A população civil que implorou para ser bombardeada pelos Aliados

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O B17 voava baixo pelos Países Baixos. A tripulação assustada, não estavam acostumados a missões de baixa altitude. Várias vezes passavam por baterias antiaéreas alemães, confusas com a inusitada visão. A poucas dezenas de metros do solo, um tiro seria fatal.

O artilheiro conferia com o navegador a posição do avião, enquanto olhava nervoso para o compartimento de bombas. Quando as portas abrissem várias toneladas seriam despejadas, e era imperativo que acertassem o alvo.

Os pilotos viram o hipódromo se aproximando, nele centenas de pessoas, muitas acenando panos brancos. O rugido dos quatro motores Wright R-1820-97 de 1200hp cada era ensurdecedor, então os tripulantes foram poupados de ouvir os gritos da população.

Chegado o momento exato, o artilheiro acionou o compartimento de bombas, com a perda de peso o avião saltou para cima, enquanto os pilotos, com lágrimas nos olhos subiam para retornar à Inglaterra, cientes do que tinham feito.

Esse foi um dos primeiros vôos das Operações Maná e Chowbound, entre 29 de Abril e 8 de Maio de 1945, mas tudo começou bem antes, em 17 de Setembro de 1944, com a Operação Market Garden.

Market Garden

Foi a maior operação aerotransportada da História. 42 mil soldados aliados lançados de pára-quedas nos Países Baixos, abrindo uma linha de frente direto para Berlim, passando pela Libertação da Holanda. Por alguns dias.

A Operação foi um fracasso total, um pesadelo logístico, os Aliados concentraram seus reforços em uma única estrada, o tempo não permitia que suprimentos fossem lançados de pára-quedas, e a Alemanha tinha divisões de elite na reserva, que foram acionadas e seguraram o avanço aliado.

A Market Garden é contada no excelente Uma Ponte Longe Demais, de 1977. Recomendo bastante.

No final, a Alemanha tinha 100 mil tropas, o que resultou em 17 mil soldados aliados presos, mortos ou feridos. E sobrou para a população dos Países Baixos, que já viviam sob ocupação nazista, e agora passavam por prisões, fuzilamentos e o mais importante, um bloqueio total de comércio com países vizinhos, o que resultou no Hongerwinter, o Inverno da Fome, um período em que os nazistas proibiram transporte de alimentos entre as regiões rurais e as áreas urbanas.

Deu ruim.

O resultado foi fome generalizada, um adulto médio tinha que sobreviver com uma ração de 400 calorias por dia. Foram 22 mil mortos pela fome, a grande maioria idosos e crianças pequenas. Segundo relatos, nenhuma criança nascida durante o Hongerwinter sobreviveu.

Os alemães viram que pegaram pesado, e como a invasão da Fortaleza Europa estava indo muito bem para os aliados, acabaram liberando o transporte de algumas cargas de alimentos retidas nos portos, mas era muito pouco.

Surgiu então a oportunidade. O Príncipe Bernard, assistente pessoal da Rainha (em exílio) Guilhermina, da Holanda usou seus contatos (ela havia sido oficial da SS, mas essa é outra história) e conseguiu uma proposta, apresentada a Winston Churchill e ao Presidente Roosevelt:

Em troca dos aliados não bombardearem instalações alemães na região, os nazistas permitiriam que aviões lançassem alimentos para a população dos Países Baixos.

O acordo exigia que os aviões seguissem rotas específicas, e não poderiam levar armamentos. Em alguns casos os pilotos levavam suas pistolas pessoais, e como era complicado remover algumas armas dos aviões, elas foram mantidas, mas sem munição.

Foi uma correria, os bombardeiros foram adaptados para transportar alimentos, como farinha, bacon, milho, carne, vegetais, leite, manteiga, enlatados, em sacos de estopa. Eles eram lançados sem pára-quedas, a altitudes entre 150 e 120 metros, em pontos pré-estabelecidos.

A população, avisada, ia às centenas ajudar a recolher os suprimentos, o que muitas vezes causou problemas, os pilotos tinham medo de acertar alguém, o que normalmente não era problema, na profissão deles.

Lancaster, com pacotes de mantimentos no lugar de bombas.

Em um dos casos, um saco de mantimentos lançado de um B17 americano acertou em cheio uma vaca, o que é muito azar pra coitada, mas um grupo de holandeses se fartou de churrasco, ou mais provavelmente hambúrguer.

Na primeira missão 450 bombardeiros Lancaster ingleses lançaram 1000 toneladas de alimentos, os pilotos viam até pessoas pulando nos canais para pegar os pacotes.

Nas palavras do Tenente Bob Belgam:

“Chegamos baixo o suficiente para ver as expressões nos rostos das pessoas que estavam nos campos. Ficamos muito emocionados ao ver essas pessoas acenando e torcendo por nós. Claro que não podíamos ouvi-los por causa do barulho de nossos motores, mas em seus rostos dava para ver que gritavam a plenos pulmões. Posso falar por toda a tripulação quando digo que nos deu um nó na garganta.”

E o relato do 1º Tenente Robert Miller:

“Voei meu primeiro hoje, e foi uma emoção. Chegamos em formação a 400 pés. Ver as pessoas acenando para nós e ver “Thanks Boys” e “Many Thanks” escrito com flores dá a você um brilho caloroso. Apenas sentar lá e olhar para eles trouxe lágrimas aos meus olhos, e eu não tenho vergonha disso também! Pensar que hoje fizemos o bem em vez de mandar cidades e pessoas para o inferno me faz perceber que ainda resta algo de bom neste mundo.”

No total os britânicos voaram 3301 missões, levando 6800 toneladas de alimentos. Os americanos voaram 2268 missões, com 4000 toneladas entregues.

Povo na rua celebrando os bombardeiros aliados

Três aviões foram perdidos, dois durante uma colisão, um por incêndio no motor. As baterias antiaéreas alemãs permaneceram em silêncio, o acordo foi respeitado. Alguns aviões voltaram com balas de munição de pequeno calibre, provavelmente soldados que não estavam cientes do salvo-conduto, mas ninguém foi atingido.

A moral entre os aviadores aliados era altíssima, a idéia de lançar alimentos ao invés de bombas, e ver com os próprios olhos as mensagens de gratidão escritas com lençóis e flores nos campos deu todo um novo sentido a eles.

Incontáveis vidas foram salvas com esses vôos, e algum tempo depois foi negociada uma linha terrestre, onde caminhões aliados eram entregues a motoristas holandeses na fronteira, sob supervisão dos alemães, e os mantimentos eram também distribuídos entre a população.

Dois anos depois, em uma espécie de ironia cósmica, o termo Hongerwinter voltou a ser usado, dessa vez para designar a fome na Alemanha Ocupada do pós-guerra. Karma is a bitch.

Fontes:



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