Bem antes do Videomaker, nos Estados Unidos, muitos cineastas começaram a descobrir seu amor pelo cinema ainda na infância, com a popularização das câmeras de 8mm, gente como Lucas, Spielberg, Copolla, todo mundo fazia seus filmes caseiros. Em 1965, com a chegada o Super-8, isso se popularizou mais ainda.
No Brasil, onde tudo é caro, infelizmente a maioria das crianças não tinha acesso a esse nível de tecnologia, mas mesmo assim o 8mm e posteriormente o Super-8 deram asas à imaginação de muita gente, em geral estudantes de cinema e entusiastas com dinheiro sobrando. Gente como Júlio Bressane, Rogério Sgarzerla, Fernando Spencer, Fernando Meirelles e outros fizeram muitos filmes experimentais em Super-8, influenciados pelo Cinema Novo, e nomes como Glauber Rocha, que com sua mercadologicamente irresponsável frase “Uma idéia na cabeça e uma câmera na mão” criou todo um séquito de seguidores.
Mesmo assim, cinema era coisa de nicho. Película custava caro, câmera custava caro, moviola pra montar os filmes custava caro, técnicos custavam caro, e a boca-livre da Embrafilme era quase toda pra turma do 16mm e pros figurões do 35mm.
Não era possível (ok, era mas não era barato) fazer filmes descompromissados, sair filmando sem um objetivo claro. Cada segundo de filme precisava ser revelado. Um erro de iluminação ou enquadramento e sua cena estaria perdida. E pior, você só descobriria dias depois, quando o filme voltasse do laboratório.
Eis que em 9 de setembro de 1976, tudo muda: A JVC lança o formato VHS, com capacidade de ler e gravar vídeo. As pessoas correram para gravar seus programas favoritos, os canais de TV e estúdios correram para processar os fabricantes, em uma briga que foi parar na Suprema Corte dos EUA.
Logo foram lançadas câmeras acopladas aos videocassetes, você podia filmar o que quisesse, desde que fosse na sua sala. Depois vieram os gravadores de vídeo portáteis, com baterias, e em 1983 a Sony lançou a primeira Camcorder, a BetaMovie.
Camcorder é o que chamamos hoje de… câmera. Ela vinha com todo o hardware para gravar o vídeo em uma fita, embutindo o gravador/player Betamax, sem precisar de uma unidade auxiliar.
Em 1984 saiu a JVC GR-C1, a primeira camcorder VHS-C do mundo. Você com certeza já viu uma dessas:
Sim, é a camcorder de De Volta Para o Futuro.
Do dia para a noite o custo de produção audiovisual caiu uma ordem de magnitude. Com uma câmera e dois videocassetes você montava uma ilha de edição básica em casa. Surgiu o movimento videomaker, com jovens em sua maioria, mas alguns cineastas das antigas também experimentaram com o formato.
Claro, do ponto de vista de hoje, onde qualquer celular minimamente decente filma em 4K, e há modelos que produzem vídeos em 8K, que basicamente ninguém tem nem TV pra tocar, a qualidade do VHS era uma lixo. Sendo justo, mesmo na época o VHS já era um comparado com o padrão broadcast, a TV SD, que também era uma bela merda.
Só que diante das possibilidades e da liberdade de produzir seus próprios vídeos sem depender de grandes estruturas, os videomakers se adaptaram. Imagens “ruins” passaram a fazer parte da estética, uma espécie de “videopunk”.
Tivemos dois grandes focos, na cena videomaker: A Olhar Eletrônico e a TVDO. A primeira deu casa para personagens históricos como Ernesto Varela, criação de Marcelo Tas e um dos primeiros praticantes de Jornalismo Gonzo, pegando jornalistas de calças curtas com perguntas inesperadas.
A Olhar Eletrônico tinha um foco mais mercadológico e profissionalizante, então cavou espaço na TV (eu ia escrever TV aberta mas não existia outro tipo). Em 1983 criaram o Olhar Eletrônico, quadro de variedades dentro do programa do Goulart de Andrade. Em 84 surgiu o TV Mix, na Gazeta, revelando nomes como Astrid Fontenelle, Cazé Peçanha e Soninha Francine. Em 98 foi a vez do Matéria Prima, na TV Cultura.
A TVDO tinha ambições comerciais, mas sua produção era mais alternativa, mais próxima da maioria dos videomakers, que curiosamente tinham uma relação conturbada com a Academia.
Existia uma visão nas faculdades de cinema que deveriam produzir somente Arte, sem ambições ou intenções comerciais, e arte na Universidade significava arte engajada, com muita denúncia e crítica social. Qualquer coisa fora isso era alienação burguesa.
Produzir vídeos às vezes “sem sentido” era desperdiçar recursos.
Essa animosidade entre os videomakers e os Verdadeiros Detentores do Audiovisual pode ser vista na clássica música “Rap do Vagabundo”, do Casseta e Planeta:
Estava no Alto da Boa Vista, a Patamo me parou para uma revista
Queria me levar por vadiagem. Eu disse: “Eu não faço curta-metragem”
Entrar no camburão foi humilhação prum cara com a minha formação
Aquela caçapa tava lotada de vagabundo que não faz nada
Eu faço vídeo! Vídeo! Eu faço vídeo!
Vagabundo é a puta que pariu!
Parece exagero, mas quando eu fazia Publicidade na UFF, uma vez em uma mesa de bar tinha um povo se apresentando, chegou até um que perguntado o que fazia, vez (juro) sinal de paz-e-amor com os dedos em V e soltou “Eu transo vídeo”.
Nesse mesmo curso eu fui acusado de querer promover “ensino tecnicista” a sugerir que a ilha de edição da faculdade de comunicação, que ficava ociosa, fosse usada para editar comerciais para anunciantes locais, produzidos pelos alunos, que ganhariam experiência prática.
Também na UFF, tive minha primeira e traumática experiência com a cena alternativa de vídeo. Um grupo chegou no bar, implorando pra gente ir pro auditório ver um vídeo que tinham feito.
Fomos. Apagam as luzes, começa o tal vídeo, que era TCC de um grupo, ou algo assim. Na tela, abre o título: “O Cu”.
JURO PRA VOCÊS!!!!
O filme se resumia a uma das alunas, pelada, de quatro em cima de uma mesa. Andando em volta, vestindo um jaleco de médico e uma peça de carne pendurada no pescoço (Chupa Lady Gaga, fomos pioneiros) um outro aluno discorria em um interminável monólogo sobre, obviamente, o cu, como fonte das ambições e contrastes humanos, bla bla bla…
Foram longos 15 minutos. No final um silêncio sepulcral encheu a sala, até que um amigo meu, um dos maiores pseudointelectuais frutos de botequim de faculdade que o mundo já concebeu, ficou de pé, começou a aplaudir efusivamente: GENIAL! GENIAL!
Em uma deliciosa ironia, enquanto os estudantes rejeitavam o vídeo, alguns cineastas estabelecidos o abraçavam. Arnaldo Jabor, em Eu te Amo (1981) colocou o personagem de Pereio como uma fanático por vídeo e câmeras, vários trechos do vídeo são entremeados por imagens em vídeo. Em Eu Sei Que Vou Te Amar (1986) ele usou a mesma técnica.
Já em termos de exibição, o pessoal do Cu era privilegiado. Todo videomaker tinha um problema que parece alienígena em tempos de YouTube: Eles tinham facilidade em produzir mas nenhum lugar onde exibir.
TV aberta (olha o vício) era inviável se você não tivesse QI, e mesmo assim a maioria do conteúdo era incompreensível ou inviável de ser veiculado.
Cinemas, nem pensar. A Lei do Curta só caiu em 1995, mas nem em sonho os videomakers conseguiriam vencer o Lobby dos cineastas e passar seus vídeos antes dos longas nos cinemas.
Explicando aos mais jovens: Desde 1932 os vários governos promulgaram Leis exigindo que antes de longas estrangeiros, fosse exibido um curta-metragem brasileiro, normalmente com tema histórico ou cultural.
Você ia ver Guerra nas Estrelas e tinha que aturar 20 minutos de documentário sobre rendeiras nordestinas ou folclore do Interior de Goiás. Isso acabou em 1995, mas desde então toda hora algum maldito político tenta empurrar a volta dessa prática nefasta.
O videomaker conseguia exibir seus trabalhos em eventos e exposições no Museu da Imagem e do Som, em SP, em exposições em galerias, festas e eventos alternativos, além de oficinas e encontros do underground paulista.
Isso criou uma retroalimentação que reforçou a estética urbana quase cyberpunk dos vídeos, com criadores influenciados por mais que Glauber Rocha, nessa época o videomaker consumiam quadrinhos, MTV, Liquid Television, e usavam uma amálgama dessas influências para contar suas histórias.
Um dos (sério) grandes exemplos foi a criminosamente subestimada (sério) Aventuras da Tiazinha, que foi ao ar entre 1999 e 2000. Era uma série totalmente Cyberpunk, com orçamento de conserto de geladeira, mas ambições gloriosas, e ganhará em breve um artigo próprio.
Obviamente não tinha espaço pra todo mundo exibir seus trabalhos, então rolava uma rede informal de gente criando vídeos e repassando as fitas para outros criadores e amigos, uma prática bem antiga, aliás.
O exemplo mais famoso dela é a paródia “Bátima – Feira da Fruta”, criada em 1981! por Fernando Pettinati e Antônio Camano, e repassada em VHS desde então. Pouquíssima gente conhecia, até que, com a chegada da Internet, ela foi disseminada, tornando-se o primeiro vídeo viral brasileiro.
A Internet
Essa foi a grande virada. Subitamente, não havia mais escassez de telas, havia um canal onde escoar a produção audiovisual, as pessoas podiam criar E exibir seu conteúdo, sem custos exorbitantes, sem depender de contatos nos órgãos certos.
Primeiro com as câmeras digitais amadoras, depois com os celulares, houve uma total democratização na produção de conteúdo audiovisual. Deixando Andy Warhol pra trás, agora todo mundo é um videomaker, e por muito mais de 15 minutos.
Temos casos de podcasts bem-sucedidos com centenas de milhares de assinantes que surgiram com gente gravando no cinema com um celular. Já deixou de ser notícia gente que salta do YouTube para o cinema ou a televisão, que por sua vez usa conteúdo gerado pela Internet, e não é de hoje.
David F. Sandberg, diretor de Shazam! e bem-cotado em Hollywood, produziu seu primeiro filme de verdade, Lights Out, em 2016. Recebeu US$5 milhões para a produção. O filme faturou US$150 milhões. Sandberg começou fazendo filmes de terror com orçamento de conserto de geladeira e distribuindo via YouTube.
Hoje temos uma profusão de criadores, produzindo vídeos de todos os tipos, formatos e durações, desde cenas de alguns segundos e gratificação imediata, a resenhas de horas explicando universos cinematográficos inteiros.
Estamos vivendo a Era de Ouro da produção audiovisual, algo inimaginável para o antigo videomaker, mas o Final Feliz é que muitos deles ainda estão vivos, ativos e acompanhando a maravilhosa época em que a tecnologia deu voz pra todo mundo. Só espero que as obras atuais sejam melhor-preservadas, boa parte do acervo dos Anos 80 se perdeu, ou está mofando em caixas, esperando ser digitalizado.