A Polêmica do Dia e a Crucificação Matinal de hoje envolveu o Emicida. Confesso, não gosto dele, o nome traz uma promessa não-cumprida, mas ele está sendo acusado de coisas bem piores do que não exterminar emos.
Basicamente ele odeia mulheres, espalha discurso de ódio, prega misoginia, bla bla bla. É o que dizem, por causa desta música, “trepadeira”.
Um grupo de feministas não-medicadas entendeu que a letra é uma afronta à mulher e sua liberdade sexual, o problema é que elas não entendem liberdade sexual como “dá pra quem quiser”, o que é correto, mas como “dá para quem quiser em qualquer circunstância”.
Na música o sujeito conhece a mulher, se apaixona, começa um relacionamento e descobre que ela o está galhando descaradamente com todo mundo na favela. Isso não é liberdade sexual, é falta de respeito, independente do gênero do galhador e do galhado.
O sujeito fica revoltado, claro, e na metáfora musical que permeia a música, solta o veneno:
Merece era uma surra de espada de São Jorge,
um chá de comigo ninguém pode.(É, eu vou botar teu nome na macumba viu?! se segura!)
Esses versos foram entendidos como:
“Eu apóio violência extrema contra todas as mulheres, que devem ser espancadas diariamente independente de motivo”.
Assim fica difícil.
A traição é um fato da vida. Existem dois tipos de pessoas: As que levaram chifres e as espertas o bastante para não procurar saber. No mundo atual a vítima do adultério, se homem é visto como fraco, perdedor, se mulher, é vítima. Cada caso é um caso e dificilmente se encaixam em modelos tão simples. As pistoleiras e os galinhas mais contumazes (ou às vezes sem o Thomaz) têm suas justificativas internas.
O tema existe desde sempre. Casablanca é um chifre do começo ao fim, a Capitu todos sabem jogou água pra fora da bacia. Triângulos amorosos são essenciais para a dramaturgia.
Tristão e Isolda, Dom Casmurro, O Grande Gatsby, Madame Bovary, a Bíblia, Ulisses, O Amante de Lady Chaterlay, Ana karenina, entre outros, lidam com adultério. Em Mansfield Park, a personagem Maria Bertram comete adultério, cai em desgraça e é banida. Não me consta que Jane Austen seja misógina e machista por isso.
Uma das músicas mais lindas do cancioneiro popular, Detalhes, é fruto da mais nobre e pura dor de corno. Do fundo de seu coração ferido, o Rei busca uma maldição digna de Melville, quando escreveu “to the last I grapple with thee; from hell’s heart I stab at thee; for hate’s sake I spit my last breath at thee.”
“Se um outro cabeludo aparecer na sua rua / e isto te trouxer saudades minhas a culpa é sua”
ou
“Eu sei que um outro / Deve estar falando / Ao seu ouvido / Palavras de amor / Como eu falei / Mas eu duvido! / Duvido que ele tenha / Tanto amor / E até os erros / Do meu português ruim / E nessa hora você vai / Lembrar de mim”
Como disseram ao Indiana Jones: “Você perdeu hoje, garoto, mas não quer dizer que você tenha que gostar disso”.
E há coisa mais lindamente passiva-agressiva do que Trocando em Miúdos, do poeta Chico Buarque?
O Cultuado e Estatualizado Renato Russo também entrou no “bonde do chifre”, com “As Flores do Mal”, talvez a música mais pesada da Legião. “Volta pro esgoto, vê se alguém te quer”.
Antes que acusem Renato Russo de porco machista estuprador misógino, aviso que a criatura alvo da música era um menino. SIM, breaking news, também existe adultério entre gays. Mais detalhes no Discovery Channel.
Mulheres também cantam sobre traição (d´oh!). Um dos hinos do Disco, I’ll Survive é sobre uma mulher dando a volta por cima e bota o babaca pra fora.
Nem toda música sobre o tema precisa ser triste. Em These Boots Are Made for Walking Nancy Sinatra canta sobre um triângulo onde uma das pontas –que não é ela- está a ponto de rodar.
“You keep playing where you shouldn’t be playing
And you keep thinking that you’ll never get burnt (HAH)
Well, I’ve just found me a brand new box of matches (YEAH)
And what he knows you ain’t had time to learn”
Ou: CHUUUUPA.
Não creio que ela tenha sido acusada de pisotear homens no sentido literal, apesar de cantar com todas as letras:
“These boots are made for walking, and that’s just what they’ll do
One of these days these boots are gonna walk all over you”
Existe uma figura em literatura chamada Eu Lírico. É a representação não do autor, mas do narrador ou protagonista da obra. É por meio dessa figura que gente inteligente entende que o Tarantino pode escrever cenas terríveis de torturas envolvendo negros, sem ser racista.
É por meio do Eu Lírico que um autor masculino pode escrever uma letra do ponto de vista feminino sem ser desarmarizado como transgênero.
Quando o pessoal do Casseta e Planeta escreveu a Ode à Dor de Corno, a música “Diga”, dificilmente estava pensando em promover misoginia, violência, homicídio, etc. O grande contraponto da música é justamente ser um discurso de revolta exagerado, em clima de balada romântica.
“Ah, mas a música diz que quer arrancar os pelos da cabeça dela, atropelar com um rolo compressor, isso não é engraçado”.
É sim. De verdade não é. Assim como a maioria das pessoas condena tráfico de drogas e serial killers, e adora Breaking Bad e Dexter.
O sentimento de revolta diante da traição é real, imaginamos mil cenários e ninguém não-hipócrita deixaria de admitir que em algum momento não fantasiou um piano de cauda caindo na cabeça da criatura. A palavra-chafe é “fantasiar”.
Negar ao Emicida, ou ao eu lírico do Emicida o direito a esse sentimento é criminoso. É exigir uma superioridade moral e ética na ficção que ninguém consegue nem na vida real. Pior, ao exigir essa superioridade no campo da arte, estão MATANDO tudo que a faz bela.
Não existe arte sem conflito. Não existe amor sem risco, cantar a paixão é válido mas expiar a dor também é. Você já deu mais sorte com a Beatriz, não me tire o direito de falar mal da Rosa.
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