A Guerra Civil nos EUA é um tema extremamente complexo, e nem de longe foi o Bem contra o Mal com o Norte bonzinho libertando escravos e o Sul malvado fazendo maldade com o Kunta Kintê, embora isso seja parte da equação. O próprio Abraham Lincoln, um homem de seu tempo tinha idéias hoje consideradas racistas, era contra dar a negros direito a voto, cargos públicos e dizia com todas as letras que eram inferiores aos brancos.
Mesmo não vivendo uma vida excelente, era muito melhor ser negro no Norte do que no Sul, e por um tempo escravos fugitivos conseguiam viver em paz, mas o Fugitive Slave Act de 1850 determinou que a União deveria auxiliar a busca e retorno de escravos fugidos, mesmo em Estados onde não havia escravidão. Isso fez com que muitos escravos fugissem direto para o Canadá, até estourar a Guerra Civil, agentes federais ficaram menos propensos a retornar escravos para o Sul.
Em meio a essa confusão toda que começa a história de Robert Smalls. Quer dizer, a história dele começa em 1839, quando nasceu em Beaufort, Carolina do Sul, filho de Lydia Polite, escrava doméstica da família McKee e muito provavelmente de Henry McKee, o dono da casa e dos escravos.
Quando Robert fez 12 anos os McKees se mudaram para Charleston, e como ele já tinha idade suficiente, foi colocado para trabalhar, de uma forma tão cruel que parece até alguns casamentos: O Mestre mandou que ele arrumasse um emprego. O dinheiro do salário ia todo para o Mestre, claro. Era tipo uma terceirização.
Primeiro ele arrumou emprego em um hotel, mas acabou trabalhando nas docas, Robert descobriu que amava o mar e de estivador, costureiro de velas e outros empregos, acabou virando timoneiro, e trabalhou como prático do porto de Charleston, sem o título pois escravos não podiam ser práticos. Com 17 anos ele se casou com Hannah Jones, uma escrava de 22 anos. Eles tiveram uma filha, que juntada às duas que Hannah havia tido de um casamento anterior, formaram a família de Robert Smalls.
Em 1861 a Guerra Civil estourou, e todos os barcos foram usados no esforço de guerra, inclusive o CSS Planter, uma canhoneira fluvial usada para transporte de suprimentos, na qual Robert era o timoneiro.
A tripulação era composta de oficiais brancos e marinheiros escravos, e isso deu uma idéia a Robert: Tentar um Outubro Vermelho, uma deserção em massa. Mas para isso era preciso ganhar a confiança dos oficiais, e ele conseguiu, sendo um excelente marinheiroe cumprindo todas as ordens enquanto viajavam pela costa da Flórida, Geórgia e Carolina do Sul levando munições, comida e plantando minas nas rotas inimigas.
Pacientemente Robert esperou um ano até o momento propício. Ele já conhecia o Planter como a palma da mão, todos os conspiradores sabiam seus papéis, quem era pra ser avisado estava avisado. No dia 13 de Maio de 1862, depois de pegar uma carga de 4 canhões pesados, 200 libras de munição e 20 fardos de lenha o Planter atracou em Charleston. Os oficiais foram passar a noite em terra, provavelmente bebendo e socializando com as moças do porto, e “como sempre” deixaram os escravos tomando conta do navio.
Robert apareceu vestindo um uniforme naval completo, inclusive com um chapéu igual ao do capitão do Planter. Subiu a bordo sem que ninguém percebesse algo diferente, soltaram as amarras e seguiram até um ancoradouro próximo. Lá pegaram a família dele e outros parentes dos escravos a bordo, e seguiram em direção ao norte.
Havia pelo menos 5 postos de checagem no caminho, inclusive fortes com artilharia que obliterariam o Planter da face da Terra se fosse preciso. Ele hasteou a bandeira dos Confederados, e a cada posto de checagem respondia corretamente aos sinais luminosos, com os cumprimentos e códigos precisos, que ele havia decorado depois de ver os oficiais os usarem tantas vezes.
Quando passaram o último posto, chegou a fase mais perigosa: Eles rumavam direto para a frota da União, os inimigos. A bandeira confederada foi rapidamente arriada e um lençol serviu de bandeira branca. Por sorte o capitão do USS Onward não era desconfiado, acreditou na bandeira, mandou um grupo de abordagem ao qual Robert alegremente entregou o navio, as armas, munições e principalmente os livros de código com todas as cifras usadas pelos Confederados. Ah sim, e mapas mostrando a localização de todos os campos minados, muitos dos quais instalados pelo próprio Robert.
Levado até o Almirante Samuel Dupont, que comandava o bloqueio a Charleston Robert apontou os bancos de areia, as regiões com mais ou menos suprimentos, a quantidade de tropas, tudo. Ele virou um herói nacional ou pelo menos de metade do país. Jornais e revistas publicavam a história, ele deu entrevistas, tomou café com a Ana Maria Braga, pacote completo. O Congresso até votou uma Lei na correria dando uma recompensa a Robert Smalls e todos os outros escravos da tripulação do Planter. Ele recebeu US$1500,00, o equivalente hoje a US$37 mil mais ou menos. O suficiente pra começar uma vida nova, arrumar uma casinha, comprar um mimo pra patroa. Só que ele não teve muito tempo pra vida doméstica.
Requisitado pela Marinha, ele trabalhou indicando áreas minadas por um tempo, mas logo perceberam que sua fama poderia ser melhor aproveitada. Convencido a ir a Washington, ele conheceu o Presidente Lincoln, que logo depois mudou de opinião e passou a permitir que negros servissem nas forças armadas da União. Robert foi pessoalmente responsável por mais de 5000 voluntários.
De volta a Port Royal, ele foi transferido para o Exército, onde continuou trabalhando como consultor civil pilotando barcos. Se envolveu em várias batalhas navais, foi afundado uma ou duas vezes, até que acabou de novo no timão do Planter, som o comando do Capitão James Nickerson, quando em primeiro de Dezembro de 1863 foram atacados por baterias de artilharia inimiga atirando de terra.
Apavorado o capitão abandonou a ponte e se escondeu no depósito de carvão do barco. Robert Smalls se viu sozinho na casa do leme. A única opção era a rendição, mas o Sul não seria gentil com um ex-escravo que roubou um navio e repassou um monte de informações sigilosas pro inimigo. “hoje não”, provavelmente pensou ele, enquanto avisava ao pessoal da casa de máquinas, provavelmente ex-escravos como ele que iriam sair dali a toda.
Os carvoeiros carvoaram como nunca, Robert usou todo seu conhecimento para navegar o Planter pelas rasas e perigosas águas, enquanto os inimigos tentavam inutilmente mirar seus canhões em algo que hoje de longe pareceria um jet ski. Fora de perigo, rumaram ao porto, onde o navio chegou, avariado mas flutuando. James Nickerson deixou a História coberto de vergonha, e Quincy Adams Gillmore, comandante geral da região promoveu Robert Smalls na hora para o posto de capitão do Planter.
No ano seguinte, 1864 Smalls se dividia entre pilotar e comandar o Planter, acompanhar convenções políticas, aprender a ler (ele ainda era analfabeto) e arrecadar dinheiro para organizações de apoio à educação de ex-escravos. Nesse mesmo ano um incidente na Filadélfia foi fundamental para a história de Smalls e a História em geral: Em um bonde, ele foi ordenado a ceder seu lugar para um passageiro branco. Ele se recusou a viajar de pé e desceu do bonde, mas era conhecido o bastante pra isso virar um escândalo.
Os jornais denunciaram a humilhação de um veterano herói de guerra que havia sobrevivido a 17 grandes batalhas da Guerra Civil, a discussão chegou ao senado estadual, e em 1867 a Pennsylvania promulgou uma Lei dessegregando o transporte público, décadas antes de Rosa Parks.
Depois do fim da guerra ele continuou pilotando o Planter em missões humanitárias levando mantimentos para o Sul, Depois ele fez algo que pode ser caracterizado como “vingancinha” das boas: Comprou a casa do seu ex-mestre, que havia sido confiscada pela União durante a guerra. Nela morou Robert, a família e sua mãe. Em um gesto de caridade ele permitiu que a esposa do antigo mestre morasse na casa até o fim da vida.
Robert arrumou um sócio, abriu uma loja para vender suprimentos principalmente para ex-escravos. Com o lucro contratou um professor particular para aprimorar seus conhecimentos, e comprou um prédio de dois andares e criou uma escola para crianças negras. Em 1870 junto com outros sócios ele montou uma ferrovia, só havia um branco no quadro de diretores. Ele havia se estabelecido como um homem rico e influente, e fundou até um jornal, como esse tipo de sujeito costuma fazer.
Ele era um republicano devoto, trabalhava dentro do partido pra promover a idéia de educação pública gratuita e compulsória. Eleito deputado estadual, ajudou a aprovar a carta dos Direitos Civis de 1870 na Carolina do Sul. Logo foi eleito senador estadual, onde angariou fãs entre os outros políticos, por sua habilidade oratória e de articulação.
Eleito para o Senado Federal, ele permaneceu por 5 mandatos, onde tentou promover integração das forças armadas e combateu sem sucesso tentativas democratas de diminuir o alcance do voto negro, com redimensionamento de distritos eleitorais e outras marmotagens. Sim, aquilo que reclamaram da última eleição nos EUA já não era novidade em 1874. Ele acabou prejudicado depois de uma armação dos democratas o envolver em uma denúncia de suborno. No final o caso foi arquivado quando os republicanos acharam uma acusação semelhante envolvendo democratas. Política, né…
Robert Smalls venceu todas as adversidades possíveis, enfrentou situações inimagináveis para qualquer um vivendo no conforto do Século XXI (em países com PIB decente, claro) e conseguiu construir uma vida honrada, fez muito pelo seu povo e por si mesmo. Chega a ser uma afronta à sua memória gente em 2018 dizer que não consegue algo por causa da escravidão.
Ele morreu em 1915, aos 75 anos de idade sempre defendendo a igualdade entre as raças.
“Minha raça não precisa de nenhuma defesa especial, a história deles neste país mostra que são iguais a todos os povos em qualquer lugar. Tudo que precisam é uma oportunidade igual na batalha da vida”
Robert Smalls, 1839-1915