Sobre colonialismo, meu uísque favorito e a garotinha comida em nome da Ciência

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Eu sou o primeiro a admitir que passo pano para muita gente do passado, mas no causo de hoje, mesmo longe de ser um daqueles mimilitantes que não entendem contexto histórico e julgam o passado pela régua moral de 2023, fico a um passo de iniciar um boicote.

A história tem a ver com Jameson, que é meu uísque baratinho favorito, acho bem melhor que Red ou Black Label, mesmo estando na mesma faixa de preço. Tem para vender na Amazon, recomendo bastante e comprando por este link você me ajuda, pois recebo uma comissão.

O Jameson da história, claro, não é o uísque em si, mas a família. Mais precisamente James Sligo Jameson, nascido em 1856 e bisneto do fundador da destilaria que leva seu nome.

James Sligo Jameson, esse canalha aí.

Como todo ricaço entediado da Inglaterra Vitoriana, Sligo era fascinado pela expansão do Império, com terras exóticas, novos mundos, novas civilizações, e como todo mundo ele queria ir audaciosamente aonde nenhum europeu jamais esteve, e explorar os recursos locais.

OK, essa era a norma, mas sendo honesto Sligo e a maioria dos chamados cientistas amadores, eram realmente interessados na Ciência. Do lema de Indiana Jones, Fortuna e Glória, ele queria mais a glória.

Em uma expedição para desbravar o Coração da África, Jameson pagou £1000 para fazer parte, o equivalente a US$140 mil em 2023, com direito ao pacote completo: Guias, intérpretes, provisões, etc. Chegando na África, Jameson descobriu que a África de 1888 era uma África. Em seu diário ele escreveu:

“Os últimos seis meses têm sido os mais miseráveis e inúteis que já passei em qualquer lugar. Desde a minha infância, sonhei em fazer algo bom neste mundo e criar um nome que fosse mais do que apenas vão.”

Enfrentando doenças, dificuldades de todo tipo, combates (a expedição foi meio militar) Jameson ocupava seu tempo estudando os nativos, e as tribos mais remotas. Em meio a tudo isso, encontrava sacrifícios humanos, extrema violência, escravidão para todo lado, normalizada, mas como era algo interno, e não mais o tráfico transatlântico, ninguém se metia.

Uma das coisas que Jameson NÃO encontrou, foi canibalismo. Isso o deixou curioso, pois ouvia histórias de todo lado sobre isso, mas não havia nada. Um dia, em Riba-Riba, ele foi chamado para visitar o chefe local, Tipo Tib. Depois da apresentação de uma dança de escravos Wacasu, Tipo Tib comentou que depois daquele tipo de dança muita gente costumava ser devorada pelos Wacasu.

Tippu Tip

Jameson disse que gostaria de ver isso. O chefe respondeu que para isso precisaria de um escravo. Um dos auxiliares de Jameson saiu para pegar seis lenços brancos, que funcionavam como moeda de troca. Logo depois um dos nativos voltou com uma menina escrava, com algo em torno de dez anos.

Amarrada, a menina foi levada, passivamente, até as cabanas dos Wacasu. Aqui pauso para incluir uma das descrições do que aconteceu depois:

“Ao chegar às cabanas nativas, a menina, que era conduzida pelo homem que a trouxera, foi apresentada aos canibais.

O homem disse a eles: “Este é um presente do homem branco. Ele quer ver o que vocês fazem para comê-la”

A menina foi levada e amarrada pelas mãos a uma árvore. Cerca de cinco nativos estavam afiando facas. Então um homem veio e a esfaqueou com uma faca no peito, ela morreu na hora, em silêncio. Antes disso a garota não gritou, mas ela sabia o que estava acontecendo. Ela estava olhando para a direita e para a esquerda, como se procurasse ajuda.

Ao ser esfaqueada, ela caiu morta. Os nativos então vieram e começaram a cortá-la em peças. Um estava cortando uma perna, outro um braço, outro a cabeça e o peito, e outro levou as partes internas da barriga. Depois que a carne foi dividida, alguns levaram para o rio para lavá-la, e outros foram direto para a casa deles.

A carne foi fincada em espetos de madeira, e assada no fogo.

Durante o tempo, o Sr. Jameson tinha um livro e um lápis na mão, fazendo esboços da cena.”

Reconstituição de época dos esboços de Jameson.

Mais tarde Jameson foi para casa, refinando seus desenhos com aquarela, enquanto vários outros membros da expedição ficavam horrorizados com a história. A ficha finalmente caiu, mas para Jameson era tarde demais. Para sua imensa sorte ele contraiu uma febre e morreu dois meses depois.

Ele enviou telegrama para a esposa, pedindo para não deixar manchar sua reputação com as histórias que iriam aparecer, e em seu diário contou uma versão bem diferente, mas não o bastante.

Em 1890  Henry Morton Stanley, líder da expedição militar, começou a ser criticado pela imprensa, e para distrair a atenção do público, vazou a história de Jameson, com direito a declarações juramentadas de vários envolvidos, incluindo o intérprete.

Na versão de Jameson ele teria duvidado que canibalismo era real, e Tipo Tib teria pedido alguns lenços; a garotinha foi trazida, morta e assada sem que Jameson tivesse “tempo de reagir”.

Outra outra versão diz que os hábitos de canibalismo dos Manyeuma eram corriqueiros, conhecidos dos árabes que os usavam como soldados, e ninguém interferia. Eles eram discretos e não comiam gente na presença de estranhos. Então -olha a audácia- Os seis lenços que Jameson pagou não foram para comprar a menina-escrava-lanchinho, apenas serviram como um ingresso para poder assistir ao show.

Na Inglaterra, a família de Jameson usava de todo seu poder econômico para tentar apagar da mídia a idéia de que o falecido aprovava a idéia de comer garotinhas, no mau sentido. OK, pensando bem, não há um bom sentido possível, mas há sempre um pior.

Claro, Sligo Jameson não chegava aos pés de Leopoldo II, o maior canalha a colocar as mãos na África, mas sua total desumanização dos habitantes locais, e seu desprezo em não parar nem por um minuto para pensar que havia COMPRADO uma menina de 10 anos como quem compra um pão na chapa para um mendigo na Central do Brasil, isso é além de criminoso, chega às raias da psicopatia.

Apesar dos esforços da família, que devem ter oferecido muitas e muitas garrafas de Jameson de cortesia, a história nunca foi esquecida, e se serve de consolo para a garotinha escrava devorada aos 10 anos (não, não serve), James e Ethel, filhos de Jameson, tiveram que viver até o dia de suas mortes, em 1964 e 1973 respectivamente, sabendo que seu pai era um monstro.

Fontes:



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