Ficção? Vamos Ficçar, agora kibando Alan Moore

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richard-stallman

Alan Moore - Escritor e louco furioso

Como todo mundo que escreve inicialmente tentamos imitar o estilo de nossos escritores favoritos. Felizmente com pouco sucesso, do contrário nos tornamos no máximo uma cópia bem-feita. É uma fase inevitável e necessária, mas pode ser divertida. No texto anterior eu estava em uma vibe Asimov, com toques de Clarke. No texto abaixo, também de 1993 eu chupo descaradamente o estilo de Alan Moore, transportando-o para uma ambientação brasileira e desprezando tudo que Câmara Cascudo escreveu sobre folclore. Mas não se preocupe, meu Saci não brilha.

Também é legal para mim ler esse texto e ver o quanto fico com gana de alterar e reescrever. Na época fiquei MUITO satisfeito com ele. Hoje fico feliz de nunca tê-lo publicado, seria vergonha na estante olhando pra mim.

OK, sem mais delongas, divirtam-se com um conto de terror repleto de brasilidade (ui!)

O Saci

Ele passou o dedo na folha do arbusto. A pele negra de seu dedo estava levemente amarelada. A fábrica, mesmo a centenas de quilômetros da mata, mandava sua mensagem de morte pelo vento.

O saci conteve sua raiva por instantes, pois primeiro tinha que cumprir sua função; em um momento de concentração ele fechou os olhos, entrando em harmonia com a mata.

Naquele momento o Verde abriu seu coração, e ele mais uma vez se sentiu parte do Todo. Nem comandante nem comandados; todas as coisas vivas da floresta se misturavam, onde terminava uma começava outra. Na distância que agora não existia, ele podia sentir os rios feridos, seus peixes morrendo sufocados. As plantas tentavam respirar, mas eram asfixiadas pela poluição que se depositava em suas folhas. Se as chuvas se atrasassem, as árvores morreriam. Quando as chuvas vinham, limpavam a poluição das folhas, mas traziam substâncias tóxicas para o solo.

Imediatamente ele espalhou o aviso, para todas as criaturas que comiam folhas, para se cuidarem. Em sua tristeza, porém, ele sentiu a agonia de centenas de animais para os quais era tarde avisar. O chão estaria, pela manhã, coalhado de corpos. Corpos que não poderiam ser consumidos pelos predadores naturais, pois estavam envenenados.

As leis da natureza são duras, mas justas. Se jogar de acordo com as regras, consegue-se harmonia. O Homem trapaceava. Naquele momento, o Saci chorou e gritou, e prometeu ao Espírito da Mata que o bicho-homem iria provar da fúria da natureza.

Um saci não pode se afastar de sua mata. Sua força vem do Verde. Mas ali era diferente, e a cidade ficava incrustada na mata como uma pedra na coroa de um Rei. Se o Saci pensasse só por um minuto que os habitantes da cidade tivessem um mínimo de culpa, a cidade não estaria mais ali. O Saci sabia que o lixo do homem vinha de longe. Aquelas pessoas da cidade não causavam grandes danos. Só um ou outro caçador, que ele espantava como forma de divertimento. Para ele era mais fácil alertar os ani­mais, mas ver um homem adulto correr gritando feito uma galinha era uma forma mais divertida de proteger a Mata.

Claro, ele se lembrava dos Dois de Preto. Foi a primeira vez que o Saci ficou realmente furioso. Aquela era a segunda.

Dois caçadores, que caçavam por esporte, descobriram a toca de uma jaguatirica. Apesar de terem visto os filhotes, eles mataram a mãe. Enquanto um deles brincava de tiro ao alvo com os fi­lhotes o outro esfolava a mãe antes de ela terminar de morrer. No final eles jogaram a pele fora, comentando um com o outro que ha­viam completado a cota, e que aquela última fêmea era apenas “para não perder o jeito”.

Depois de conter a raiva, o Saci conseguiu invocar todos os insetos da floresta para o acampamento dos caçadores. Um enxame de marimbondos-caçadores paralisou com seu veneno os dois homens, que foram lentamente devorados pelos outros insetos. As saúvas abriam buracos na pele dos homens, para que os insetos menores pudessem saborear sua refeição de tecido subcutâneo. Por ordem do Saci, a cabeça dos caçadores não era tocada. Eles assistiam e sentiam tudo. Quando um desmaiava, pulgões com seus abdomens cheios de seiva de Epadu mergulhavam na garganta dos dois, garan­tindo mais tempo de consciência.

Foi uma noite diferente na mata quando as larvas de mosca-da-berne entraram pelo nariz dos caçadores, em busca do quitute da noite: O cérebro.

As onças e outros felinos se deliciaram com o tutano dos os­sos, e nunca mais ninguém soube daqueles caçadores. Foi um dia gratificante para o Saci. Hoje, ele não pode fazer muita coisa contra as fábricas. Mas o primeiro homem que entrar na floresta sem respeitá-la…

De repente um tremor na Mata. Novamente se concentrando e deixando de lado as recordações, o Saci sentiu.

Os pássaros deixavam seus ninhos mesmo… noite, enquanto o solo era malditamente benzido com carburetos e outras substâncias cancerígenas que pingavam do escapamento do carro. Um cheiro de morte impregnava aquela parte da mata. Não a morte natural da floresta, onde um predador atacava sem raiva, apenas para comer, e a vítima morria sem ressentimento.

Ele sentia o cheiro do Homem. Que vem junto com todas as coisas ruins que o homem faz.

Quando chegou lá  o Saci já  estava sabendo da cova. O Homem novamente tentava fazer da mata sua lixeira.

Ele havia suportado muito do homem. A mata estava cheia de cicatrizes. Mas uma coisa ele sabia, e se lembrava de sua pro­messa ao Espírito da Mata. Pela mata, por todas as matas e por ele mesmo, o Homem não iria fazer da mata o cemitério de sua pró­pria maldade. Que o Homem levasse sua mediocridade para longe dali.

A camada de húmus do solo era riscada pelo peso do cadáver que o homem arrastava. Quando o cortejo solitário estava a uma razoável distância do carro, o Saci resolveu satisfazer sua cu­riosidade, através de um sagui.

O pequeno macaco se esgueirou pela janela do carro, e com a habilidade manual dos primatas abriu o porta-luvas em busca de alguma identificação. O Saci queria saber contra quem estava lu­tando.

O macaquinho olhava para a carteira de identidade sem enten­der, mas através de seus olhos o Saci lia o nome de seu inimigo: João Batista.

Para o Saci era bom saber ler. Um velho da cidade o ensinara, além de contar coisas sobre a civilização. Havia coisas bonitas, mas havia muita coisa feia também. O velho David era bom. Conhecia e amava a mata o bastante para não só não ter medo das entidades que ali viviam, como para ganhar a amizade de uma delas.

Nos vários papéis que o sagui encontrou no carro, o Saci conseguiu descobrir uma série de nomes de pessoas que ele havia visto, nas revistas que David lhe trazia ou nos jornais que des­ciam o rio dos acampamentos na orla da mata. Alguns nomes estavam riscados.

Depois de liberar o sagui, o Saci seguiu o homem. Viu quando ele sacou uma pá e começou a cavar. Viu também quando as raízes das árvores se entrelaçavam, dificultando o trabalho do homem.

O Saci viu e gostou. Ele era uma personificação do espírito da mata, e no momento comandava seu exército em uma batalha ganha antes de começar.

Depois de mais de uma hora tentando cavar sem sucesso, o ho­mem desistiu e tentou cobrir o corpo da vítima com terra, for­mando um monte. Vendo isso, o Saci comandou milhões de formigas que passaram pelo assassino como uma onda. Nenhuma delas tocou no matador. Não era a hora, não ainda.

Elas queriam o cadáver, mas contrariando seus instintos elas seguiram as ordens do saci, tirando toda a terra de cima do corpo.

A noite se estendia sobre a floresta, a lua nova dificultava o trabalho do homem. Ele sentou para descansar em um tronco, mas isso não fazia parte dos planos que o saci tinha para ele.

Onças rondavam, rugindo avisos para o já assustado intruso. Ele tentou beber água em um riacho próximo, mas os anelídeos que vivem enterrados no fundo do riacho pularam em suas mãos.

Com um gesto de nojo ele atirou longe os vermes, limpando as mãos na calça. Já  sem saber o que fazer, João Batista correu para o carro. A garrafa de vodca o ajudaria a entender o que estava acontecendo.

A coceira no céu da boca o fez parar de beber e olhar para a garrafa. Uma lacraia de 3O cm ainda se debatia dentro do vidro. O cheiro de horror que se espalhou pela mata valeu o sacrifício do inseto.

A noite envolvia a mata, se abatendo sobre o intruso. Inu­tilmente ele tentou ligar o carro. As criaturas da floresta não queriam que ele saísse dali. Não naquele momento. Só queriam que ele saísse do carro, e para isso milhares de percevejos abriram caminho pelas entradas de ar, tornando o ambiente tão irrespirável que João Batista teve que sair do carro.

Ele tentou correr, mas as onças, jaguatiricas e outros feli­nos da noite o cercaram. Ele só podia ficar na região entre o ca­dáver e o carro.

Dando uma risada de satisfação, o Saci usou sua cartada fi­nal. Depois que as formigas devoraram o interior do crânio do cadáver, centenas de vagalumes entraram pelo nariz e pela boca, irradiando sua luz fria. Quando João Batista viu aquilo, sua mente chegou ao limite. Ele desmaiou, com uma expressão de terror.

Nenhuma criatura da floresta quis avançar. João era por de­mais desprezível para servir de alimento para a vida harmônica daquele local.

O Saci disse à floresta que não se preocupasse. Ele sabia como livrar a mata daquele humano.

Pela manhã os policiais chegaram para levar João Batista, assassino profissional procurado no país todo. Nenhum dos policiais acreditou que aquele caco de homem fosse o terrível matador de quem falavam os boletins. O que eles encontraram foi um homem completamente enlouquecido, assustado com qualquer coisa, e com uma expressão de horror gravada para sempre no rosto. Parecia que algo terrível havia acontecido com ele.

Não tão terrível quanto o que aconteceu com sua vítima. O cadáver estava lá, como prova de mais um crime hediondo na longa lista de João Batista.

O delegado Serra em seus vinte anos de polícia nunca havia visto um assassino tão atormentado. Na verdade ele notou que João Batista agradecido por ter sido preso. Ele só repetia: “Me tirem daqui! Me tirem daqui!”

Serra pensou, quando lembrou da expressão agradecida de João Batista, que ele mesmo nem havia agradecido ao escurinho que denunciara o paradeiro do matador. Na verdade, ele nem sabia o nome do garoto, que havia sumido logo após a prisão. Ele só lembrava que o menino tinha uma perna mecânica.



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