Anos antes do Lady Juliana, em 1770, James Cook descobriu um território no hemisfério sul. Ele batizou de Nova Gales do Sul, mas ninguém deu muita bola. Era longe bagarai, e não tinha nada de atraente para ser explorado. Tanto que o primeiro uso que o Império Britânico deu ao novo lugar, mais tarde chamado de Austrália, foi como colônia penal.
E isso mesmo só aconteceu em 1787. Nos primeiros dez anos ninguém ligava praquele território no fim do mundo, mas em 1776 uma guerra civil na América do Norte acabou com boa parte do comércio, e impediu que o Império Britânico mandasse navios com condenados para os EUA.
A necessidade de uma nova base no oriente fez que uma proposta de colonização surgisse em 1783, e logo ela foi adaptada para incluir o despejo de condenados. Um plano foi feito para enviar colonos, oficiais militares e condenados para a Austrália. O projeto envolveu 11 navios e 1420 pessoas. Foi a chamada Primeira Frota.
Lançada em 13 de maio de 1787 ela levou 1420 pessoas em uma viagem de 24 mil km, que durou 250 dias e na qual 47 morreram.
Alguns marinheiros levaram suas esposas e filhos, com intuito de se estabelecer como colonos, mas o grande contingente era de condenados. As condições não eram de navios negreiros, mas estavam longe de ser um cruzeiro no Eugênio C (minhas referências são bem antigas). Dos 47 mortos a maioria foi de prisioneiros, que tinham pouquíssima comida e cuidados médicos.
Só que os problemas não acabaram aí. O gado que foi levado morreu quase todo no caminho, os colonos tiveram problema com as plantações, que não vingavam, a maioria não tinha experiência com agricultura, o clima era todo errado e as provisões eram mínimas. Os nativos (compreensivelmente) não eram amigáveis, e acima de tudo, o cheiro de salsicha estava deixando todo mundo irritado.
A relação homem/mulher era pior do que num encontro de usuários FreeBSD, trekkers fãs de Senhor dos Anéis.
Uma conta rápida mostra 1121 homens, versus 193 mulheres condenadas. (Tirei da conta as 46 mulheres de marinheiros e seus esposos). Isso deixou os condenados subindo pelas paredes. Eles começaram a apelar pra bestialismo, pro Amor Que Não Ousa Dizer Sem Nome (baitolagem brotherística) e até pras mulheres aborígenes, que na maioria das vezes eram pegas à força.
Isso não agradou o povo de Londres, que percebeu que a Colônia não duraria muito tempo assim. Em 1788 foi decidido dar um jeito no problema, e um navio de 33 metros e 400 toneladas, Lady Juliana, foi escolhido para a tarefa.
As autoridades começaram a recolher prisioneiras condenadas, a maioria damas que trocam favores por dinheiro, mas havia mulheres de todo tipo, incluindo Mary Wade, uma menina de 13 anos que havia sido presa aos 11. Ela foi condenada à morte por enforcamento, pelo terrível crime de roubar um vestido de algodão, uma estola e um gorro de linho.
Para sorte de Mary, o Rei Charles III havia se recuperado de uma longa doença, e em comemoração comutou a sentença de morte de 26 mulheres, agora elas só teriam que passar 7 anos no exílio.
Foram precisos seis meses para organizar a viagem, planejar rotas, provisões e selecionar as 226 condenadas que seriam levadas para a Austrália, com o intuito de melhorar um pouco a relação homem/mulher na região.
Segundo o taifeiro John Nicol,
“todas as prisões na Inglaterra estavam [sendo] esvaziadas para completar a carga do Lady Juliana”
Isso acabou se tornando uma das mais fascinantes viagens da História. Existe uma tradição naval de que mulher a bordo dá azar, mas os marinheiros tiraram a sorte grande. 221 mulheres de reputação duvidosa, versus uma tripulação entre 20 e 30 homens? O Barril de Bordo deve ter ficado intocado.
As más-línguas chamavam o Lady Juliana de bordel flutuante. Os relatos dizem que imediatamente todos os marinheiros escolheram “esposas”, que eram paparicadas e tratadas como damas.
Claro, sempre havia marinheiros “solteiros”, e puladas de cerca eram normais, isso e mais o tédio fazia com que as moças fossem descritas como “barulhentas e indisciplinadas, com predileção por bebidas e brigas entre si”.
Mesmo assim, elas eram mais passageiras do que prisioneiras. Tinham acesso ao convés, amplo acesso a água e comida, e eram (compreensivelmente) muito bem-tratadas pela tripulação. O resultado é que das 221, somente 5 morreram durante a viagem de 309 dias.
Houve até quem achasse que o Lady Juliana tinha afundado, mas o Capitão Thomas Edgar apenas não estava com pressa. Tanto que após passar por Tenerife e Cabo Verde, o navio veio dar (epa!) no Rio de Janeiro, onde se reabasteceu com água e suprimentos, além de café e açúcar. Eles ficaram ancorados por CINCO semanas, durante as quais as moças que trocam favores por dinheiro trocaram favores por dinheiro com marinheiros de outros navios e a população local.
No Cabo da Boa Esperança, ficaram outros 19 dias, enrolando.
O Mestre de Bordo, que não era nada bobo, teve a idéia de comprar rolos de linho e instrumentos de costura. Ensinou algumas prisioneiras a costurar camisas, e conseguiu um bom lucro em Porto Jackson, vendendo a produção.
No final, o Lady Juliana saiu no zero a zero, pois as cinco mortes foram equilibradas pelos cinco nascimentos durante a viagem, fora os outros logo após a chegada em Sidney, em 6 de junho de 1790.
A maioria dos marinheiros seguiu a vida, uma mulher em cada porto, etc. Alguns decidiram ficar na Austrália. As mulheres foram designadas como servas de homens não-condenados, ajudando com hortas, serviço doméstico, etc. Algumas fugiram, outras permaneceram e foram a base da Austrália que vemos hoje.
Mary Wade deu à luz a Sarah Wader, em 1793, aos 15 anos. Casada com Jonathan Brooker, ela teve 21 filhos (7 vingaram, yay mortalidade infantil). Em 1812 ela terminou de cumprir sua pena, casou-se com Jonathan e tocaram a vida como colonos legítimos. Mary morreu em 1859, no dia de seu aniversário, aos 84 anos. A pequena ladra inglesa tinha 300 descendentes vivos e seu funeral foi o primeiro na Igreja da Inglaterra de São Paulo, Fairy Meadow, Nova Gales do Sul, construída em um terreno doado por um de seus filhos.
Sorte também teve Sarah Dorset, como conta John Nicol:
“Um dia”, diz ele, “tive a dolorosa tarefa de informar ao pai e à mãe de um dos condenados que a filha deles, Sarah Dorset, estava a bordo; eram pessoas de aparência decente e tinham vindo a Londres para perguntar sobre dela.
Quando os conheci, eles estavam em Newgate; o carcereiro os encaminhou para mim. Com lágrimas nos olhos, a mãe me implorou para dizer a ela se alguém assim estava a bordo. Eu disse a eles que havia uma com esse nome. O coração do pai parecia cheio demais para permitir que ele falasse, mas a mãe, com os olhos lacrimejantes, bendisse a Deus por encontrarem sua pobre filha perdida, desfeito como estava.
Chamei uma carruagem, dirigi até o rio e os coloquei a bordo. O pai, com passos trêmulos, subiu pelo costado do navio, mas fomos obrigados a colocar a mãe a bordo.
Levei-os para o meu beliche e procurei Sarah Dorset. Quando a trouxe, o pai disse com voz sufocada “minha filha perdida” e virou as costas cobrindo o rosto com as mãos, a mãe, soluçando, jogou as mãos em volta dela.
A pobre Sarah desmaiou e caiu aos pés deles. Eu não sabia o que fazer. Por fim, ela se recuperou e implorou seu perdão com a voz mais de partir o coração.
Ela era jovem e bonita e não estava há dois anos longe da casa de seu pai neste momento, tão curto foi seu curso de loucura e pecado. Ela não havia sido protegida pelo vilão que a arruinou por seis semanas e então ela foi forçada a ir para as ruas e apanhada como uma garota desordenada e então enviada a bordo para ser transportada.
Esta foi sua história curta, mas cheia de acontecimentos. Um de nossos homens, William Power, foi para a colônia quando sua pena acabou a trouxe para casa e se casou com ela.”
A Segunda Frota, que deveria trazer trabalhadores qualificados e suprimentos, chegou em 1790 aos pedaços. O tratamento dado aos prisioneiros foi terrível, dos 1006 condenados, ¼ morreram durante a viagem e em seis meses mais 40% faleceram por doença ou fome. A carga de doentes só piorou a condição da colônia, que só começou a se recuperar em 1791, com a Terceira Frota.
O Lady Juliana começou como uma piada, depois caiu numa espécie de delírio erótico masculino, 11 meses em um navio com 10 mulheres para cada homem, todas “fáceis”. As chances de morrer de Snu-Snu eram imensas. No final se tornou uma história edificante, a base de uma nação, e convenhamos, há antepassados bem menos honrosos do que uma moça obrigada a vender o corpo para sobreviver, ou uma garotinha condenada por roubar um gorro.
Fontes:
- Never a Dull Moment
- The Last Voyage of the Guardian, Lieutenant Riou, Commander, 1789-1791
- The Powell Family
- Chaos and order: Gender, space and sexuality on female convict ships
- History of New South Wales from the Records: Phillip and Grose, 1789-1794
- Lady Juliana
- The Lady Juliana And The New World
- Mary Wade