Julie d’Aubigny – Cantora, Espadachim, Encrenqueira e pegadora

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Era o final do Século XVII, um idiota chamado Dumeni estava contando aos amigos o motivo de estar todo arrebentado. Havia sido assaltado por um grupo de bandidos quando saía do teatro. Todo mundo ficou com pena do pobre homem, até que uma das cantoras de ópera soltou um “BULLSHIT” ou o equivalente em francês. Ela explicou o acontecido: O idiota havia ofendido uma outra moça na ópera. Ela mandou que ele se desculpasse. Ele não o faz. Ela então o cercou na saída do teatro, deu uma surra de bengala que deixou o homem torto. Antes que ele terminasse de protestar, ela mostrou o relógio e a caixa de rapé do sujeito, que havia surrupiado depois da surra. Esse foi só mais um dia na vida de Julie d’Aubigny.

Sua história é cheia de lacunas. Não se sabe se ela nasceu em 1670 ou 1673, e sua mãe foi esquecida pela história. A figura mais importante da infância de Julie d’Aubigny foi seu pai, Gaston d’Aubigny.

Não esse.

Ele era secretário do Conde de Armagnac, um auxiliar próximo do Rei Luis XIV. O pai de Julie treinava os pagens da corte, e desde pequena Julie o acompanhava. Não querendo uma filha desprotegida, ele deu a ela a mesma educação de seus pupilos. Julie era uma rara mulher do Século XVII alfabetizada letrada estudada e espadada. Sim, Gaston era um exímio esgrimista e ensinou a ela tudo que sabia.

O lado ruim é que Julie mesmo querendo não podia chegar perto de meninos, o pai botava todo mundo pra correr. Só não fez isso com o chefe. O Conde de Armagnac percebeu que Julie estava virando um piteuzinho, entrou em modo Full Nabokov (e você nunca deve entrar em modo Full Nabokov. Julie ganhou um upgrade pra amante do Conde, que imediatamente para manter as aparências arrumou um casamento de fachada para ela com um tal Sieur de Maupin, que foi também imediatamente transferido para o sul da França, sem a esposinha de 13 anos que ele provavelmente nunca encostou o dedo, que dirá outros apêndices.

Too soon?

Ela logo se enjoou do Tio Conde, que também já não dava muito no couro. Julie se enamorou por um sujeito chamado Sérannes, uma espécie de Han Solo local, professor de esgrima, pegador, o pacote completo. Não é de hoje que mulheres adoram um canalha, só que Sérannes se meteu em um duelo ilegal, e teve que fugir. Julie foi atrás, e por meses eles percorreram o interior da França fazendo shows de esgrima.

Julie sempre se vestia com roupas masculinas, mas nunca escondeu seu sexo. Só que como era magrinha sem muitas curvas, alguns duvidavam, ainda mais com ela demonstrando habilidades masculinas. Em um dos duelos de demonstração um babaca duvidou que alguém que lutasse tão bem pudesse ser mulher. Sabendo que o Instagram ainda não havia sido inventado e havia poucas chances de cair na Net, Julie sem parar de lutar abriu a blusa e mostrou os peitos, para vergonha do babaca e alegria da platéia.

Eventualmente Julie se cansou de Sérannes, e começou a olhar com maldade para uma jovem da sociedade, que mesmo sabendo que o velcro ainda não havia sido inventado, retribuiu aos gracejos daquela moça estranha vestida como um rapaz, cheia de amor pra dar.

A família da moça, legítimos representantes da Tradicional Família Mineira Parisiense (Bolsonaro 1708!) não gostou da idéia, e aproveitou pra mandar a moça para um convento. Julie, que não valia absolutamente nada, foi atrás. Se apresentou como candidata a noviça, reencontrou a namorada e além da coroa de espinhos colocou um belo par de chifres em Cristo.

Tipo essa, com mais velcro.

Claro que a vida no convento não era pra Julie, então ela arquitetou um plano maligno. Exumou o corpo de uma freira morta, botou na cama da noviça, tacou fogo no convento e fugiram as duas pelo mundo. A brincadeira durou três meses, até que Julie se cansou de comer ostra todo dia e a jovem voltou pra casa humilhada. Julie foi condenada a ser morta na fogueira, por rapto mas pra manter as aparências foi chamada de “senhor d’Aubigny”  nos documentos, então se a situação apertasse era só mostrar os peitos, provando que era “senhora d’Aubigny” e tudo se resolvia.

Nessa época Julie descobriu que tinha voz de contralto, e mesmo sem experiência foi contratada pelo diretor da Academia de Ópera de Marselha. Fez muito sucesso aquela cantora vestida de joãozinho com voz quase masculina.

Com o sucesso surgiram a(o)s groupies, e Julie passou na cara uma penca de homens e mulheres, ganhando reputação de ser “maravilhosa na cama e uma ardente amante”. Certa vez ela foi convidada para um baile de máscaras (isso nunca dá certo) na casa do Duque de Orleans, Philippe de França, que por acaso era irmão do Rei. Ela foi vestida de homem em uma roupa vermelha com detalhes dourados.

De olho em uma marquesinha Julie foi cheia de galenteios e beijou a moça no meio do salão, só pra descobrir que a moça não tinha Tumblr e não curtia bater bife, botou a boca no trombone.

O fato de Julie se vestir de homem causava surpreendentemente pouca comoção social no Século XVII. Assim como no mundo real, ela era só aquela vizinha meio esquisita que morava com uma amiga e gostava de usar calça, mas quando a marquesa pediu socorro, apareceram três pretendentes que ficaram duplamente ofendidos, primeiro pela marquesa ter dado bola pra outro cara sem ser eles. Segundo, pelo outro cara ser um indivíduo portador de pepeka.

Achando que estavam sendo ameaçadores, soltaram um “vamos resolver isso lá fora”. Desafiada para um duelo pelos três, Julie disse “só se for agora”. Sem demora ela passou ferro nos três, deixando os rufiões feridos e humilhados na calçada.

Não sendo uma assassina, Julie voltou para o bailão, encontrou o Duque e explicou a situação, pedindo que chamassem o SAMU para cuidar dos feridos. O Duque entendeu a situação e acalmou Julie, dizendo que iria falar com o Rei e pedir para que ela não fosse indiciada, pois duelos eram ilegais.

Nos dias seguintes todo mundo estava achando que Julie iria ver o sol nascer quadrado, mas um emissário do Duque apareceu pra dizer que o pistolão não havia falhado, o Rei emitira um perdão Real mas era de bom-tom que ela desse uma sumida estratégica por um tempo.

Em Bruxelas ela subiu de cama em cama e virou amante do Governador da Bavária, Maximilian II Emanuel, que descobriu da pior forma que uma Manic Pixie Dream Girl e uma doida são muito parecidas. Julie era fundo de escala no gráfico Crazy/Hot do barney Stinton, e um dia se esfaqueou pra chamar a atenção do Governador, que disse que o problema não era ela, mas ele, que deveriam continuar sendo bons amigos mas ver outras pessoas, e se quiser voltar pra Paris, eis aqui 40 mil francos.

Ela topou e sumiu de Bruxelas, até porque estava meio encrencada, havia espancado o senhorio.

Julie d’Aubigny não levava desaforo pra casa, ainda mais se ouvisse piadinhas de que não era mulher. Passou muita gente na espada por isso, enquanto recebia aplausos e elogios por suas apresentações na ópera, críticos da época como o Marques de Dangeau a descreveram como “A voz mais bonita do mundo”. Suas apresentações em peças como Cadmus e Hermione se tornaram lendárias.

Tendo conquistado tudo que era possível na época e sem paciência para inventarem os shows em Pay Per View, Julie foi abandonando os palcos. Se envolveu amorosamente com a Marquesa de Florensac, e quando essa morreu, Julie se aposentou de vez em 1705. Procurou um convento em Provença, onde morreu em 1707 aos 33 anos.

Julie d’Aubigny amou, viveu, transou, brigou e se divertiu muito mais do que a gente, sejamos sinceros. Ela nunca ligou se seus desejos e atitudes iam contra o que a “sociedade” considerava correto, nunca ligou pra cara feia. Séculos antes de qualquer centelha do que viria a ser o Women’s Lib e os movimentos LGBT ela já era um exemplo melhor do que a soma total de todos os militantes do Tumblr.

Julie nunca foi uma vítima, nunca se fez de vítima. Ela, ao contrário da militância moderna, não tinha um espaço em sua vida para o Armário do Choro.

Durante uma de suas fugas Julie estava cantando em uma taverna em troca de comida. Um jovem engraçadinho falou “Já ouvi seu canto, passarinho bonito, agora que tal mostrar sua plumagem?” Julie atravessou o ombro do sujeito com a espada. No dia seguinte ela foi atrás para descobrir se ele estava bem. O rapaz era Louis-Joseph D’Albert Luynes, herdeiro de um Duque. Ele ficou muito feliz com a atenção, ela por sua vez fechou a porta do quarto e mostrou que não tinha ressentimentos. Garota doida. Mas eu ia, ah ia.

Fontes:

  • Game of Thrones and the Medieval Art of War – Ken Mondschein – p166
  • By the Sword: Gladiators, Musketeers, Samurai Warriors, Swashbucklers and Olympic Champions
  • Bygone Badass Broads: 52 Forgotten Women Who Changed the World – Mackenzi Lee
  • The Duel – Giacomo Casanova



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