Sobre russos, comunistas, Putin, pena de morte e no final sobrou pro Slovik

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Soldados soviéticos mortos na Finlândia, WW2

Por esses dias postei no tuinto um vídeo mostrando um dos muitos absurdos da Guerra: Um grupo de soldados russos recuando e sendo fuzilados por outros russos, cuja função é justamente essa: Atirar nos “desertores” e “covardes”.

Não é exatamente novidade para quem estuda História, um dos primeiros usos documentados dos chamados “Esquadrões de bloqueio” foi na União Soviética, em 1918. Vai que é sua, wikipedia:

“O primeiro uso das tropas de barreira pelo Exército Vermelho ocorreu no final do verão e outono de 1918 na frente oriental durante a Guerra Civil Russa, quando o Comissário de Guerra Leon Trotsky do governo comunista bolchevique autorizou Mikhail Tukhachevsky, o comandante do 1º Exército, para estacionar destacamentos de bloqueio atrás de regimentos de infantaria não confiáveis do Exército Vermelho no 1º Exército Vermelho, com ordens para atirar se as tropas da linha de frente desertassem ou recuassem sem permissão.”

Essas tropas foram usadas várias outras vezes, inclusive na Segunda Guerra Mundial, quando se tornaram famosos casos de soldados desertores usados para limpar campos minados correndo sobre eles, ou tropas desarmadas seguindo outros soldados com ordens de pegar as armas quando eles fossem alvejados.

O tal vídeo não viralizou por trazer novidade, a diferença é que agora temos um exemplo, ao vivo (não por muito tempo) dessa prática nefasta:

Eu postei o vídeo no Twitter, já sabendo o que esperar, mas ainda assim me assustei com a velocidade da reação. Por motivos diferentes tanto a esquerda apoiadora do Lula quanto a direita bolsonarista resolveram ficar do lado errado da História. Os dois adoram puxar saco da Rússia, China e similares.

Primeiro veio a turma do fake, nada é real se não colabora com a Narrativa deles. Uns correram dizendo que o vídeo era encenado por ucranianos, para prejudicar a imagem dos russos. Bem, eu diria que invadir a Ucrânia já está prejudicando a imagem dos russos, e matar meia-dúzia de candangos dificilmente será pior pra imagem deles do que os vídeos de Mariupol destruída pelas bombas de Putin:

Outra argumentação divertida foi que o vídeo era falso pois não havia sangue jorrando nem os soldados eram atirados longe pela força dos projéteis. Acho que o pessoal anda vendo filme demais.

Depois vieram os “legalistas”, passando pano forte dizendo que era tudo perfeitamente normal, segue o jogo, em guerra todos os países punem desertores.

Alguns até puxaram o Código Penal Militar para mostrar que “O Brasil faria a mesma coisa”.

Note pela grafia, “cobardia”, que não é uma Lei exatamente nova.

Teeeeeecnicamente eles estão certos, a maioria dos países prevê pena de morte para deserção, mas o que eles deixaram escapar é que essa pena, ou qualquer outra, só será aplicada após uma longa e complicada Corte Marcial.

Claro, um fã de Stalin ou Pinochet (não tem como saber) apareceu pra dizer que corte marcial não vale nada, que já está tudo decidido de antemão, mas na prática não é assim que a banda toca.

Segunda Guerra, Yay!

Deserção era um problema sério na Segunda Guerra Mundial, e não só entre os aliados. Aquele papo de fanatismo nazista tinha seu limite, e no final da Guerra, a Alemanha tinha julgado 35000 militares por deserção e abandono de posto. Desses 23000 foram condenados à morte, e 15 mil executados. Alguns DEPOIS da Guerra ter acabado, em um campo de prisioneiros, fuzilados com armas emprestados pelos canadenses, mas essa é outra história.

Outros tantos foram executados por Crimes de Guerra, que no caso eram bem mais restritos. Coisas feitas com prisioneiros ou soldados inimigos raramente davam problema, só casos como estupro ou homicídio de cidadãos arianos é que complicavam a coisa pro fritz.

Em comum, todos esses casos tinham um tribunal militar envolvido. Aquilo do oficial da Gestapo puxar a Luger e matar o soldado que não cumpre ordens é essencialmente coisa de Hollywood.

Isso mesmo que você ouviu, mesmo os nazistas tinham tribunais, e os números mostram que não eram só de fachada (dependendo da sua raça, claro). Execuções sumárias em campo de batalha são coisas que não dão muito certo em tropas que não estão desesperadas.

Lembre-se, o outro lado também tem armas.

No caso dos americanos, os tribunais militares trabalharam a todo vapor. No total os EUA mobilizaram 16 milhões de homens. Alguns fizeram caquinha, o que resultou em 1.7 milhões de cortes marciais.

Somente um (relativamente) pequeno número envolveu crimes graves, como estupro, homicídio e deserção. Nesse caso em particular, foram 21000 casos graves de deserção, que resultaram em condenações que foram de dispensa desonrosa a pena de morte.

Do total de 160 sentenças de morte dadas pelos tribunais militares, 49 foram por deserção.

Bem menos do que os alemães, diga-se de passagem, mas a coisa melhora (pra quase todo mundo). Dessas 49, somente UMA não foi comutada.

Isso mesmo: Durante toda a Segunda Guerra Mundial os EUA executaram UM soldado por deserção, esse infeliz aqui, Eddie Slovik.

Slovik nasceu em 1920 e era o que a gente considerava antigamente um trombadinha. Não que a Detroit da Grande Depressão fosse um lugar legal pra crescer, mas aos 12 anos ele já foi preso pela 1ª vez, no melhor estilo João de Santo Cristo.

Depois disso, ladeira abaixo. Várias prisões por roubos, invasão, perturbação da ordem, até que em 37, com 18 anos, pegou cadeia braba, mas saiu em condicional um ano depois. Apenas pra encher a cara, roubar um carro e voltar pra cadeia.

Ele só ganhou nova condicional em 1942, arrumou uma esposa e acabou sendo convocado pra Guerra.

Slovik e a Patroa.

Mandado para a Alemanha em Agosto  de 1944, ele imediatamente conseguiu se perder de sua unidade, ficou seis semanas com um grupo de policiais militares canadenses, até conseguir ser repatriado para o 109º Regimento de Infantaria, no dia 7 de Outubro.

No dia 8, Slovik procurou o oficial comandante pedindo para ser transferido para uma unidade de artilharia, ele estava com muito medo e não queria servir na Infantaria. O oficial recusou. Slovik perguntou se isso caracterizava deserção. O oficial confirmou.

Slovik escreveu uma confissão, e caminhou até outra unidade próxima. Lá o oficial de dia tentou dissuadi-lo, e pediu para ele rasgar a confissão. Slovik se recusou. O caso escalou, outros oficiais tentaram convencê-lo, mas Slovik queria desertar.

Chegaram a pedir que ele rasgasse a carta, mesmo desertando, pois seria usada contra ele. Slovik não quis.

Depois de três tentativas ofereceram para ele ser transferido para outra unidade de infantaria, onde ninguém o conhecia. Não aceitou. A corte marcial era o que ele queria, pois Slovik tinha ouvido relatos de que no máximo pegaria cadeia, que para ele era quase um segundo lar.

Quando veio a Corte Marcial, em 11 de Novembro de 1944, Slovik não contava com o aumento de deserções entre soldados americanos, com a certeza de que no máximo pegariam uns meses de cana. Era preciso conter a onda, pegando alguém como exemplo, e que bucha melhor do que Slovik, ex-detento, delinqüente juvenil e com uma declaração de covardia de próprio punho?

A decisão do tribunal foi unânime, 9 a 0, e a pena, pelotão de fuzilamento.

Slovik, que preferiu não testemunhar e apostava em uma pena branda, ficou desesperado. Apelou para o General Eisenhower e tudo, mas Slovik era o cara errado no lugar errado, e se ele fosse perdoado, seria um péssimo exemplo para as tropas.

Por causa disso, Eddie Slovik foi executado em 31 de Janeiro de 1945, aos 24 anos, tornando-se o único americano morto por deserção durante a Segunda Guerra Mundial.

Depois da Guerra sua esposa tentou conseguir um perdão presidencial, mas 7 presidentes diferentes negaram o pedido.

O streaming da execução do Slovik foi só em Pay Per View então fique com o filme do Martin Sheen.

Se havia algum Slovik entre os russos fuzilados sumariamente por seus próprios colegas, nunca saberemos. Talvez eles fossem covardes, talvez eles fossem convocados sem nenhum desejo de invadir a Ucrânia, talvez fossem sanguinários correndo para pegar mais munição. Não importa.

O que importa é que eles tiveram negado o direito de um julgamento, de ter seu ato de fuga ou deserção estudado, explicado e entendido por um tribunal de seus pares, com direito à defesa. Quando chegamos a dizer que haveria mais justiça se eles fossem nazistas na Segunda Guerra, percebemos a situação distópica em que a Rússia se encontra.

Fontes:

  1. World War II — 60 Years After: Everyday Germans Recount Horrors Of War’s Last Days
  2. The Story Of The Only American Soldier Executed For Desertion Since The Civil War
  3. 40 Historical Facts Accepted as Real For Many Years
  4. Eddie Slovik
  5. RUSSIA ORDERS STALIN-STYLE ‘BLOCKING UNITS’ TO FORCE ITS TROOPS FORWARD, KYIV REPORTS



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