pura maldade mesmo.

A lista de incidentes de queima de livros e bibliotecas inteiras é imensa, o artigo da Wikipedia não começa nem a arranhar a totalidade deles. Se nos restringirmos aos atos de governos autoritários sistematicamente erradicando conhecimento, lamento informar mas não foi o amigo rodonês (rondoniense? Rondoniano? Who cares?) do Bolsonaro quem começou a moda.

Sequer foi o Dória, que tem uma lista de livros proibidos nos presídios estaduais, curiosamente “Jailbreak for Dummies” não está entre eles. Também não foi o Crivella, a primazia cabe ao imperador Qin Shi Huang, que na China de 213 Antes de Cristo ordenou a queima de 460 livros de filosofia Confucionista, entre outros.

O objetivo era eliminar todos os registros históricos que não se encaixassem na Narrativa oficial, e súditos de posse de livros do poeta Shi Jing ou do clássico de História Shujing deveriam entregá-los às autoridades. Também estava proibido discutir os assuntos dos livros. Quem desobedecesse seria mandado para construir a Grande Muralha.

Curiosamente mesmo em todo seu despotismo, Qin Shi Huang ainda era mais racional que nossos governantes atuais, pois algumas categorias de livros estavam isentas da censura, eram os que ensinavam medicina, agricultura, agronomia e outras ciências. Ou seja: A China, ao contrário do Brasil, queima livros mas não queima seu futuro.



Compartilhe este artigo!