Depois de denegrir o criado-mudo, sobrou a inhaca

Compartilhe este artigo!

Calado militante, ou a militância te cancela também!

Uns dias atrás as interwebs pipocaram com mais uma polêmica: No programa da Ana Maria Braga um tal de Paulo Vieira, humorista de Tocantins, se é que isso existe (qual dos dois? Você decide) parou uma frase no meio para corrigir um deslize: Ele havia falado, sem-querer, um termo extremamente racista.

Não, nenhum desses. O termo terrivelmente racista que ele usou foi… “inhaca”.

“Tem uma correção que eu tenho que fazer. Minha família fala muito isso, mas sabia que inhaca é um termo racista? Eu falei agora e já estou me corrigindo. É um termo relacionado a um país, a um povo. Você acredita? Eu falei a minha vida toda e não sabia disso. Descobri recentemente e agora estou me policiando”

Ele continuou:

“Como as pessoas viviam em condições muito ruins, falavam que a pessoa estava fedendo a inhaca, fedendo a aquele país, aquele povo. A gente assimilou isso na nossa cultura, foi falando e é um termo racista. Eu também não sabia, falei aqui no impulso e estou me corrigindo aqui”

Que lindo exemplo, como ele é desconstruído, estou emocionado. E uma rápida pesquisa mostra que a Ilha da Inhaca realmente existe. Será então verdadeira a origem da palavra? Teríamos sido racistas por tanto tempo, sem saber? Nah, é só mais um caso de etimologia freestyle.

Ilha da Inhaca. Quem dera eu tivesse grana pra visitar esse lugar fedorento.

Uma rápida pesquisa no Dicionário da Porto Editora, retorna inhaca como “cheiro repugnante; fedor” no Brasil, e “rei; chefe supremo” em Moçambique.

Em Portugal, Inhaca é apenas Inhaca, um nome próprio. A pequena ilha moçambicana no Século XVI tinha uma dinastia de reis bem populares, um deles, de etnia Tsonga se chamava… Nhaca. Era conhecido por acolher náufragos portugueses, e acabou dando nome ao primeiro vilarejo da região, e mais tarde os portugueses começaram a chamar o lugar de Ilha do Nhaca, que com o tempo variou para Ilha da Inhaca, nome que existe até hoje.

Tratado do successo que teve a nao Sam Joam Baptista, e jornada que fez a gente, que della escapou, des de trinta e tres gravs no Cabo de Boa Esperança, onde fez naufragio, até Zofala, vindo sempre marchando por terra (sim, é o título), 1625, com “Inhaca” sendo usado no sentido de “líder”.

Não consta que ninguém lá (fora os escravos) vivesse em condições especialmente ruins. Em termo de cheiro ruim, como os europeus do Século XVI não eram exatamente campeões de higiene, dificilmente teriam moral (ou olfato) para reclamar do cheiro dos outros.

TODOS os dicionários de Portugal modernos apontam o termo inhaca como cheiro ruim como sendo de origem brasileira.

Curiosamente, após pesquisar nos dicionários:

  1. Diccionario da lingua brasileira – Pinto, Luiz Maria da Silva – 1832
  2. Diccionario da lingua portuguesa – Silva, Antônio de Morais, Bluteau, Rafael – 1789
  3. Vocabulario brasileiro para servir de complemento aos diccionarios da lingua portuguesa – Rubim, Braz da Costa – 1853

Não encontrei sequer referência ao verbete “inhaca”.

Nos dicionários mais modernos como o Michaelis, “inhaca” tem sua etimologia como vinda do tupi, iákwa, ou yákwa, significando cheiro forte, odoroso. Vários dicionários repetem essa origem, baseados no Dicionário Etimológico Resumido (1966), de Antenor Nascentes.

Indo mais além, achamos um candidato melhor ainda: No Dicionário Tupi (antigo) – Português – Moacir Ribeiro de Carvalho achamos o seguinte verbete:

ABYAKA (T-). Substantivo: bodum, cheiro de -suor ou de roupa suja,- fedor. Adjetivo : fedorento (a mofo ou a suor).

De Abyaka para Yaka e para inhaca etimologicamente é um pulo.

De resto, há zero uso na literatura portuguesa do termo “inhaca” para designar cheiro ruim. Não faz o menor sentido os colonizadores que primeiro chegaram na tal ilha, e a batizaram terem feito a associação, ter se tornado um termo tão comum que usamos até hoje, e em Portugal ninguém saber do que se trata.

Em Estudos sobre a poesia popular do Brazil, 1879-1880 (pág 316) “inhaca” já é listada como palavra de provável origem “túpica”, distinta das de origem africana.

Claro, nada disso importa para o Paulo Vieira, pois ele está fazendo o que todo militante adora fazer: Demonstrar virtude, em uma mistura de superioridade moral e autoflagelação.

Há todo um ritual no mundo lacrador moderno. O sujeito precisa ser desconstruído, precisa mostrar que viveu nos mais profundos e sujos poços de racismo, preconceito e opressão, mas agora encontrou a Luz e tem como missão mostrar o caminho aos desfavorecidos.

Tipo essa pilha de vergonha em forma de gente aqui.

Só que como fazer isso no mundo real dá trabalho, eles preferem patrulhar na Internet, no puro sofativismo de resultados. E um dos campos mais confortáveis é a Etimologia da Opressão, onde palavras se tornaram mais poderosas do que paus e pedras.

É uma tentativa de importar para o Brasil a incrivelmente infantil relação dos americanos e suas Palavras Proibidas. Sim, adultos vacinados se tornam animais irracionais se você falar (ou escrever) “nigger”. Também não pode nem cantar. Brancos que gostam de rap pulam as ocorrências de “nigger” cada vez que acompanham seus cantores preferidos.

É como as crianças de Harry Potter, que não podem falar “Voldemort”.

No Brasil não chegamos a tanto, mas a turma tenta. Todo mundo se recorda do Criado-Mudo, que teria esse nome porque os donos de escravos manteriam um sujeito de língua cortada do lado da cama, para pegar copo d’água durante a noite, essas coisas.

Quem inventou essa bobagem nunca viu um filme do Tarantino, ou acha que escravos eram ovelhinhas adestradas incapazes de qualquer pensamento de vingança.

Outra etimologia idiota que papagaiam por aí: Não se deve usar o termo “afronta”, seria racista devido ao prefixo “afro”

(pausa para rir)

Sim, meninos, eu li. E nem me dei ao trabalho de explicar que afronta vem do Latim affrontare, “ofender, desrespeitar”, originalmente “bater na face”, da expressão ad frontem, “na face ou para a face”.

Esse desespero para demonstrar virtude apontando racismo imaginário em palavras inocentes beira o patológico, essas pessoas são tristes, vivem tensas procurando assombrações. O pior é que essa estratégia funciona.

E tem o momento em que a militância dá a volta completa e fecha com Grandes Líderes Austríacos.

Há todo um grupo de cúmplices, como a Ana Maria Braga, que ao invés de mandar a produção pesquisar, ou questionar o entrevistado, segue o caminho mais cômodo, faz cara de chocada, “nossa, eu não sabia, vou me policiar agora” e dá aos espectadores o show do próprio crescimento moral e espiritual. Ali ela se tornou uma pessoa menos racista, mais esclarecida. Não, esclarecida não pode, “esclarecer” é considerado racista por parte da militância. Sério.

O povo da militância não quer controlar apenas humoristas em shows de stand up, eles querem controlar a própria linguagem do povo nas ruas. Eles não acreditam em evolução natural, não entendem que as conquistas sociais acontecem gradualmente.

Nos EUA, o chamado casamento inter-racial se tornou legal em 1967, com o caso da Suprema Corte Loving v. Virginia. Na época uma minoria da população aprovava a prática. O quadro só foi virar na metade da Década de 1980, quando 51% dos americanos passaram a aprovar casamento entre negros e brancos (convenhamos ninguém estava falando dos japas e mexicanos)

No caso do Casamento Gay, em 2010 já havia pesquisas onde mais de 50% da população era a favor, a aprovação social veio ANTES da legalização, que só foi alcançar os 50 estados em 2015.

A sociedade evolui. Hoje naturalmente não usamos mais termos como “crioulo”, por mais que gostemos do Tião Macalé. A linguagem e o comportamento evoluem, termos caem em desuso, ninguém mais fala “maometano”, por exemplo. Outros termos perdem a ligação com o sentido original. Arrisco dizer que 0% de quem fala “judiar” é antissemita. Talvez até menos. Essas mudanças só não ocorreriam se ficasse um monte de gente enchendo o saco e patrulhando o tempo todo.

Hoje há enorme apoio popular para causas sociais, mas adivinhe: Está todo mundo cansando da militância, de ter que pisar em ovos para não ofender ninguém, de ter que se policiar o tempo todo.

E isso acontece inclusive entre o grupo mais tolerante e progressista, os jovens. Uma pesquisa entre americanos de 18 a 34 anos mostrou que em 2016 63% deles se sentiam confortáveis interagindo com pessoas LGBTQ. Em 2017 o valor caiu pra 53% e em 2018 desceu para 45%.

Basta ver qualquer vídeo de militantes indignados reclamando de como são oprimidos, ao mesmo tempo que exigem sua demissão, e você percebe como o Jovem™ Militante é uma criatura insuportável.

E se ainda é preciso prova de que eles vivem na melhor geração possível, e estão entre os mais privilegiados e confortáveis jovens do planeta, basta perceber que eles precisam INVENTAR opressão para alimentar seus discursos de vítimas profissionais.

Ser menina no Afeganistão, ou gay em Uganda, que acaba de aprovar uma legislação draconiana que envolve até pena de morte para homossexuais? Isso não é nada, opressão mesmo é alguém usar inhaca ou outra palavra com etimologia imaginária ofensiva.

Fontes:

  1. Ilha da Inhaca
  2. Inhaca – Wikipedia
  3. Dicionário Tupi (antigo) – Português – Moacir Ribeiro de Carvalho – 1987
  4. Estudos sobre a poesia popular do Brazil, 1879-1880
  5. Origem da Palavra – Afronta
  6. The young are regarded as the most tolerant generation. That’s why results of this LGBTQ survey are ‘alarming’
  7. Uma inhaca de etimologia
  8. inhaca – Significado de Inhaca



Compartilhe este artigo!